Um activismo "não muito inteligente"

Recentemente, temos testemunhado em Portugal o crescimento de um activismo climático mais "radical" (uso este termo com bastante cuidado e entre aspas).

Durante uma conferência sobre a transição energética, não há muito tempo, três activistas atiraram bolas de tinta verde ao Ministro do Ambiente, expressando várias palavras de ordem, como por exemplo as as suas queixas contra a empresa de energia portuguesa - a EDP. A sua mensagem? "(...) A EDP não quer saber da transição energética."

No World Aviation Festival em Lisboa, uma das maiores conferências mundiais de aviação comercial, vários activistas invadiram o palco principal durante um painel com diversos CEO’s de várias companhias aéreas. Ironicamente quando estes discutiam o caminho para atingir a meta de “Carbono Zero”. Simultaneamente, outros activistas pintaram o exterior do edifício de vermelho, acompanhando a sua acção com slogans como "A aviação está a matar-nos," "Parem a Aviação," e "vocês são assassinos." Palavras muito fortes. Eu estava lá, sentado nas primeiras filas, e sendo piloto, acho que caí sob a etiqueta de "assassino".

Na semana passada, numa exposição de arte no Centro Cultural de Belém, dois activistas pintaram um quadro de Picasso de cor laranja e colaram-se à parede. Felizmente o quadro estava protegido por uma protecção acrílica. Infelizmente, este não é um evento isolado; incidentes semelhantes têm ocorrido um pouco por todo o mundo.

Estes três exemplos são apenas a ponta do iceberg (ainda hoje alguém se decidiu colar a um avião da companhia aérea nacional). Não me interpretem mal: sou bastante liberal nesta questão. Acredito que o Activismo é essencial numa sociedade democrática livre e, por vezes, é a única maneira de impulsionar o progresso. De crescer. De chamar a atenção para questões críticas. Como Steve Jobs costumava dizer, "Aqueles que são loucos o suficiente para pensar que podem mudar o mundo são os que o mudam".

No entanto, o que me preocupa é o aumento do que eu chamaria de activismo "não muito inteligente," e aqui está o porquê: dados. Dados concretos e factuais. Quando alguém realiza uma ação pública como as mencionadas acima (acções com grande visibilidade e potencial criador de prejuízos materiais), deve estar preparado para a apoiar com factos. É aí que começam as minhas (muitas) dúvidas.

Parece que, na esmagadora maioria dos eventos a que temos vindo a assistir, os activistas não fizeram o seu trabalho de casa: A EDP - Energias de Portugal - é, de facto, um exemplo de como uma empresa, especialmente uma empresa no sector de energia, está a fazer um trabalho louvável. Estabeleceram objetivo de se tornar neutros em carbono até 2030 - altamente ambicioso - e provavelmente conseguirão atingir o seu objectivo antes dessa data. Toda a energia que a EDP produzir será de fontes renováveis, o que é notável, especialmente quando percebemos o quão à frente do objetivo de 2050 estabelecido em Paris a empresa está. De tal maneira que os seus esforços foram recentemente reconhecidos pelas Nações Unidas, sendo a EDP apresentado como um modelo de empresa global a seguir.

De acordo com a Agência Internacional de Energia, o sector da Aviação representou apenas 2% das emissões globais de CO2 em 2022, com algumas fontes apresentando um valor de 2,5%. Portanto, parece-me claro que a Aviação não contribui significativamente para o aumento das emissões de CO2 em todo o mundo - representa sim uma pequena percentagem das emissões globais. E como em tudo na vida, devemos analisar os prós e os contras da nossa posição. Dois por cento (ou mesmo 2,5%) das emissões totais de CO2 não representa, de forma alguma, o cerne do problema, especialmente numa indústria considerada essencial como a aviação. Pergunto-me como esses mesmos activistas acham que as suas roupas chegaram a Portugal ou como é que os seus iPhones apareceram miraculosamente nas prateleiras das lojas… Não é intelectualmente honesto procurar interromper e parar toda uma indústria, todo um sector (como o da Aviação comercial), com slogans, que para além de serem de mau gosto, não representam os factos do mundo em que vivemos.

Por último, acho impressionante tentar estabelecer uma ligação entre a arte (e o seu eventual papel na nossa jornada climática) e as alterações climáticas. Não tenho a certeza se Picasso costumava ir para o seu jardim queimar carvão apenas por diversão… Mas tentar vandalizar uma das mais importantes obras de arte da história para simplesmente tentar passar uma mensagem parece-me um acto de insanidade. A arte representa o pináculo das nossas capacidades e engenho como espécie - um testemunho à nossa capacidade de criar aquilo que é uma beleza duradoura, apreciada por diferentes gerações ao logo da nossa história. A arte deveria ser admirada por estes activistas como um exemplo. Um exemplo de como podemos criar coisas que resistem ao teste do tempo, tal como nos esforçamos igualmente para construir um futuro melhor para os nossos filhos, e não o contrário.

Admito que este é um texto que não queria escrever. Mais uma vez, acredito firmemente que o Activismo é crucial. No entanto, este deve ser inteligente. Se pudesse falar com algum destes activistas, argumentaria que esta não é a forma mais eficaz de transmitir a mensagem - por mais válida que seja. Polarizam opiniões, deslocam o foco da mensagem para as acções em si e amplia o grande fosse que já separa parte da nossa sociedade contemporânea. Mais: minimiza e faz escárnio de anos de trabalho em busca de um mundo mais sustentável.

Portanto, por favor, antes de se envolverem em mais acções novamente, verifiquem os factos. Investiguem. Examinem os dados. Façam uma pausa, respirem fundo e perguntem a vocês mesmos: "Isto vai ajudar ou piorar a situação?" .

Pelo bem de todos nós, considerem o conselho de alguém que apoia também de forma firme a busca de sustentabilidade e o combate às mudanças climáticas. Pese embora vocês me considerem um “assassino”.

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Habituem-se Portugueses!

Habituem-se a um Governo composto por elementos com base em ligações familiares e não em meritocracia. 

Habituem-se a Secretários de Estado que recebem financiamento para projectos que não saem do papel. 

Habituem-se à noção de que os problemas desaparecem se enterrarmos dinheiro nos mesmos.

Habituem-se a um governo para qual o acto de “reformar” é tabu.  

Habituem-se a um governo em que Ministros tomam decisões estruturais para o país sem respeitar a cadeia hierárquica. 

Habituem-se à arrogância

Habituem-se à ideologia, mesmo que esta signifique a disseminação da incompetência, amadorismo e despotismo em empresas e organizações do Estado. 

Habituem-se a um governo que se rege pela frase “faz o que digo, não faças o que eu faço”. 

Habituem-se a Ministros que clamam contra o Privado e acabam por pagar mais por (muito) menos.

Habituem-se a um governo que restrutura empresas através de cortes brutais e despedimentos colectivos. Enquanto “recompensa” o seu elemento com nomeações e permitiria - se o caso não se tivesse tornado público - uma indemnização milionária sem consequência.

Habituem-se a um executivo que nunca sabe. Nunca ouviu falar. Que desconhece. Que vai averiguar. Que diz “isso é um casinho”.

Habituem-se a governantes que nunca têm culpa, que nunca assumem responsabilidade. “É a conjectura internacional”, “é culpa do governo anterior” (aquele que já saiu faz 8 anos), “é culpa do privado” são as frases de ordem. 

Habituem-se a um governo que, ao contrário da mulher de César, não aparenta fazer um esforço para  tentar parecer sério. 

Habituem-se a representantes políticos para os quais estar cada vez mais na cauda da Europa é não só normal, como aparenta ser desejável. 

Habituem-se a um governo para o qual a Ética é um conceito desconhecido. E a responsabilidade política uma raridade. 

Habituem-se à falta de vergonha.

Habituem-se… 

… Porque a culpa também é nossa. 

Capa da Revista VISÂO de 15/12/2022

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A última largada

Não sei o que dizer. Não sei bem o que escrever.

Perdi demasiados camaradas e amigos da minha geração nesta coisa a que chamam voar. Os dias de merda – como o de hoje – tornam-se cada vez mais frequentes. Hoje perdi mais um. E perder um que fosse já seria perder um a mais.

