O primeiro



Início de Setembro, 2011, Porto Santo. Arrisco-me a dizer que é a altura ideal. O tempo, esse, é de Verão e a ilha encontra-se mais calma após a loucura de Agosto mas ainda com suficiente actividade para não nos sentirmos isolados do mundo. Encontrava-me em mais duas semanas de destacamento – mais duas entre inúmeras outras – a garantir o alerta de busca e salvamento nesta área do país. “Ao menos tinha sorte com o tempo”, reflectia. 

Na altura encontrava-me qualificado como “P – Piloto”. O chamado “P” é a qualificação intermédia entre co-piloto e piloto comandante. Significa que curso de comando está feito, voa-se à direita no cockpit – no lugar do comandante – fazendo tudo aquilo que ele faria, incluindo a parte operacional, com a nuance que do lado esquerdo se senta um comandante qualificado que nos guia e ajuda. Esta era uma forma excepcional de o piloto ganhar confiança, experiência e aprender com outros comandantes até ser “largado” como piloto comandante operacional. Na essência, um “P” era um quase comandante. E apenas passaria a tal quando todos os outros comandantes da Esquadra achassem que aquele elemento estaria pronto a assumir o comando de uma tripulação de busca e salvamento numa missão real. E isso não é uma decisão que se tome com leviandade. 

Para nós, os “P” da altura, a primeira missão real de guincho barco era um marco crucial. Seria a primeira vez que, sentados à direita, iríamos estar aos comandos do helicóptero durante uma recuperação de guincho real de uma embarcação. Real. Isso significa que nas nossas mãos estaria a vida do nosso camarada Recuperador Salvador, amarrado no guincho à mercê das nossas capacidades – ou falta delas! – e a vida dos náufragos ou resgatados que iríamos ajudar. Por mais que à nossa esquerda estivesse um comandante de pleno direito, a operação só teria sucesso se nós fossemos profissionais. A palavra “responsabilidade” tomava aqui uma outra dimensão. 


E é em mais um belo dia na ilha Dourada que toca o telefone. 

“Nunes, vamos embora. Vamos voar”, dizia o comandante do outro lado. 

A adrenalina é instantânea. 

“Foda-se. Queres ver que é desta?”, penso. 

Corro para o quarto, calções fora, fato de voo vestido, e ainda me estou a calçar enquanto cruzo a porta do quarto. 

A tripulação encontra-se à porta do hotel, entramos todos na carrinha azul – mais conhecida no Porto Santo do que Zarco ou Colombo – e partimos em direcção ao hangar onde se encontra o EH-101 “Merlin”. Este hangar, e alguns pequenos edifícios de apoio, situam-se na parte norte do aeroporto de Porto Santo, na área militar. 

Na carrinha o Comandante já tem mais algumas informações. A missão para hoje é resgatar um dos elementos da tripulação do navio “GLORIOUS DOUGLAS” a cento e trinta milhas a norte do Porto Santo. 

“Vou à direita?”, pergunto? 

Recebo um daqueles olhares como quem diz “Não, queres ver que vais a coçar tomate?”. 

“Yeup”, é a resposta exacta. 

Comigo um dos operadores de sistema (guincho) mais antigos na esquadra, um recuperador salvador de mão cheia (e grande amigo) e provavelmente o enfermeiro com mais experiência em evacuações aeromédicas em todas as forças armadas. Logo aí fico mais calmo – é mais difícil meter as patas com malta tão profissional a bordo.

O sol brilha. Cheira a praia. Motores em marcha, descolo e rumamos a norte. A caminho entramos em contacto com o Comando Aéreo da Força Aérea, em Lisboa, através de rádio de alta frequência. Recebemos mais informações sobre a posição do navio e o estado do paciente. A sessenta milhas tentamos o primeiro contacto com o navio. Informamos o mesmo que deverá alterar a sua rota para um rumo que seja trinta graus a estibordo da direcção do vento para facilitar a recuperação. Aqui vem a primeira surpresa: como estavam a rumar sul iriam precisar entre dez a doze minutos (!) para alterarem a rota. “Este deve ser dos grandes”, comentamos. Tanto tempo para uma mudança de rota, significa que seria um navio com dimensões consideráveis. Perfeito, coincidia com o nosso horário de chegada. 

O primeiro(a) nunca se esquece, não é o que dizem? (Foto: autor desconhecido)

O primeiro(a) nunca se esquece, não é o que dizem? (Foto: autor desconhecido)

E era-o. Nem sempre fui um tipo a quem a sorte sorrisse constantemente na vida. Mas nas alturas cruciais ela tem sido uma bela companheira. O navio era enorme. A área de recuperação, na popa, a maior e mais desimpedida de obstáculos que tinha visto até então. O mar, esse, estava chão. Nem um metro de vaga. E o vento era uma ligeira brisa que soprava de forma constante. Não eram só as melhores condições que tinha visto enquanto “P”. Eram as melhores condições que tinha visto em qualquer voo, de treino ou real, que tinha feito até então na Esquadra.