Isto não se torna mais fácil com o passar do tempo. Pelo contrário, torna-se mais difícil. Como se nos relembrasse que a nossa tão egoísta sensação de invencibilidade não passa disso mesmo: uma sensação. Ainda hoje em conversa com um camarada dizíamos que esta profissão é linda. É aquilo que todos nós – que a fazemos – sonhámos um dia fazer. Mas também é cruel. É filha da puta. E esse reverso da medalha é doloroso mesmo quando o fazemos em prol do bem comum. E quando algum de “nós” parte mais cedo no decorrer da sua missão é duplamente difícil.

Tanto na Força Aérea como no mundo civil, voaste para ajudar quem mais precisava. Hoje voavas por todos, no combate a essa maldição que nos atinge todos os anos, os incêndios. É injusto. É muito injusto.

Até um dia Camarada.

Encontrar-nos-emos novamente.

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1922-2022

V1... Rotate”. 

Com um pouco de pressão no sidestick, a aeronave eleva-se no ar. Em pouco menos de dois minutos estamos a voar com trem em cima, flaps recolhidos a subir para uma altitude final de 32.000 pés. Reclino a cadeira para trás e bebo um golo de café; daquele amaldiçoado pelo seu sabor, mas abençoado por meramente existir. Canárias ao final de duas horas, Cabo Verde ao final de quatro. Agora, à nossa frente, só o Brasil. Passadas quase sete horas, 3 cafés e alguma conversa vemos as primeiras luzes da terra de Vera Cruz no horizonte. Iniciamos a descida, aterramos na pista e pouco depois deixamos a carga mais preciosa de todas no seu destino: os nossos passageiros. Em menos de oito horas atravessámos um Oceano. 

A diferença que 100 anos fazem. 

Em 1922 foram setenta e nove dias. Com três aeronaves. Uma amaragem. Uma falha de motor. E certamente muito mais suor, palavrões e lágrimas à mistura. Foram 8000km de viagem até ao seu destino. Com várias escalas e paragens, a primeira travessia aérea do Atlântico Sul foi uma viagem épica que colocou Portugal na história da Aviação mundial. 

E celebra-se hoje, 30 de Março, exactamente 100 anos que se iniciou essa Epopeia. É interessante imaginar o que Sacadura Cabral e Gago Coutinho pensariam se estivessem a bordo de um qualquer voo que hoje descolasse de Lisboa com destino ao Brasil. Provavelmente ficariam admirados com a rapidez, conforto e segurança com que hoje atravessamos Oceanos. Confusos com as cadeiras reclináveis. E estupefactos com o facto de conseguirem comer comida quente a bordo. Tudo isto só é possível porque Aviadores como eles deram o primeiro passo – o mais arriscado de todos. Arriscaram. Acreditaram e sofreram.

Tudo isso faz do dia de hoje um dia digno de celebração. De celebrar dois Heróis. Dois Aviadores. E dois Portugueses.

É de feitos assim que se constroem Nações. De que se contam estórias e se escrevem canções. Faz hoje cem anos que ficámos um pouco maiores. 

A eles!

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A indecente Inacção Europeia

Uma nação europeia de quarenta milhões de habitantes luta pela sua existência. Impensável, pensávamos todos, que em pleno século XXI um regime estrangeiro decidisse invadir um país europeu soberano e democrático. Uma invasão total, impossível de justificar por motivos históricos ou pelos defeitos da democracia Ucraniana - umas das mais recentes na Europa.

E mais uma vez, a bravura não conhece linhas. Não conhece demarcações. Não conhece fronteiras. Nas planícies da Ucrânia, milhões de ucranianos lutam pela sua liberdade, pelo seu direito a existir como Nação, com garra, resiliência e uma inegável coragem, digna de lenda. Nas ruas da Rússia, milhares de corajosos cidadãos russos mostram o seu apoio ao fim do conflito, sendo presos e condenados meramente por expressarem a sua solidariedade com os seus vizinhos. 

Daqui a muitos anos, ao ler os livros de História, as nossas crianças e netos irão perguntar-nos como é que nós, no Ocidente, pudemos ser testemunhas desta página negra da história moderna e fazer tão pouco tão tarde. 

E nesse instante a nossas caras ficarão cobertas de vergonha. Porque nós, pouco ou nada fizemos. 

Indecente, irão dizer-nos. E nós, calados, olharemos para baixo.

Como aparentamos fazer agora.

As palavras “coragem”, “resiliência” e “liderança” resumidas numa só: Zelensky.

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TAP: soundbytes & demagogia

O debate de ontem entre os dois principais candidatos a primeiro-ministro foi, sem dúvida, bastante interessante. Mas em relação ao tema de Aviação notou-se que ambos os candidatos ou estariam mal preparados, ou estariam conscientemente a usar informação parcial ou falsa. Afirmar, a título de exemplo, que David Neelman está falido – quando se encontra a lançar uma nova companhia aérea com sucesso (Breeze Airways) no mercado mais concorrencial do mundo, os Estados Unidos – é inacreditável. Aliás, é difícil de encontrar actualmente alguém tão icónico na Indústria do Transporte Aérero como Neelman, que ao longo da sua história fundou cinco – sim, cinco! – companhias aéreas com sucesso: Morris Air, JetBlue, WestJet, Azul e agora a Breeze Airways.

 Mas também do outro lado da barricada se usou um discurso longe do ideal. Uma das áreas mais complexas e mais importantes de qualquer companhia aérea é Revenue Management. É, no fundo, uma arte, que na sua vertente de pricing permite optimizar os preços e preencher os lugares dos aviões enquanto maximiza o lucro por assento de uma companhia aérea. Como referido, é uma área extremamente complexa e onde recentemente se tem utilizado ferramentas de Inteligência Artificial (AI). Contudo uma coisa não se alterou: um dos principais drivers de compra de um bilhete é a sua comodidade no que toca a ligações directas. Isto é, se viajarmos do ponto A para o ponto B, todos preferimos ir directos do que parar num ponto C, D ou E (que torna a viagem mais longa e mais demorada). Por exemplo, se quisermos ir de Lisboa a Boston, preferimos descolar de Lisboa directos a Boston, do que efectuar uma ligação em Londres, Paris ou Frankfurt. O que significa que os bilhetes do ponto A para o ponto B são mais procurados, por serem mais apetecíveis. Nós sabemos isto. As companhias aéreas também. Logo o seu valor é superior. Pode parecer um contrassenso, mas um voo directo, mais curto em distância e menos longo em duração, acaba por ser mais caro que um voo que por vezes percorra o dobro da distância e demore o triplo do tempo. Mundo estranho este das companhias aéreas. É, na prática, uma variante da lei da oferta e procura.  Voos com ligação têm uma muito maior oferta (as possibilidades são várias) e são menos apetecíveis, logo os preços são mais baixos. Um vasto outro número de factores pode afectar o pricing de bilhete, desde datas específicas, necessidades de loadfactor (um avião cheio, mesmo com preços baixos é preferível a um vazio), marketing e “brand awareness” (criar “buzz” mediático sobre uma nova rota ou a companhia aérea em si) ou mesmo por captação do mercado da concorrência (tentar roubar o mercado/cliente de um grupo ou companhia aérea concorrente). Estes factores podem levar ao aumento ou decréscimo de preços de bilhetes em voos directos ou com ligação.

Daí que é preciso ter bastante cuidado quando se afirma: “Um voo Madrid - São Francisco, (...) com escala em Lisboa, custa a um espanhol 190€. Quanto paga o português se apanhar o mesmo avião em Lisboa para ir para São Francisco? Paga 697€. É companhia de bandeira, mas é companhia de bandeira espanhola ou de outro país qualquer, isto é revoltante, isto é inadmissível."

Senão poderíamos igualmente afirmar:

 No site da LUFTHANSA um voo com origem em Lisboa e destino São Francisco com escala em Frankfurt custa 951€. Com escala em Munique custa 740€. Mas e se um alemão voar directo de Frankfurt ou Munique a São Francisco? Passa a custar 1464€ e 1452€. Mas afinal a LUFTHANSA não é a companhia aérea de bandeira alemã? Isto é revoltante, isto é inadmissível! (Para um alemão)

No site da BRITISH AIRWAYS (grupo IAG) um voo com origem em Lisboa e destino São Francisco com escala em Londres Heathrow custa 680€. Mas e se um inglês voar directo de Londres a São Francisco? Passa a custar 2335€ (taxa de conversão actual). Mas afinal a BRITISH AIRWAYS não é a companhia aérea de bandeira inglesa? Isto é revoltante, isto é inadmissível! (Para um inglês).