“Ou vai ou racha”, penso. Damos início à operação, já coordenados com o navio.

“Podes colocar o homem à porta”, verbalizo. 

“Dez à direita, vinte em frente”, diz a voz calma do operador de guincho. O Recuperador Salvador já se encontra no éter que separa o nosso helicóptero de catorze toneladas daquele navio com milhares mais. 

“Oito à direita, dez em frente”. 

Tento ser o mais suave possível nos comandos. Cíclico (o nosso manche) um pouco para a frente e para a direita, colectivo como necessário para manter a altura constante.

“Seis à direita, cinco em frente.”

Mais um pouco. “Não faças merda agora”, corre-me pela mente.

“Três à direita, um em frente”.

“Dois à direita”.

“Um à direita”.

“À vertical, mantenha!”

Asseguro as minhas referências visuais, já obtidas durante um estacionário prévio. Agarro-me a elas como um cão se agarra a um osso. 

“Mantenha... Contacto!”, diz o operador de guincho. 

Para um piloto de busca e salvamento há poucas palavras mais bonitas que aquela: “contacto”. Significa que o Recuperador Salvador está seguro no convés do navio.

“Contacto, foda-se!”, penso interiormente. O pico de stress, a colocação do homem no convés, estava feita. 

O Recuperador-Salvador efectua os seus procedimentos e prepara o membro da tripulação, de nacionalidade ucraniana, para a recuperação. O processo repete-se, volto a colocar o helicóptero à vertical da posição e à voz de “Quinze à esquerda” já sei que o Recuperador Salvador e o resgatado se encontram suspensos pelo guincho. Afasto o helicóptero da vertical do navio até estarmos suspensos sobre o oceano.

Todos dentro do helicóptero. O enfermeiro inicia o apoio à vítima. Voltamos a Sul, despedimo-nos do navio e rumamos ao heliporto do hospital do Funchal. 

Durante o voo para sul apercebo-me que “já está”. A minha primeira missão de recuperação em navio operacional a voar à direita estava feita. E tinha corrido bem. 

Aterramos em Porto Santo já ao final do dia. Vamos jantar todos e regressamos ao hotel. Assim que a cabeça toca na almofada adormeço instantaneamente. Durante esse destacamento efectuámos mais três missões operacionais de evacuação entre ilhas. E sempre a voar à direita. 

Mal sabia eu que que iria passar a voar naquele lugar de forma permanente em breve. Ganharia o meu comando no final daquele mês. 

O primeiro(a) nunca se esquece, não é o que dizem?  

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Foto de capa: Menso Van Westrhenen

A Morte não escolhe

Lá fora o vento soprava violentamente, como se quisesse derrotar por submissão o nosso helicóptero. Por baixo de nós o mar estava forte, cavado, com uma ondulação cruel. Tudo a norte do Tejo fazia lembrar Inverno. E estávamos em Julho.  

Ao nosso lado, a pouco mais de quarenta pés, estava um pesqueiro que teimava em não parar quieto. Nós os cinco estávamos ali para retirar e transportar daquela casca de noz alguém que precisava de ajuda urgente. A operação poderia resumir-se de forma simples: iríamos colocar um homem (por sinal, nosso amigo e camarada) num espaço aproximado de um metro quadrado, num pesqueiro que não parava quieto, com ondulação de cinco metros, através de um cabo de aço ligado à nossa máquina que, por provável solidariedade ou mera teimosia também não parava quieta. E assim o fizemos. 

Foto: André Garcez (c) 

Foto: André Garcez (c) 

Servi sob o comando de um Comandante de Esquadra que nos dizia algo do género: 

Quando a morte chega, ela não escolhe postos, não escolhes amizades, não escolhe géneros.

Aquela mensagem teve um forte impacto em mim e na maneira como voava. Significava simplesmente que, dentro daquele helicóptero, todos nós, desde o Piloto Comandante, ao Co-Piloto, ao Operador de Sistemas, passando pelo Recuperador Salvador e Enfermeiro, somos uma equipa. E como tal devemos trabalhar em perfeita sintonia num ambiente de respeito mútuo e total confiança. A missão por si só já era exigente e complexa, portanto era quase que obrigatório que todos estivéssemos na mesma página. Caso contrário, quando a coisa corresse mal, não havia posto ou amizade que se salvasse. Rodas no ar e todos os nossos problemas, pessoais ou não, ficavam em terra. O foco teria de ser só um. E lá dentro todos tínhamos de nos dar bem. 

Na aviação existe um conceito chamado de “Crew Resource Management” (CRM) que, muito resumidamente, defende que uma tripulação deve trabalhar em conjunto, inquirindo-se quando há dúvidas, e sem qualquer receio ou imposição de autoridade por de quem dela a usufrui. Sem medo de represálias entre eles. Um Co-Piloto não deverá ter medo de dizer a um Comandante que está errado e vice-versa. Chamem-lhe honestidade profissional. 

E aquela frase continua a ser uma das melhores referências a CRM que conheço.

Foi para mim um orgulho ter trabalhado em Esquadras de Voo onde em cada voo a confiança no Homem ao nosso lado era total. Quando tive a sorte de ganhar o meu Comando lembro-me claramente de voar em missões reais e sentir uma calma ímpar fruto da confiança plena em toda aquela malta, “presa” comigo naquele pedaço de alumínio e metal compósito. Quando alguém dizia algo sabia que o dizia sem qualquer tipo de restrição ou problema. Aliás, fazia-me mais confusão como é que eles tinham confiança em mim, um puto de 26 anos aos comandos!
Essa confiança, esse CRM, fazia com que fosse possível colocar um dos nossos homens naquele metro quadrado no convés daquele pesqueiro. 

A confiança, o respeito, o saber ouvir e a humildade de reconhecer o erro próprio, são a base de qualquer boa tripulação. De qualquer bom CRM. De qualquer bom aviador e arrisco-me a dizer, de qualquer boa pessoa. 

Se não for assim é bom que nos lembremos todos daquela frase. 

Quando a morte chega, ela não escolhe postos, não escolhe amizades, não escolhe géneros.

E ela anda sempre à espreita. 

A plataforma

MEDIC 11 ready for departure”. 

“You are cleared for take-off MEDIC 11, wind 340, six knots.”

“Siga, vamos embora, dez pés”.

“Hover checks”. 

Início de tarde de um dia Inverno no Montijo. Estávamos em Março e a Primavera já estava ali à porta. Um dia perfeito para qualquer aviador. Sol, pouco vento e aquele calorzinho sorrateiro que nos preenche a alma. Pouco mais de dez minutos depois de termos recebido o alerta para descolar, estávamos a dez pés em voo estacionário a efectuar os últimos “checks” antes de descolar. 

“Tudo OK. Siga”. 

“Descolagem vertical. Rotação aos setenta pés”. 

Colectivo para cima. Setenta pés. Nariz em baixo e ganhamos velocidade. Volta pela esquerda. Pouco depois a torre do Montijo indica-nos que devemos contactar a frequência rádio de Lisboa Approach. 

Mais uma saída de alerta em que todos nós, dentro daquele helicóptero, sabemos o peso que significa ter aquele indicativo: “MEDIC 11”. 

Tínhamos sido informados da necessidade de efectuar uma evacuação urgente de um tripulante da embarcação “COSL INNOVATOR”. O centro coordenador de busca e salvamento naval tinha requerido a activação do meio aéreo à Força Aérea e daí a nossa saída imediata. Geralmente, e sempre que possível, tentamos em um ou dois minutos obter mais informações sobre a embarcação em que iremos efectuar a recuperação. Essa recolha é – muitas vezes – bastante simples. Entrar no Google, pesquisar pelo nome da embarcação, e imprimir à pressa umas imagens para estudo a bordo. Desta vez não foi possível. Estávamos no helicóptero, mil pés sobre o rio Tejo, praticamente “em branco”. Tínhamos a informação que o nosso objectivo se encontrava a navegar sensivelmente a oitenta milhas a nordoeste do Montijo, mais concretamente ao largo de Peniche, e pouco mais. Quando dizíamos que não há voos iguais, não há mesmo. Às vezes não sabemos o que vamos encontrar. A adrenalina sobe.

“Lisboa Approach, muito boa tarde, MEDIC 11, one thousand feet over the river.”

“MEDIC 11, boa tarde, proceed direct to operational area”.

Entramos igualmente em contacto com o Centro coordenador de Busca e Salvamento presente no Comando Aéreo (CA), em Monsanto. 

“Comando Aéreo boa tarde, daqui é o MEDIC 11”.

“MEDIC 11, boa tarde, confirme se é capaz de aterrar na plataforma para recolha do paciente”.

Eu e o co-piloto olhamos instantaneamente um para o outro. Ambos com olhar incrédulo. Aterrar? Plataforma?  Que raio?

Afinal sempre devem ter descoberto petróleo ao largo de Peniche, dizíamos na brincadeira. 

“Comando Aéreo, MEDIC 11, confirme que a embarcação é uma plataforma de petróleo com heliporto operacional?” 

“Afirmativo. Confirme se será possível aterrar”. 