No site da AIR FRANCE (grupo AF/KLM) um voo com origem em Lisboa e destino São Francisco com escala em Paris CDG ou Amsterdão custa 537€ (Air France) ou 535€ (KLM). Mas e se um francês voar directo de Paris a São Francisco? Passa a custar 1200€. Mas afinal a AIR FRANCE não é a companhia aérea de bandeira francesa? Isto é revoltante, isto é inadmissível! (Para um Francês ou Holandês).

Independentemente da nossa opinião sobre a ajuda estatal na TAP, parece-me evidente que a ideia por detrás da injecção de capital não seria facultar viagens mais baratas aos cidadãos nacionais (que na prática nada mais seria que subsidiar bilhetes). Era sim tentar criar uma empresa que seja viável financeiramente. E para isso esta tem de obedecer a regras de mercado, regras essas que se aplicam a todas as companhias aéreas.

Pode parecer estranho. Pode parecer contra-natura. Mas é preciso entender como funciona uma companhia aérea e o seu pricing de bilhetes (ou qualquer outro assunto de facto) para se poder falar com conhecimento de causa sobre ele. Todos sabemos que, infelizmente, a política é hoje feita de soundbytes. Mas convém que esses sejam baseados em factos. E é possível argumentar de forma coerente, clara e com argumentos factuais sobre a TAP. Seja qual for a nossa posição, uma discussão racional é essencial. Tudo o resto é demagogia. E ontem assistimos a muita demagogia, de ambos os lados.

E esta mata qualquer organização.

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 (Análise efectuada com voo de ida, classe económica, em data escolhida de forma aleatória – 16 de Abril 2022. Dados recolhidos dia 14 de Janeiro da parte da manhã).

(Comparação de preços LUFTHANSA entre LISBOA-SÃO FRANCISCO via Munique e Frankfurt; e voos directos de Munique e Frankfurt para São Francisco)

(Comparação de preços BRITISH AIRWAYS entre LISBOA-SÃO FRANCISCO via Londres e Londres Heathrow - São Francisco)

(Comparação de preços AIR FRANCE entre LISBOA-SÃO FRANCISCO via Paris e Paris - São Francisco)

Foto de capa ( via Observador ©)

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Três razões para ter orgulho

Por vezes é difícil ter esperança neste país. É difícil no meio de tanto escândalo, de tanta irresponsabilidade e de tanta falta de competência acreditar que somos tão ou mais capazes, tão ou mais válidos, ou tão ou mais profissionais que os outros. Um aparente fatalismo instalou-se entre nós, ou talvez apenas em mim. Mas felizmente surgem indivíduos que nos provam o contrário. Que provam que temos muitas razões para ter orgulho. Três das razões mais recentes?

Sir António Horta-Osório, banqueiro português que liderou a reestruturação e a impressionante recuperação do Lloyds Bank no Reino Unido, recebeu o grau de cavaleiro, pela Rainha de Inglaterra. Um honra única, que não só é um atestado à extrema competência de Horta-Osório, como uma constatação do facto que após a recuperação do banco com injecção de capital público, o mesmo devolveu ao erário público britânico todo o dinheiro investido mais um cheque “extra” de novecentos milhões de Euros. António Horta-Osório é hoje o chairman do Credit Suisse, o primeiro português a ocupar uma posição daquele género.

Daniela Braga, uma investigadora e empresária portuguesa, na área da Inteligência Artificial foi uma das doze pessoas escolhias pelo presidente norte-americano, Joe Biden, para integrar a mais recente Task-Force da Casa Branca que irá definir o futuro da política norte-americana nessa tão importante área. Uma confirmação da sua competência e do seu conhecimento único sobre aquela que é uma das tecnologias que já está a moldar o nosso futuro.

Rodrigo da Costa, que desde o final de 2020 se tornou o director executivo da EUSPA – EU Agency for the Space Program. O primeiro português a ocupar um cargo desta responsabilidade num dos organismos mais importantes para a exploração espacial europeia, responsável por programas tão importantes como o Galileo ou EGNOS. Uma mente brilhante, num local de destaque.

E embora estes nomes possam não ser do conhecimento da maioria dos portugueses, eles representam o melhor que há entre nós. E numa altura em que o campeonato europeu de futebol acabou de começar, convém lembrar que o nosso potencial é muito, mas muito mais do que apenas futebol. E, verdade seja dita, em campos bem mais importante do que um campo de futebol.

António, Daniela e Rodrigo, um brinde!

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“Accountability”, sabem o que é?

Saudade. Todos nós, portugueses, conhecemos bem essa palavra. É uma parte intrínseca do nosso povo e gostamos de dizer, seja verdade ou não, que não tem tradução em nenhuma outra língua falada neste planeta. Existem palavras ou expressões que surgiram para definir, quantificar ou explicar um determinado acto ou sentimento que era único e exclusivo a um grupo de pessoas. E as palavras dizem muito sobre os povos.

Interessante também é analisar a questão de forma inversa. Que outras palavras existem por esse mundo fora que não têm tradução directa em português? E dessas, do conceito que definem, qual é que nos faria mais falta? Para mim tornou-se uma pergunta de resposta simples: “Accountability”.

De acordo com a Merriam-Webster (Encyclopedia Britannica), “Accountability” é definida como:

 An obligation or willingness to accept responsibility or to account for one's actions.

Em português não existe tradução directa. “Prestação de contas” ou “responsabilidade com ética” deverão ser as expressões mais aproximadas.

E torna-se difícil não pensar que a inexistência desta palavra no nosso léxico diz muito sobre o país que somos: um país onde existe muito pouca “accountability”. Especialmente em níveis com elevado poder de decisão. Por cá, arranjámos uma expressão que define bem a falta de “accountability”: a culpa morre solteira.


Tenho a experiência pessoal de exercer uma profissão em que a existência de “accountability” está bem presente no dia a dia. Em aviação, ao mais pequeno erro, à mais pequena negligência, as consequências são imediatas e directas. E isto porque todo um sistema de controlo e monitorização está montado de modo a garantir que cada um sabe exactamente aquilo que pode, e deve, fazer. A segurança assim o exige, afinal de contas falamos de vidas humanas. Daí que ao mais pequeno incidente existam investigações complexas e demoradas. E a responsabilidade sente-se na pele. É stressante. Mas é essencial.

No país parece que é diferente. “Accountability”?

O país “desconfinou” no Natal, levando à pior vaga de sempre? “Tudo normal”.

O sistema SIRESP funciona com graves limitações, ao abrigo de um contrato que não defende o Estado Português? “É o dia-a-dia”.

O País permite no meio de uma pandemia milhares de pessoas em ajuntamento numa celebração desportiva? “É deixar andar”.

Os portugueses têm de ficar em casa, mas criamos uma “bolha” fictícia para, mais uma vez, observar violência e ajuntamentos em mais um evento desportivo que ninguém na Europa (nem mesmo o país de onde vinham as duas equipas) quis organizar? “Foi azar, correu quase tudo bem”.

Uma Ministra admite que um currículo de um candidato (candidato esse preferido pela tutela) foi alterado para “embelezar” a candidatura em Bruxelas? “É um procedimento normal, apenas para realçar algumas competências”.

Entregamos de mão beijada através de uma autarquia (?!) dados de três activistas (incluindo morada e telefone) a um estado estrangeiro – estrategicamente adversário da EU e da NATO – que continua a dar provas de manter uma postura altamente anti-democrática? E, convém dizer, sendo dois desses activistas cidadãos portugueses? “Foi um triste lapso”.

Roça o amadorismo.

Há algo que o país precisa mais do que dinheiro. Mais do que investimento estrangeiro, mais do que turistas, mais do que dez ou vinte Auto-Europa.

O país precisa desesperadamente de “accountability”. De gente, de indivíduos, que assumem as suas responsabilidades, com coragem e frontalidade. E tomem as devidas ilações, sejam elas políticas ou não. Longe vão os tempos em que governantes punham o lugar à disposição por menos.

Por muito menos.

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Foto de capa: Tiago Miranda (via Visão)

Competência

Portugal tem tido nas últimas décadas uma relação de indiferença (para não dizer outra palavra mais ofensiva) com as suas Forças Armadas. Era comum – fosse no mundo real, fosse no digital – a existência de comentários incompreensivelmente jocosos. Mas mais impressionante que esse facto, é a resposta que sempre foi dada pela instituição castrense: cumprir a missão com brio.

O Diário de Notícias publicou ontem, dia 09 de Maio, uma interessantíssima reportagem sobre o Vice-Almirante Gouveia e Melo e a task-force de vacinação que comanda. Nela é acompanhado o dia-a-dia da task-force e do seu comandante, coincidindo com o exacto momento em que é atingido um marco histórico: as cem mil inoculações diárias. É importante não relativizar a imensidão da tarefa logística que isto representa. Da coordenação necessária, do planeamento obrigatório e da incessante avaliação do progresso.

Foi notório que assim que o Vice-Almirante Gouveia e Melo ficou responsável pelo programa de vacinação à COVID-19 em Portugal, terminou o uso do mesmo como arma política – que era a mais abjecta forma de lidar com este problema. E embora a excelente capacidade operacional dos militares possa doer a algumas franjas da sociedade (e é importante lembrar que o Vice-Almirante até foi criticado por usar farda camuflada, como se esta não fosse a sua farda de trabalho ou como se não estivesse no seu direito como militar) a verdade é que passámos a ter frontalidade nas declarações e eficiência no processo. Só espanta é como é que não foi assim desde início. Pode ser que o poder política tenha tirado – mais uma vez – as ilações necessárias.

Ainda se vive neste país com um qualquer complexo, que admito, não sei explicar, com as Forças Armadas. Está na altura de, finalmente, terminar com ele. Pois mais uma vez elas responderam como melhor sabem: com competência.

E essa é uma qualidade que faz desesperadamente falta a este país. Cada vez mais.

GouveiaMelo.jpeg

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(Foto de capa: Global Imagens)


(Uma espécie de) Democracia

O The Economist Intelligence Unit publicou hoje o seu relatório “Democracy Index 2020 – In sickness and in health?”. Este documento, elaborado pela revista “The Economist”, mede o pulso à qualidade das democracias mundiais analisando vários factores. É um relatório único, um dos poucos do género, onde os diversos países são agrupados em quatro grandes grupos: full democracies, flawed democracies, hybrid regimes e authoritarian regimes.

Portugal, naquilo que poderá ser um choque para alguns, desceu de grupo, e é hoje considerado por este “think-thank” como “flawed democracy”, localizando-se no fundo da tabela referente à Europa Ocidental. O relatório relativo a 2020 sempre seria particular, consequência da crise pandémica que vivemos e das diversas medidas limitadoras dos movimentos impostas em várias democracias ocidentais. É importante não relativizar a importância de já não sermos considerados uma democracia plena, especialmente quando uma leitura mais atenta do relatório nos indica uma das explicações pela qual Portugal caiu de grupo:

In Portugal, the frequency of parliamentary debates (through which the prime minister is held accountable) was reduced during the pandemic. This, coupled with the lack of transparency around the appointment of the president of the auditing court, led to a deterioration in the checks and balances score.

Democracy Index Europe.png

As democracias são regimes frágeis e que muito dificilmente sobreviverão a uma permanentemente falta de transparência. Portugal está a entrar num caminho perigoso. Ser considerado uma “flawed democracy” é, infelizmente, uma fotografia bastante nítida do país em que vivemos actualmente. Em que uma procuradora geral da república competente é substituída, um presidente do tribunal de contas é afastado, uma procuradora com melhor currículo é preterida face a uma figura mais “amigável”, e onde membros do governo dizem não ser legítimo criticar o executivo. Sem qualquer consequência política. Sem qualquer pudor. Sem, arrisco-me a dizer, qualquer vergonha. Um caso seria inócuo, vários denotam um padrão. Uma tendência. E por isso é que uma chamada de atenção é importante. Vivemos num país onde a meritocracia foi substituída por um cartão partidário. Onde a competência é substituída por amizades. Onde a lógica é subvertida pela chamada “nomeação política”. Os “amigos” são o que mais conta e isso, por si só, leva a uma quebra de confiança nas instituições democráticas (e consequente subida do extremismo político).

Nunca sairemos da aparente espiral infindável de crises até que tenhamos uma reflexão clara sobre que democracia queremos, e que postura estamos dispostos a ter perante cargos públicos, perante a suposta impunidade reinante e perante a clara falta de auto-crítica de governos em funções. Independentemente da cor política.

A responsabilidade é de todos: dos órgãos de soberania ao cidadão comum. Do presidente da república ao eleitor que não vota. Dos meios de comunicação social ao comentador de Facebook.

E de nada vale gritar que é “uma vergonha” (porque o é) se não fizermos nada para o alterar (porque não o temos feito).

Competência precisa-se.

Urgentemente.


Poderão efectuar o download do relatório aqui: https://www.eiu.com/

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O homem mais rápido do mundo

Pode ser difícil de acreditar, mas a aviação já foi mais que wi-fi fraco, super-computadores e os atrasos que parecem que invadem as notícias e fóruns de discussão de hoje em dia. Uma época houve em que esta se desenvolveu, e cresceu, apenas através da ingenuidade, coragem e sangue de tipos excepcionais.

Yeager

Cresci (tanto fisicamente como na minha carreira) a ler as estórias de gigantes como Bob Hoover, Robin Olds ou Scott Crossfield. Mas provavelmente o “maior” de todos, o mais irreverente, a personificação daquilo a que se chama “the right stuff” é (foi) Charles “Chuck” Yeager. O primeiro homem a bater a barreira do som. E a fazê-lo numa pequena aeronave cor laranja em que eu não entraria nem que fosse um carrinho de rolamentos.  

Yeager faleceu hoje, aos 97 anos. Uma chapada de luva branca à Morte; alguém que A viu bem de perto tantas vezes durou quase um século.

Yeager era lenda. É uma lenda. E continuará lenda. E será para sempre uma das maiores inspirações para todos aqueles que se consideram pilotos e amantes da aviação.

So long Chuck.

“You do what you can for as long as you can, and when you finally can´t, you do the next best thing. You back up, but you don´t give up.”

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O último voo

Escorria-me uma gota de suor pelo rosto e lá fora estava frio. Muito frio. Tinha acabado de “taxiar” e alinhar um Alouette 3 num dos heliportos da Base Aérea de Beja. Este seria o meu primeiro voo de helicóptero depois do treino elementar e básico de pilotagem em asa fixa, a voar o TB-30 Epsilon, o avião de instrução da Força Aérea Portuguesa. Ao meu lado, no lugar central, o instrutor, e no lugar da esquerda como passageiro estava outro aluno que assumiria o meu lugar a meio do voo. Esta primeira missão seria um voo de familiarização com as áreas de trabalho atribuídas a helicópteros na zona de Beja. Um voo sem avaliação, logo sem pressão.

“Estás pronto? Vá, descola”, disse o instrutor.

Descola?, pensei. Como assim? Este é o meu primeiro voo de helicóptero. Eu não sei voar isto.

Como, meu Major?”, respondi.

“Bora, descola aí, que eu dou uma ajuda”.

Este gajo é doido. Eu não sei mesmo voar isto!

Afirmativo...”.

Inicio a aplicação de colectivo e sinto o helicóptero a elevar-se nos amortecedores. Mais um pouco e estamos fora do chão. E aqui... aqui começa a luta infindável desta máquina infernal para dominar o éter do céu português.

Durante o curso teórico é-nos incutido que a mais difícil do que voar um helicóptero em linha de voo é mantê-lo em estacionário – inamovível sobre o mesmo ponto; aquilo que efectivamente diferencia um helicóptero de um avião, a sua capacidade de “parar” no ar. Mas por mais que nos digam isso, e que esperemos isso, sentir essa dificuldade é bem diferente.

Estávamos no ar. Manche para a frente e para trás. O meu braço não parava. Já não percebia se estava a tentar voar um helicóptero ou a bater um ovo. Com os pés era igual: ora vai o direito para a frente, ora vai o esquerdo. Com o colectivo, o mesmo. Para cima e para baixo. Era o maior teste psicotécnico da minha vida, e só para ficar quieto no mesmo sítio. Ora para cima para baixo, ora rodava no eixo para a esquerda, ora para a direita, e depois esquerda, esquerda, esquerda... e acabei por fazer um 360.