Respiro fundo e suspiro. Nós, que descolámos em pouco mais de dez minutos, sem nenhuma informação específica sobre o nosso objectivo com excepção da sua localização, não temos evidentemente acesso aos requisitos operacionais da plataforma. O heliporto está certificado para que peso? Com que dimensões? Qual a área de segurança? E qual o sector de aproximação preferencial?  Ali, a cento e cinquenta nós de velocidade, a dois mil pés, a cruzar a linha de costa, seria um “pouco” difícil de confirmar esses factos. 

“Comando Aéreo, daqui é o MEDIC11. Vocês terão de obter essa informação. Por favor tentem saber através deles para que peso está certificado o heliporto.”

Com uma estimativa rápida calculamos chegar à posição aproximada da plataforma com mais ou menos treze toneladas de peso. Estamos relativamente pesados. 

“MEDIC 11, Comando Aéreo, a plataforma informa que o heliporto está certificado para doze toneladas ponto oito (12.8)”. 

“Bem”, penso, “essa questão está resolvida”. 

Mais ou menos a trinta milhas iniciamos o contacto com a plataforma na frequência de emergência marítima. 

“COSL INNOVATOR, good evening, this is Portuguese Air Force rescue helicopter calling you on channel sixteen”.

O contacto é curto, claro e conciso como mandam as regras. Um atestado à experiência de navegação da tripulação da plataforma e à sua familiarização com operações aéreas. Assim dá gosto. 

Descobrimos que se encontram a navegar a uma velocidade de quatro nós. Outra surpresa. Sempre assumimos que a plataforma estaria estacionária ao largo da costa. Não estava. Navegava. Uma plataforma que navegava por meios próprios. 

Iniciamos o briefing com a tripulação da plataforma via rápido e, após uma curta conversa entre todos nós, decidimos efectuar um guincho à vertical do heliporto. A zona era relativamente desimpedida (afinal de contas, aterravam por lá máquinas semelhantes à nossa) e tínhamos uma área de segurança em caso de falha de motor. Executamos o reconhecimento à plataforma e efectuamos a operação. 

Pouco menos de dez minutos depois estávamos de regresso, rumo a Lisboa, para entregar ao INEM o nosso paciente. 

Imagens captadas durante a missão de evacuação de um paciente da plataforna COSL Innovator, sensivelmente a 80NM a NW da Base Aérea nº 6, Montijo.

Mais uma missão para o registo da 751

Já tínhamos feito um pouco de tudo. Navios, paquetes, iates, veleiros, pequenas embarcações de pesca, canoas (!), surfistas, náufragos em mar aberto e todo o tipo de material que boiasse e fosse suficientemente forte para aguentar com uma alma humana a bordo. 

Mas uma plataforma a navegar era novidade. Pelo menos nos tempos do EH-101 “Merlin”. Mesmo não tendo aterrado, era a primeira vez... e sendo a primeira vez, claro, o bar de esquadra lá teria de ganhar mais uma grade de cerveja. Mandava a tradição.

E a tradição é soberana. 

Sai uma grade!

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Zee German

Faltavam dois dias para o Natal. Decorria o ano de 2012. Lá fora o sol brilhava. Pela janela do meu quarto via o céu azul. Uma ou outra ocasional nuvem aparecia de vez em quando. Estava na ilha do Porto Santo. Chamam-lhe “Ilha dourada”. Para mim, pelo menos no Inverno, a ilha era mais verde que dourada. Mas, como quase sempre, o bom tempo ali era rei e senhor. Mais um destacamento de duas semanas, mais um Natal longe de casa. 

Para nós – os gajos dos helicópteros – o destacamento de Porto Santo sempre foi o mais calmo. A maioria das evacuações entre ilhas era efectuada pela rapaziada do C-295, igualmente destacado na ilha, e a escassez de tráfego marítimo ao largo da ilha reduzia em muito a necessidade de evacuações a navios ou resgate de náufragos. Vários foram os destacamentos que por ali passei sem voar. Para mim isso era um martírio. A maior das heresias. Este não seria um desses.

Todos os comandantes de destacamento têm um telemóvel próprio para contacto em caso de activação do alerta. Este passa de mão em mão aquando da rendição de tripulações. Receber uma chamada naquele telefone significava uma de duas coisas: ou iríamos voar ou alguém se enganara no número e precisava de encomendar um carregamento de tijolos. Sim,  isso mesmo. Tijolos. Não seria inédito. 

Faltavam portanto dois dias para o Natal. Toca o telefone.

Iríamos ser activados para efectuar uma busca por um turista alemão, desaparecido faz mais de dois dias. Ao ouvir isto sai-me pela boca um honesto “mas só nos activam agora?”. Pensava eu que, tendo em conta a missão da Esquadra, esta seria uma busca por alguém desaparecido numa praia. Um tripulante caído ao mar talvez. Um praticamente de parapente que se viu obrigado a amarar quem sabe – faria várias destas. Dois dias de espera não faria sentido. 