“Ah”, dizia o instrutor pelo meio de uma gargalhada, “pelo menos fazer uma rotação já sabes!”.

Foda-se, pensei, já não sei voar. Que máquina infernal é esta?

O instrutor, bem paciente, tomou o controlo com dois dedos no manche. Dois dedos. E o helicóptero, como que a gozar com o meu esforço, imobilizou-se no ar. Não se deslocava nem 10 cm para qualquer um dos eixos. “Relaxa”, dizia o instrutor “tens de fazer apenas pequenos movimentos”. Passámos a hora e meia seguinte a voar pela planície alentejana. Baixo. Bem baixo. E quando aterrámos pensei: apaixonei-me. Isto é fabuloso.

Foto: Rui Sousa (c)

Foto: Rui Sousa (c)

Para mim, aquele passou a ser um dos segredos mais bem guardados da Força Aérea: uma das aeronaves mais antigas, e visualmente menos sexy, era aquela que, afinal, mais gozo dava a voar. Passados anos, e depois de voar outras aeronaves, aprofundei essa certeza. Nada superava o estar sentado naquela “bolha” de plexiglass a 10 pés do solo. Voei-o como piloto operacional durante aproximadamente dois anos. E foi um privilégio. O Alouette 3 era de facto uma aeronave fantástica.

Após 57 anos de história não haverá provavelmente máquina mais icónica na Força Aérea Portuguesa, que signifique tanto para tantos, como este helicóptero de fabrico francês. Da Guiné a Timor, de Angola à costa portuguesa, de Moçambique ao combate e coordenação de incêndios, o Alouette 3 serviu de forma excepcional várias gerações de portugueses.

Hoje, o Ministro da Defesa voará nessa máquina infernal. Será um dos seus últimos voos oficiais ao serviço da Força Aérea Portuguesa e um acto simbólico de despedida.

Quem o voou, e quem nele trabalhou, não o irá esquecer. E que melhor forma haverá de nos despedirmos dele do que com um brinde. O mesmo que ecoava nos jantares da sua última Esquadra de voo, a 552: “À máquina”!

 Efectivamente, após 57 anos...

À máquina!

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Foto de capa: Rui Sousa

Ora então vamos lá falar da TAP

A TAP é notícia. Outra vez. Seja pela possível intervenção estatal ou pelo plano de retoma na era pós-Covid, a companhia aérea de bandeira nacional aparenta estar a tornar-se, novamente, uma arma de arremesso político. É difícil de encontrar uma empresa em Portugal que gere tanta controvérsia. E nós, como portugueses, adoramos controvérsias. Mas não gostamos de coerência.

Vamos por pontos. Não são muitos.

A indústria do transporte aéreo é paradoxal. Embora ao longo da história tenha existido um crescimento sistemático e significativo da procura, a performance financeira das companhias aéreas tem sido marginal; seria de supor o oposto. A sua margem de lucro é, curiosamente, das mais baixas dentro do próprio sector. Analisando o ROIC (Return on Invested Capital, que não é nada mais que o lucro expresso como percentagem do capital investido e não de facturação) observamos que as companhias aéreas têm demonstrado o valor mais baixo de toda a indústria. Esta situação apenas se inverteu recentemente, onde assistimos a um período em que o ROIC cresceu significativamente (2015-2018) e superou o custo médio ponderado de capital (WACC).

Via IATA (2013)

Via IATA (2013)

IATA (2019)

IATA (2019)

Isto significa que que outras empresas tais como os “lessors”, aeroportos, companhias de handling ou mesmo as agências de viagem têm um ROIC superior às companhias aéreas, as entidades que, de facto, operam as aeronaves. Adicionalmente, o transporte aéreo tem um ROIC inferior a outras indústrias, como a do papel, restauração ou mesmo camionagem. Curioso, não é? Especialmente quando necessita de uma impressionante quantidade de capital. Em termos de EBIT (lucros antes de juros e taxas), este ronda os 5% nos últimos anos a nível global. E porque é que isto é importante? É importante para entendermos como qualquer pequena perturbação da operação normal de uma companhia aérea tem consequências significativas sobre a sua já pequena margem de lucro. Se juntarmos a isto o facto de a aviação ser uma indústria que, por natureza, opera num ambiente global, é fácil entender a importância que factores externos têm na operação. Desde conflitos militares a migrações. De eventos climáticos e crises políticas. De novas inovações tecnológicas a pandemias. O impacto que estes eventos, que não são controláveis, podem ter numa companhia aérea é impressionante. Aliás, estamos a viver um deles: a pandemia SARS-CoV-2 colocou todas as companhias aéreas de joelhos. Segundo a associação internacional de companhias aéreas (IATA), a indústria de transporte aéreo já perdeu mais de 314 mil milhões de Dollars desde o início da crise.

E este será o segundo ponto: não é apenas a TAP que está a passar por dificuldades. São todas as companhias aéreas a nível global. Empresas como o grupo Lufthansa, Vueling e Iberia (IAG), AirFrance, KLM, Delta, American Airlines, United e até Ryanair (empresas tradicionalmente com uma margem de lucro bastante acima da média) viram-se obrigadas a negociar ajuda ou apoio estatal. A TAP (que entrou o ano passado no top quinze das maiores companhias aéreas europeias) é, curiosamente, a única que ainda não sabe se terá algum tipo apoio e, se existir, em que moldes. E isso gera uma incerteza enorme para a empresa. Enquanto todas as suas concorrentes directas já sabem de alguma forma com o que podem contar, a TAP não sabe, o que a coloca numa incrível desvantagem estratégica nesta fase de retoma. Esta indefinição e esta demora por parte do Estado Português em iniciar negociações é incompreensível, especialmente tendo em conta que este detêm 50% da companhia. Ou “sim” ou “não”, mas é rapidamente necessária uma resposta, e um esclarecimento sobre as eventuais condições impostas pelo Estado (que são legítimas).

Isso leva-nos ao terceiro ponto: é a TAP essencial para o país? Sim e não. Para um conceito abstracto daquilo que é um país, não. Mas para o país que somos, Portugal, sim, a TAP é fundamental. Repito: fundamental. Bem ou mal, Portugal é hoje extremamente dependente do turismo. Este é, de facto, o sector com maior peso no nosso produto interno bruto (PIB): 13.1% segundo o INE (valores de 2017). E segundo a União Europeia, 23.1% do emprego gerado em Portugal está directamente ou indirectamente relacionado com este sector (colocando Portugal apenas atrás da Grécia e da Croácia). Em 2019 Portugal recebeu 27 milhões de turistas, dos quais 16 milhões de nacionalidade estrangeira tendo a maioria chegado por via aérea. A TAP em 2019 transportou mais de 17 milhões de passageiros, dos quais uma percentagem significativa passou – e gastou – em Portugal. Por si só isso daria que pensar, mas o facto de ser uma empresa nacional, baseada em Portugal, proporciona e permite a presença de um HUB em Lisboa, algo estrategicamente importantíssimo para o país. Ao invés de sermos um ponto de passagem secundário na Península Ibérica, a presença de um HUB em Portugal é gerador de riqueza. O desaparecimento da TAP facilmente deslocaria a operação que hoje temos em Portugal – especialmente longo curso - para outros aeroportos estrangeiros como, por exemplo, Madrid. O grupo IAG que adquiriu a Air Europa recentemente (uma das maiores concorrentes da TAP para a América do Sul, com base em Madrid), e que também possui a Iberia (que em conjunto com a Air France, Air Europa e TAP são as quatro empresas com mais voos Europa-América do Sul), estaria numa posição privilegiada para assumir parte significativa da operação da TAP. Mas pondo de parte esta visão estratégica, de longo prazo, coloca-se a questão: compensa ao Estado ajudar a companhia aérea nacional com, digamos, mil milhões de Euros? Primeiro que tudo convém esclarecer que esta ajuda não tem de ser a fundo perdido: poderá ser um empréstimo com condições favoráveis ou de cariz obrigacionista, por exemplo, o que significaria que o contribuinte português receberia o retorno do seu investimento a curto prazo. Posto isto, a TAP tem um impacto directo e indirecto no PIB português de 2%. Pagou em impostos e contribuições ao Estado em 2019 328 milhões de Euros. Emprega em Portugal mais de 9000 trabalhadores, que representaram em 2019 um encargo com pessoal na ordem dos 740 milhões de Euros. É fácil entender que só em impostos perdidos, a suposta ajuda do Estado estaria paga em pouco mais de três anos, e que 740 milhões de Euros de ordenados convertidos em subsídios de desemprego representariam um encargo ainda maior. É simples de concluir que a perda da empresa teria um custo muitíssimo superior para o Estado no curto prazo, do que um empréstimo ou injecção de capital. Mas existe sempre o argumento que se a TAP não existir outro concorrente irá tomar a sua posição no mercado. É verdade: em mercado liberalizado é isso que acontece, não existem espaços vazios. No entanto existe uma certeza: esses concorrentes não seriam nacionais. E uma empresa que paga impostos lá fora, na Alemanha, Londres ou Amsterdão, não gerará a riqueza que gera a TAP para o país e para o Estado, e terá Lisboa como destino e não como origem, deitando por terra o projecto de HUB já falado. Afinal, nós, como portugueses gostamos tanto de criticar – e bem! – empresas que por cá operam e pagam os impostos lá fora, e parece que estamos desejosos que também aqui, no transporte aéreo, ocorra o mesmo.

Finalmente, chegamos ao último ponto: a nossa facilidade como povo de achincalhar aquilo que nos é importante. É totalmente legítimo criticar a gestão da TAP. É totalmente legítimo interrogar sobre planos futuros e questionar o não cumprimento dos objectivos financeiros do plano estratégico. E é totalmente legítimo exigir condições para que a ajuda do estado português se materialize. No entanto, já não é compreensível qualquer tipo de interferência política nas decisões operacionais da companhia ou utilizá-la para fazer campanha. Ou então temos de ser coerentes, e escolher se queremos uma companhia que se torne rentável, ou se queremos uma que voe as rotas que queremos, mesmo não existindo procura, por mero capricho ou ambição pessoal. É que ter as duas é impossível. E teremos de pagar bem mais pela segunda opção. E a classe política neste aspecto esteve - e está - muito mal. Deveria ser do interesse nacional uma TAP saudável que crie riqueza ao país. E país é a palavra importante aqui. Somos um todo, e não um aglomerado de regiões. Caso contrário todas têm, legitimamente, ambições próprias, mas que são incompatíveis com esse principal objectivo. A instrumentalização da TAP - de gestão privada - para exacerbar a divisão nacional ou conflitos regionais é, acima de tudo, populismo. E diz muito sobre a nossa incapacidade de ter uma visão estratégica a nível nacional, que é infelizmente e regularmente substituída por uma visão individual, redutora e de curto prazo.

Compreendo que como país estamos fartos de intervenções estatais. Estamos saturados de ver dinheiro público mal gasto. Mas esta pandemia é uma situação excepcional, em que todas as companhias aéreas a nível global estão em igual situação, e em que o sector do transporte aéreo – essencial para o turismo, para a economia nacional e para o país – é especialmente afectado. Pura e simplesmente a esmagadora maioria das companhias aéreas desapareciam sem qualquer tipo de apoio e todas elas, e a indústria como um todo, precisa urgentemente de ajuda.

Ajudar a TAP não é um capricho. Não é um desvario. Não é uma teimosia. É uma necessidade. A TAP é estrategicamente importante para o nosso país, tal como ele existe hoje. E ao contrário do que possa parecer, sairá mais barato ao Estado intervir do que deixar cair a companhia.

Muito, mas muito, mais barato.

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Foto: TAP Air Portugal

Quem diria

Lá fora silêncio. Não fossem as motas do Uber Eats que ocasionalmente sobem e descem a rua à procura do seu cliente esfomeado, poderia dizer-se que estaríamos num cenário de filme. Ou em um dia de Agosto em Lisboa, quando as ruas aparentam vazias. 

Os acontecimentos têm uma tendência engraçada de nos apanhar eventualmente. E este povo, que tantas vezes pensa que “só acontece aos outros”, vê-se agora confrontado com um confinamento forçado. “Cabrão do vírus” pensarão muitos. 

E quem diria? 

Quem diria que depois de nos queixarmos tanto de sair de casa para trabalhar, agora nos queixamos por ficar nela? 

Quem diria que, mesmo assim, há quem insista em por em risco os seus concidadãos e não cumpra o estabelecido.

Quem diria que, afinal, damos valor ao Serviço Nacional de Saúde? 

Quem diria que, realisticamente, aqueles trabalhadores essenciais ao país são aqueles que menos estimamos e menos recompensamos: os funcionários de grandes superfícies comerciais. Os estafetas. Os homens do lixo. Os padeiros e os camionistas. Os que fazem que isto não pare. 

Quem diria que, aqueles que sempre lutaram pela melhoria das suas condições de trabalho, e que viram a sua profissão denegrida pelo poder político, como os enfermeiros, são aqueles a quem mais se exige agora?

Quem diria que, aqueles a quem sempre acusámos de serem uma classe privilegiada, como os médicos, são aqueles que agora nos salvam a vida

Quem diria que, aqueles que sempre ignorámos, os cientistas, são hoje a esperança da Humanidade para um futuro melhor?

Quem diria que, aqueles que sempre criticámos e ignorámos, como os Polícias, são aqueles que arriscam, mais uma vez, a sua saúde para garantir a ordem e a segurança de todos? 

Quem diria que, aqueles que sempre acusámos de chulos, os militares, estão mais uma vez a apoiar a sociedade civil com tudo o que têm? 

Quem diria que, afinal, precisamos todos uns dos outros. E que viver em sociedade é isso mesmo? Reconhecer que somos parte de algo, com direitos e deveres, e não um indivíduo para o qual todos os restantes trabalham.

Pode ser que daqui a alguns anos nos venhamos a aperceber que foi nesta altura que os portugueses ganharam uma maior cultura de cidadania. Que foi nesta altura que se tornaram menos egoístas. Que foi nesta altura que se tornaram mais humildes. 

E aí então, talvez, alguém venha a clamar: quem diria, tornámo-nos um povo melhor.

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(Foto de capa: La Repubblica, jornal italiano)

Esses gajos dos helicópteros

“Epah”, dizia, “não é bem assim”. Faz uns dias foi assim que respondi a um colega. Estávamos os dois no cockpit, algures sobre Espanha a trinta e sete mil pés, e falávamos de um traço muitas vezes associado ao povo português: a mesquinhez. Eu, de forma algo ingénua, ainda acreditava que aquilo seria uma reputação injusta.

 Os últimos dias provaram-me (mais uma vez) errado. Viver e aprender, como dizem os norte-americanos. Somos mesquinhos. E não é pouco.

 Após o recente falecimento de um piloto de combate a incêndios no norte do país, e pelo facto de o mesmo ser oficial piloto da Força Aérea, multiplicaram-se os comentários, manchetes e notícias sobre como pilotos militares participavam no combate a incêndios pondo em causa a sua legitimidade. “Militares tiram férias para ganhar milhares a apagar incêndios” foi, a título de exemplo, uma das manchetes publicada num jornal nacional. Às vezes, a forma como se escreve diz mais que o seu conteúdo.

Vamos lá esclarecer uma coisa: devemos ser o único país onde alguém nas suas férias decide trabalhar, em detrimento do seu descanso, em prol dos seus compatriotas e isso é visto como negativo.

Mas qual é o problema?

Porque é militar? Estava devidamente autorizado (como estavam todos) pela chefia máxima desse ramo militar, cumprindo todos os parâmetros exigidos pela lei e pela instituição militar.

Porque existem pilotos civis? A falta de pilotos de helicópteros com os requisitos mínimos para combate a incêndios, e disponíveis a fazê-lo, é tão significativa que obriga a “importar” pilotos estrangeiros, como é exemplo os elementos de nacionalidade espanhola e brasileira que neste momento voam em Portugal.

Porque é remunerado? Voar um helicóptero, com um balde cheio de água em carga suspensa, durante dez horas diárias num dos ambientes mais hostis em termos aeronáuticos, com orografia do terreno acidentada, obstáculos artificiais como postes de alta tensão, e turbulência extrema causada pelo incêndio é digno de quê? Uma palmada nas costas e um copo de água? Um “gosto” no Facebook? Uma corrente de amizade online? E, já agora convém lembrar, numa função que representa a defesa do património de todos os portugueses.