Mas não. Iríamos procurar um turista alemão, de sessenta e poucos anos, que se tinha perdido numa levada algures na zona da Ribeira Brava. As equipas de Busca e Salvamento em terra andavam à dois dias a tentar localizar o indivíduo – que sabiam estar vivo – sem sucesso. 

Ao ouvir as palavras “Ribeira Brava” tenho de imediato uma sensação de arrepio pela espinha. Lembrava-me bem dos voosque os meus camaradas tinham feito durante o temporal da Madeira, ao tentar chegar às populações afectadas naquele vale, o mais profundo e cavado da Madeira. 

“Okapa. Já lhe ligo novamente para mais informações”. Desligo o telefone.

Com uma mão começo a vestir o fato de voo e com a outra começo a ligar para os restantes membros da tripulação. 

“Grande, bom dia! Vamos voar!”

Bota direita calçada mais um elemento avisado. Bota esquerda mais um. Na altura em que passo água pela cara já estão todosavisados. Saímos dos quartos e reunimos no lobby do alojamento. 

“Malta, vamos à Madeira.”

“Evacuação?”

“Nope. Busca.”

“Fodass, busca? Na Madeira?”

Entramos na carrinha – aquela incomparável carrinha azul, que dura dura dura sabes Deus, e a Toyota, como! – e seguimos em direcção à placa militar do aeroporto do Porto Santo. Volto a ligar ao centro de coordenador para obter mais informações: coordenadas exactas, estado de saúde previsível do desaparecido (se conhecido), roupas que usava ou outras informações consideradas úteis. Sou informado que deveríamos aterrar inicialmente no aeroporto do Funchal para embarcar um elemento da Protecção Civil que conhecida a área como ninguém. Seria uma ajuda fundamental.  

Chegamos ao hangar. Todos em passo de corrida. Recolhemos o equipamento de voo. O mecânico e o operador de sistemas vão colocando o helicóptero na rua. APU em marcha e siga. 

“Porto Santo, bom dia, RESCUE 26, request start-up”. 

“Bom dia RESCUE 26, start-up approved, when possible state intentions.”

“1000ft, direct to Madeira, RESCUE 26”

Pomos em marcha e taxiamos pela placa militar até à pista. Assim que alinhamos temos autorização para descolar. 

“RESCUE 26, clear for take-off, runway 36”

Colectivo para cima, nivelamos a dez pés. 

“Hoover checks”, peço. 

Tudo ok. Potência de descolagem. Dez pés, vinte, trinta, quarenta, cinquenta, sessenta pés, manche à frente, velocidade a subir. Ajusto o colectivo. Assim que livramos a pista, volta pela esquerda com direcção ao Funchal. 

“Porra, esta ilha é bonita”, penso para mim mesmo. Por mais isolada que seja, não existe em Portugal água tão azul turquesa como a da ilha Dourada. 

Aterramos no aeroporto do Funchal e recolhemos o nosso precioso passageiro. Ele irá dizer-nos quais as zonas mais prováveis de busca e, em caso de detectarmos o turista alemão, encaminhar os elementos no terreno para o seu resgate. 

Descolamos e seguimos a linha de costa. Assim que estamos junto à entrada do vale voltamos pela direita e entramos no mesmo. Tiro uns segundos para agradecer os meus anos de Esquadra 552 e os ensinamentos do curso de voo de montanha. Como faz falta agora. 

Prosseguimos em direcção à zona da Serra de Água por indicação do nosso passageiro civil. Mal chegamos à zona começamos a sentir um pouco dos efeitos da turbulência orográfica que se faz sentir no local. Era bom que o vento estivesse calmo. Não está. 

A caminho.

A caminho.

Entramos em contacto com os elementos no terreno para saber se existem novidades. Nenhumas. Portanto iniciamos o nosso circuito de busca em redor da serra. 

Lembro-me bem de toda a tripulação estar a discutir o facto de a percepção de dimensão, de tamanho, ser extremamente difícil nestes voos. Avaliar de forma fidedigna o que estamos a ver não é fácil.
Vejo uns pequenos pontos vermelhos e verdes ao redor da montanha. Curioso olho com mais atenção: eram pessoas. Porra, aquilo eram pessoas. Os meus olhos como que inconscientemente estavam à procura de referências visuais maiores. Já tinha passado por aquela zona algumas vezes e de todas as vezes a minha mente viu aqueles dois pontos e considerou-os irrelevantes. “Somos mesmo pequeninos”. Adapto o olhar à nova percepção de “dimensão”. 

A cada volta pela serra apercebemo-nos cada vez mais como será difícil de encontrar alguém ali. Um homem, provavelmente cansado, exausto, no meio de tanto vale, vegetação e rocha. Não parece que tenhamos sucesso. 