Confesso… às vezes não compreendo o que se passa na mente colectiva de quem habita este pequeno país. A Força Aérea Portuguesa não é um a prisão. Os seus militares – e neste caso concreto os seus pilotos – são elementos altamente treinados, profissionais e com valências distintas. Mas têm vidas para além da tropa. Têm famílias. Têm férias como todos nós. E sim, a sua formação é paga pelo erário público, tal como qualquer elemento da função pública ou formado pelo estado. Vamos portanto, pela mesma ordem de ideias, proibir os médicos formados em faculdades públicas portuguesas de exercer no privado? Vamos impedir um funcionário das finanças de abrir o seu negócio? Vamos impedir um bombeiro sapador de, nas suas férias, trabalhar como vigilante florestal para uma entidade privada? Vamos impedir um agente da PSP de ter um part-time se ele quiser providenciar melhores condições financeiras para a sua família?

Que diferença esta… da nossa mentalidade latina para a mentalidade anglo-saxónica onde ter vários empregos, onde trabalhar mais para “subir na vida”, é visto com admiração. E não com o escárnio e mal dizer que caracteriza a nossa reacção.

E faço aqui a minha declaração de interesses: fui piloto da Força Aérea. Fui piloto de helicópteros. Não fui piloto de combate a incêndios. E só tenho a agradecer a todos aqueles que todos os dias entram num helicóptero ou avião para combater um incêndio no meu país. E é justo o que ganham para o fazer? Claro que não. Deveriam ganhar o triplo.  

O Oficial Piloto Aviador que perdeu a vida foi Socorrista. Era Bombeiro. Era Piloto de Busca e Salvamento. Era Piloto de Combate a Incêndios. Porra, até os dois cães que tinha foram treinados pelo próprio, no seu tempo livre, para serem cães de busca e salvamento. Dedicou, literalmente, toda a sua existência à salvaguarda da vida dos seus compatriotas.

 Merecia mais de nós.

 Muito mais.

 

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Foto de capa: autor desconhecido

Há 50 anos fomos à lua. E agora?

Existem gerações que têm o privilégio, e a sorte, de viverem em alturas incríveis. De observarem momentos que definem a humanidade. De viverem a História em directo. Hoje celebra-se um desses dias. Há cinquenta anos o Homem aterrava na lua; chegámos lá depois de uma viagem de quatro dias. E a nave que “nos” levou tinha um computador de bordo com um poder de cálculo inferior ao de uma simples calculadora de bolso. Fantástico e inspirador.

1969 foi para a aeronáutica, e para todos os efeitos, um ano excepcional: o Homem foi à lua, o Concorde voaria pela primeira vez e o consórcio Airbus seria criado.

Passados estes cinquenta anos onde está a nossa curiosidade? A nossa vontade de descobrir? De ir mais longe, mais alto, mais rápido? O que se passou com a nossa capacidade de filtrar conhecimento? De pensar pela nossa cabeça? De ambicionar melhor e de procurar fazer coisas novas?

Apollo11

Há uma observação acutilante no livro “Art of the Long View”, de Peter Schwartz. Ao analisar os Estados Unidos do final do século passado, o autor tenta perceber o que se passou com a motivação social do povo americano. Enquanto que na década de sessenta um problema era encarado como um desafio – a ida à lua, a maior das epopeias da Humanidade era o maior exemplo – no final do século XX qualquer problema – o exemplo dado era a falta de infraestruturas nas maiores cidades americanas – era assumido como uma inevitabilidade sem solução, e não como um desafio. A percepção de como encarar “algo” difícil tinha, socialmente, mudado.

 Nós, como espécie, estamos presos nessa mesma letargia.

 Vivemos numa época em que ainda existe quem pense que o planeta é plano. Mesmo cinquenta anos depois de da Lua termos visto o globo a que chamamos “casa”.

Vivemos numa época em que parte da população não vacina os filhos, mesmo após décadas de investigação científica, doenças erradicadas e um aumento incrível da esperança média de vida.

Vivemos numa época em que indivíduos com poder de decisão ignoram de forma intencional o conselho de quem percebe: a comunidade científica.

Vivemos numa epóca em que o valor da verdade, na comunicação pública e política, aparenta ser nulo.

Se Neil Amstrong e a Buzz Aldrin imaginassem isso enquanto caminhavam pela lua (e já agora a Michael Collins enquanto orbitava alguns quilómetros acima) certamente se interrogariam que raio se teria passado connosco.

Está na altura de voltar a ganhar o foco. De pararmos com merdas. De olharmos novamente para o desconhecido e encarar os nossos problemas como desafios. E de ir em frente. De lembrar que unidos somos capazes de feitos fantásticos.

Faz cinquenta anos que fomos à lua caramba!

A agora?

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Dever e sacrifício

O jornal Expresso publica hoje uma entrevista ao militar Comando Aliu Camará. Hoje com vinte e três anos, Aliu chegou a Portugal com doze. Ingressou nos Comandos em 2016. Na sua segunda missão na República Centro-Africana sofreu um acidente que lhe retirou a mobilidade: as duas pernas de Aliu foram amputadas devido a ferimentos. 

O caso de Aliu está a provocar uma reacção por parte chefias militares. Pretende-se que todos os militares que fiquem feridos durante o decorrer da sua actividade, e que daí resulte incapacidade física, sejam integrados nos quadros permanentes das Forças Armadas. Aliu, que é militar em regime de contrato, veria assim a possibilidade de continuar nos quadros e de ter garantido trabalho para o resto da sua vida. 

Aliu, hoje, na capa do Expresso.

Aliu, hoje, na capa do Expresso.

Só peca por tardia esta medida. 

E esse é, ainda, um problema: é apenas uma intenção. E Portugal, tal como o Inferno, está cheio de boas intenções. A tradicional burocracia portuguesa, acompanhada de uma tão comum e disseminada indiferença, tende a fazer cair no esquecimento medidas semelhantes. Aliu é um. Um entre vários portugueses que juraram com o sacrifício da própria vida defender a bandeira nacional. E fizeram-no, dando tudo aquilo que tinham. E a palavra “tudo” é bastante bem medida aqui. Deveria envergonhar-nos como Nação só agora estar a ser ponderado algo deste género.

A bola, agora e como se costuma dizer, está do lado do campo político. E também do lado das chefias militares, convém não esquecer. Que, se fizerem o que lhes compete, se forem minimamente competentes, se forem Homens de carácter, com coragem, e se forem independentes, farão tudo para que a medida avance. E que avance rápido. 

Aliu é Português. Aliu é militar. Aliu é Comando. E sempre será. E sem as duas pernas diz que sairá do Hospital Militar de pé. Disso não há nenhuma dúvida. Porque ali, naquele rapaz nascido na Guiné, está a verdadeira definição de garra e perseverança. Não só sairá de pé como sairá muito mais elevado que tantos outros que o deveriam defender. 

É que Aliu cumpriu, com brio, o seu dever. 

E nós Nação, vamos cumprir o nosso? 

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Foto de capa: Exército Português

O primeiro



Início de Setembro, 2011, Porto Santo. Arrisco-me a dizer que é a altura ideal. O tempo, esse, é de Verão e a ilha encontra-se mais calma após a loucura de Agosto mas ainda com suficiente actividade para não nos sentirmos isolados do mundo. Encontrava-me em mais duas semanas de destacamento – mais duas entre inúmeras outras – a garantir o alerta de busca e salvamento nesta área do país. “Ao menos tinha sorte com o tempo”, reflectia. 

Na altura encontrava-me qualificado como “P – Piloto”. O chamado “P” é a qualificação intermédia entre co-piloto e piloto comandante. Significa que curso de comando está feito, voa-se à direita no cockpit – no lugar do comandante – fazendo tudo aquilo que ele faria, incluindo a parte operacional, com a nuance que do lado esquerdo se senta um comandante qualificado que nos guia e ajuda. Esta era uma forma excepcional de o piloto ganhar confiança, experiência e aprender com outros comandantes até ser “largado” como piloto comandante operacional. Na essência, um “P” era um quase comandante. E apenas passaria a tal quando todos os outros comandantes da Esquadra achassem que aquele elemento estaria pronto a assumir o comando de uma tripulação de busca e salvamento numa missão real. E isso não é uma decisão que se tome com leviandade. 

Para nós, os “P” da altura, a primeira missão real de guincho barco era um marco crucial. Seria a primeira vez que, sentados à direita, iríamos estar aos comandos do helicóptero durante uma recuperação de guincho real de uma embarcação. Real. Isso significa que nas nossas mãos estaria a vida do nosso camarada Recuperador Salvador, amarrado no guincho à mercê das nossas capacidades – ou falta delas! – e a vida dos náufragos ou resgatados que iríamos ajudar. Por mais que à nossa esquerda estivesse um comandante de pleno direito, a operação só teria sucesso se nós fossemos profissionais. A palavra “responsabilidade” tomava aqui uma outra dimensão. 


E é em mais um belo dia na ilha Dourada que toca o telefone. 

“Nunes, vamos embora. Vamos voar”, dizia o comandante do outro lado. 

A adrenalina é instantânea. 

“Foda-se. Queres ver que é desta?”, penso. 

Corro para o quarto, calções fora, fato de voo vestido, e ainda me estou a calçar enquanto cruzo a porta do quarto. 

A tripulação encontra-se à porta do hotel, entramos todos na carrinha azul – mais conhecida no Porto Santo do que Zarco ou Colombo – e partimos em direcção ao hangar onde se encontra o EH-101 “Merlin”. Este hangar, e alguns pequenos edifícios de apoio, situam-se na parte norte do aeroporto de Porto Santo, na área militar. 

Na carrinha o Comandante já tem mais algumas informações. A missão para hoje é resgatar um dos elementos da tripulação do navio “GLORIOUS DOUGLAS” a cento e trinta milhas a norte do Porto Santo. 

“Vou à direita?”, pergunto? 

Recebo um daqueles olhares como quem diz “Não, queres ver que vais a coçar tomate?”. 

“Yeup”, é a resposta exacta. 

Comigo um dos operadores de sistema (guincho) mais antigos na esquadra, um recuperador salvador de mão cheia (e grande amigo) e provavelmente o enfermeiro com mais experiência em evacuações aeromédicas em todas as forças armadas. Logo aí fico mais calmo – é mais difícil meter as patas com malta tão profissional a bordo.

O sol brilha. Cheira a praia. Motores em marcha, descolo e rumamos a norte. A caminho entramos em contacto com o Comando Aéreo da Força Aérea, em Lisboa, através de rádio de alta frequência. Recebemos mais informações sobre a posição do navio e o estado do paciente. A sessenta milhas tentamos o primeiro contacto com o navio. Informamos o mesmo que deverá alterar a sua rota para um rumo que seja trinta graus a estibordo da direcção do vento para facilitar a recuperação. Aqui vem a primeira surpresa: como estavam a rumar sul iriam precisar entre dez a doze minutos (!) para alterarem a rota. “Este deve ser dos grandes”, comentamos. Tanto tempo para uma mudança de rota, significa que seria um navio com dimensões consideráveis. Perfeito, coincidia com o nosso horário de chegada. 

O primeiro(a) nunca se esquece, não é o que dizem? (Foto: autor desconhecido)

O primeiro(a) nunca se esquece, não é o que dizem? (Foto: autor desconhecido)

E era-o. Nem sempre fui um tipo a quem a sorte sorrisse constantemente na vida. Mas nas alturas cruciais ela tem sido uma bela companheira. O navio era enorme. A área de recuperação, na popa, a maior e mais desimpedida de obstáculos que tinha visto até então. O mar, esse, estava chão. Nem um metro de vaga. E o vento era uma ligeira brisa que soprava de forma constante. Não eram só as melhores condições que tinha visto enquanto “P”. Eram as melhores condições que tinha visto em qualquer voo, de treino ou real, que tinha feito até então na Esquadra.

“Ou vai ou racha”, penso. Damos início à operação, já coordenados com o navio.

“Podes colocar o homem à porta”, verbalizo. 

“Dez à direita, vinte em frente”, diz a voz calma do operador de guincho. O Recuperador Salvador já se encontra no éter que separa o nosso helicóptero de catorze toneladas daquele navio com milhares mais. 

“Oito à direita, dez em frente”. 

Tento ser o mais suave possível nos comandos. Cíclico (o nosso manche) um pouco para a frente e para a direita, colectivo como necessário para manter a altura constante.

“Seis à direita, cinco em frente.”

Mais um pouco. “Não faças merda agora”, corre-me pela mente.

“Três à direita, um em frente”.

“Dois à direita”.

“Um à direita”.

“À vertical, mantenha!”

Asseguro as minhas referências visuais, já obtidas durante um estacionário prévio. Agarro-me a elas como um cão se agarra a um osso. 

“Mantenha... Contacto!”, diz o operador de guincho. 

Para um piloto de busca e salvamento há poucas palavras mais bonitas que aquela: “contacto”. Significa que o Recuperador Salvador está seguro no convés do navio.

“Contacto, foda-se!”, penso interiormente. O pico de stress, a colocação do homem no convés, estava feita. 

O Recuperador-Salvador efectua os seus procedimentos e prepara o membro da tripulação, de nacionalidade ucraniana, para a recuperação. O processo repete-se, volto a colocar o helicóptero à vertical da posição e à voz de “Quinze à esquerda” já sei que o Recuperador Salvador e o resgatado se encontram suspensos pelo guincho. Afasto o helicóptero da vertical do navio até estarmos suspensos sobre o oceano.

Todos dentro do helicóptero. O enfermeiro inicia o apoio à vítima. Voltamos a Sul, despedimo-nos do navio e rumamos ao heliporto do hospital do Funchal. 

Durante o voo para sul apercebo-me que “já está”. A minha primeira missão de recuperação em navio operacional a voar à direita estava feita. E tinha corrido bem. 

Aterramos em Porto Santo já ao final do dia. Vamos jantar todos e regressamos ao hotel. Assim que a cabeça toca na almofada adormeço instantaneamente. Durante esse destacamento efectuámos mais três missões operacionais de evacuação entre ilhas. E sempre a voar à direita. 

Mal sabia eu que que iria passar a voar naquele lugar de forma permanente em breve. Ganharia o meu comando no final daquele mês. 

O primeiro(a) nunca se esquece, não é o que dizem?  

www.merlin37.com/oprimeiro

Foto de capa: Menso Van Westrhenen

Desilusão

Desilusão porque quase 70% de abstenção é um recorde histórico (negativo).  

Desilusão porque 70% deixaram na mão de 30% a decisão de quem nos representará na Europa nos próximos cinco anos. 

Desilusão porque hoje em dia grande parte da legislação posta em prática em Portugal é definida em Bruxelas. E com esta abstenção estamos a mostrar indiferença por algo que nos afecta directamente. 

Desilusão porque amanhã de manhã irão continuar a existir as conversas de café e o queixume do costume quando, na realidade, 70% deixaram de ter legitimidade para tal. 

Desilusão porque, independentemente da orientação política, o que não faltava nestas eleições era alternativas. Da chamada Esquerda à Direita, a quantidade de partidos (e programas) cobria quase todo o espectro de opinião.

Desilusão porque, mesmo assim, não era preciso votar em nenhum. Podia ser em branco. Podia até ser um “viva o Benfica” escrito no boletim de voto. Ou mesmo um vernáculo mais violento para com alguém. Mas aparecia-se. Estava-se lá e respeitava-se o processo democrático, demonstrando que a preocupação, e o respeito, de estar presente existia. 

Desilusão porque por mais que a campanha eleitoral tenha sido desastrosa e focada em tudo menos no que era importante - a Europa - era no boletim de voto que se deveria demonstrar o nosso protesto.

Desilusão porque, por mais zangados, frustrados ou desiludidos que estejamos, este ainda é o melhor sistema político existente. E é votando que o valorizamos e lhe damos força.

Desilusão porque muitos lutaram, sofreram e perderam a vida para que as gerações futuras pudessem, simplesmente, colocar uma cruz num boletim de voto - de anos a anos. 

Desilusão porque é assim que se fomenta, e incentiva, o surgimento da incompetência, do conformismo e dos “profissionais da política” que, percebendo a inacção da base do sistema democrático, se instalam calmamente nas cadeiras do poder.

Desilusão, e já agora vergonha, porque 70% dos meus compatriotas acharam que não era importante.

Mas era. Muito.

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