A vista daquele dia...

A vista daquele dia...

“Ali, à direita! Viram?”, diz o recuperador salvador. 

“Onde?”, prancho o helicóptero pela direita diminuindo a velocidade. 

“Ali, ali em baixo! Alguém a abanar uma camisola!”

“Epah não vejo nada!”

Dentro do helicóptero todos os elementos se dirigem para janelas do lado direito. 


“Ali, às nossas três horas agora!” repete o recuperador salvador. 

“Já vi!” diz o operador de sistemas.

Carago, e eu não via nada. Mas finalmente lá avistei aquela figura distante. No fundo da serra, no pequeno vale, está um homem a abanar uma pequena camisola.

 “Bem, poderá ser mais um turista como aqueles que vimos e que passavam o tempo todo a acenar”, penso. 

Volto pela esquerda para fazer uma passagem mais baixa. Iniciamos uma final e, a baixa velocidade, passamos pelo local. 

“É ele!”, diz o nosso passageiro civil. 

“Já vi”, vocífero, “Zeee German in sight!”

Abençoados olhos de falcão do nosso Recuperador Salvador. Aquele alemão deve a vida aqueles par de olhos. 

Enquanto o nosso recente elemento civil da tripulação inicia a coordenação com elementos no terreno, tiramos as coordenadas do local e decidimos tentar uma recuperação através de guincho. Quando mais rápido aquele homem tiver cuidados médicos, melhor. 

Briefamos o que vamos fazer. À primeira vista será complicado. O vale é estreito, terminando na serra. Temos apenas um sector de entrada, está calor e estamos pesados. A juntar a isto, se tivermos algum problema, uma falha de motor por exemplo, o nosso sector de saída é praticamente inexistente. E claro como São Pedro às vezes sabe ser cabrão, temos vento do sector de cauda. 

Chegamos à conclusão que tentar não custa. Se, por alguma razão, achar que a nossa segurança está em risco abortarei a aproximação. 

Voltamos pela nossa esquerda em direcção à Ribeira Brava e iniciamos um pequeno circuito. Começo a diminuir a nossa velocidade e as condições não parecem promissoras. O vento (de cauda) está forte e necessito de muito colectivo para manter uma ladeira aceitável. 50kts. 45kts.... e já estou próximo dos 90% de potência. Ao chegar aos 35kts deixou de ser a potência a preocupação. O EGT (a temperatura dos gases do motor) estão próxima dos limites, já a entrar no nível amarelo. E a seguir vem o vermelho. E vermelho é mau. Muito mau. 


“Vamos embora.”

Colectivo para cima, nariz em frente e ganho a tão necessária velocidade. Velocidade é vida. E vida é bom. Saímos pela esquerda por cima da parede esquerda do vale onde se encontra o turista. 

Decidimos tentar mais uma vez. O resultado é o mesmo. 

Por esta altura já a coordenação com as equipas de terreno tinha sido feita e estas encontravam-se a ir para o local. Não iria ser fácil. Mais tarde soubemos que demoraram quase três horas a chegar a ele.

Decidimos regressar deixando o nosso passageiro civil novamente no aeroporto do Funchal.
Voamos através do vale em direcção ao oceano, calmo e sereno à nossa frente. Voltamos e seguimos a linha de costa contemplando a vista. 

EH-101 "Merlin" no aeroporto do Funchal. Foto de Rui Sousa (c)

EH-101 "Merlin" no aeroporto do Funchal. Foto de Rui Sousa (c)

Já próximos do aeroporto oiço aquilo que é o sonho de qualquer piloto. 

“RESCUE26, Madeira.”

“Go.”

“We have traffic on final, any chance you can maintain 100 feet or below just for some seconds”.

Naquele cockpit olhamos um para o outro com ar de espanto. E ar de quem sabia exactamente a resposta que iríamos dar. 

“Madeira, just confirm 100 FEET or below?”

“Affirm”

“Oh oh! My pleasure!” 

Que final perfeito para um dia perfeito. 

Deixámos o nosso convidado, trocámos cumprimentos e regressámos ao Porto Santo. 

À nossa espera aquela praia. Maravilhosa, com aquele azul e areia que se estendia por quilómetros. 

“RESCUE 26, Porto Santo, clear do land runway 36”.

“Clear to land, RESCUE26”.

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Dez à esquerda

 

“O que é mais difícil?”. Ouvi vezes sem conta esta pergunta. Era a questão natural quando alguém descobria que estava na Busca e Salvamento. “Todas as missões são difíceis. Todas são diferentes.” era a minha invariável resposta. 

Verdade. Mas mentira ao mesmo tempo. 

Verdade porque todas as missões, fossem reais fossem de treino, eram de facto diferentes. O navio mais simplespodia tornar-se no maior bico de obra já visto no hemisfério norte. Não seria inédito. Eu que o diga.

Mentira porque todos nós sabíamos bem quais seriam – à partida – as operações mais complicadas: recuperações de pesqueiros.

Para nós (ou pelo menos para mim) o Pesqueiro era uma invenção do Diabo. Uma cruel e irrequieta casca de noz no oceano. Pequenos (muitas vezes mais pequenos que o próprio helicóptero), repletos de obstáculos e propensos à influência do downwash do helicóptero a baixas velocidades. Agora adicionem à equação vagas de seis metros e ventos de quarenta nós. Imaginem igualmente que terão de colocar um tipo que é vosso amigo (Recuperador Salvador) num espaço que muitas vezes não era superior a um metro quadrado. E, raios parta os Deuses, se tudo isto for de noite.   

Um dia teria de ser a minha primeira vez. 02 de Julho de 2013 foi o dia.                

“Scorpius”, que raio de nome para um pesqueiro pensava para mim. Quando aquele nome chegou por telefone como sendo o objectivo para hoje nunca assumi que fosse um pesqueiro. Aquele era nome de cargueiro talvez. Ou de petroleiro. Quem sabe de um iate... sim porra, que fosse um iate. Que fosse aquilo que para nós era o Santo Graal, o “barco da Playboy”: um amontado de aço mitológico que invade o imaginário de todos aqueles que se encontram em exigente serviço de alerta. 

scorpius

O dia estava estranho. Bom tempo no Montijo mas a piorar progressivamente a norte de Lisboa. Que raio... estamos em Julho! O tecto das nuvens encontrava-se talvez a uns mil pés e a descer quando decidimos ficar por cima dele. Entramos dentro das nuvens e cruzamos a linha de costa. A única indicação que temos disso é a imagem, em tons verde, do nosso radar de busca que se renova de poucos em poucos segundos. As nuvens que nos envolvem vão ficando cada vez mais claras. Num branco mais intenso e brilhante. Estamos quase a “furar” a camada. Cerro os olhos. Aquela intensidadeé tal que a viseira do capacete pouco me serve. E de repente, num segundo, um céu azul maravilhoso. Nivelamos. Tiro uma fotografia mental e cinco segundos do voo para apreciar aquelas nuvens que passam a rasgar por nós. “O sol lá em cima brilha sempre”. Como é tão verdade. 

As coordenadas do nosso objectivo estão próximas, algures ao largo da Figueira da Foz. A mais ou menos quarenta milhas tentamos um primeiro contacto com o “Scorpius” em canal dezasseis (canal de emergência marítima). Hoje não ía ser uma estreia só para mim. Seria também a estreia neste tipo de embarcações para o Operador de Sistemas – o homem que opera o guincho. Fotógrafo do caraças diga-se por sinal, tinha acompanhado o seu curso de qualificação em OPS, tendo mesmo sido o comandante em alguns dos seus voos de avaliação. Eu sabia que tinha ali um gajo que era uma máquina. E isso dá confiança. E se eu metesse as patas tenho a certeza que o Recuperador Salvador – outro meu bom amigo, com quase dois metros de altura e o dobro da minha envergadura – me chegaria o fato de voo ao pelo. 

Iniciamos a descida. O contacto com o pesqueiro está estabelecido, deslizamos para os duzentos pés e saímos de nuvens por volta dos oitocentos. A coordenação com o “Scorpius” é clara: iremos necessitar que naveguem com o vento sensivelmente a trinta graus por bombordo. Isto irá colocar-nos na melhor posição possível para a recuperação.

“Hoist recover checks”, transmito pela interfonia interna.

Coloco o helicóptero em estacionário ao lado veleiro, a bombordo, porta lateral aberta e iniciamos uma troca de impressões entre nós. Independentemente do posto (Tenente, Sargento Ajudante o Primeiro Sargento) e independentemente da função(Comandante, Co-Piloto, Recuperador, Operador Sistemas e Enfermeiro) todos dão voz à sua opinião. Ali não há lugar para egos. Para egoísmo. Para individualismo. Ali trabalha-se em equipa e somos um. E vidas dependem disso. 

Decidimos efectuar a operação mais baixo do que o normal. Vamos fazê-lo a cinquenta pés devido à curta dimensão do pesqueiro. “Cascas de noz...” amaldiçoa a minha mente. 

Como o EH-101 é uma aeronave de dimensões consideráveis, entre a posição onde o piloto comandante se senta e o guincho vão uns cruéis três ou quatro metros. Isto significa que quando o guincho estiver à vertical do ponto de colocação do Recuperador o piloto está de facto metros à frente. Com embarcações pequenas corremos o risco de perder as referencias visuais. Sem referencias não conseguimos manter estacionário. E sem estacionário não há recuperação. E o “Scorpius” é dos pequeninos. 

Faremos igualmente colocação por “hi-line”. Operação que consiste em colocar inicialmente um cabo guia na embarcação que facilitará a descida e colocação do nosso Recuperador em alvos curtos de... espaço. 

“Hi-line” pronto. Cinquenta pés no rádio altímetro. “Checks” efectuados. Inicialmente efectuamos um acompanhamento para que eu e o operador de sistemas tiremos as referencias necessárias. 

“Dez à direita, dois em frente”, inicia o operador de sistemas.

“Oito à direita”.

“Seis à direita”. 

À frente, olho pela janela direita. O pesqueiro fica a cada segundo mais oculto do meu campo de visão. Vejo apenas um pouco do casco pela pequena janela a meus pés, a embater contra as vagas que teimam em não parar. Tenho a janela aberta para sentir aquela brisa que tanto gosto. 

“Dois à direita”.

“Já não tenho referências quase nenhumas aqui à frente”, digo. 

“Um à direita...”

“À vertical, mantenha”.

“Não tenho o pesqueiro à vista.”, voicero com alguma urgência.

“Dois à esquerda. Temos o pesqueiro à esquerda, a perder o objectivo”, diz o operador de sistemas.

“Quatro, não, seis à esquerda.”

“Dez à esquerda, perdi o objectivo”. 

“Ora fodass”, penso. Aí estão umas palavras que nunca pensei ouvi dizer a voar do lado direito (nos helicópteros, salvo raras excepções, o piloto comandante senta-se do lado direito).

Entro novamente na interfonia: “Vou dar a volta, e vamos tentar novamente a quarenta pés”. 

Desço para a altura pretendida. E como dez pés fazem a diferença. Mais baixo seria impossível. O “Scorpius” tinha umas antenas que teimavam em não parar quietas no éter. Mais baixo e iríamos cumprimentá-las. 

“Siga”. 

Quando oiço novamente as palavras “À vertical, mantenha” consigo distinguir parte do casco do “Scorpius” junto aos meus pés. A cada vaga de dimensão maior perco novamente o pesqueiro de vista por instantes. Instintivamente dou manche atrás sempre que isso acontece. Mas dois segundos é o suficiente para colocar o “hi-line” na embarcação. 

“Contacto! Vinte à esquerda”.

“Hi-line” na embarcação! Coloco-me à esquerda com o veleiro bem visível. A partir daqui toda a operação será executada com a preciosa ajuda do “hi-line”, o que permitirá uma colocação mais progressiva e reduzirá o tempo que precisarei de estar à vertical. 

Repetimos o ritual já com o Recuperador Salvador. Preso ao guincho, segura numa das mãos o “hi-line” que o irá guiar ao pesqueiro.

Iremos colocá-lo num pequeno espaço a bombordo, um pouco antes da ponte da do “Scorpius”.

Colocação do Recuperador feita e é altura de descer a maca. Em pouco mais de três, quatro, talvez cinco minutos, temos a bordo a nossa nova e preciosa carga. 

“O helicóptero é teu” digo para o co-piloto. Saída perfeita e voltamos pela direita. 

Limpo o suor da testa e estalo o pescoço. Bem que precisa.

Rumo sul, direcção Lisboa, aeroporto da Portela. Continuamos com tectos baixos, voamos portanto mais baixo (boa!), sempre visuais com o terreno. 

Aterramos na pista 17 e rolamos até à placa militar de Figo Maduro. 

“Esta foi das duras” digo em jeito de início debriefing, “Pesqueiro pequenino hen?”.

“Podes crer!”, oiço lá de trás. 

Mal sabia eu que daí a três semanas iria engolir aquelas palavras. 

Sairia novamente. E para um pesqueiro mais curto que o “Scorpius”. Um metro mais curto! Um maldito metro. 

Lição do dia? Afinal o tamanho conta.

E muito!

 

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Parabéns

Base Aérea nº 6, Montijo. Cinco da manhã. Madrugada de um qualquer dia de Março. Ano 2010.

Um frio de rachar, de fazer tremer qualquer um. Toca o telefone. Aquele toque irrompe pelo silêncio do quarto com violência.

Uma chamada a esta hora só pode significar uma coisa.

“Meu Tenente, é para activar o alerta”.

É “Pavloviano”. Quinze segundos e o fato de voo está vestido. As botas estão calçadas e a cara está salpicada com aquela água gelada que sai do lavatório.

“Qual é a situação, é para onde?”

“Cargueiro a afundar com mais de 20 tripulantes. Cento e oitenta milhas da costa da Galiza.”

“Galiza? Espanha?” 

A porta fecha-se com um estrondo. Corrida até ao carro, chave na ignição e pouco mais de trinta segundos de condução (agressiva!). 

“Bom dia”.

“Ei.” 

A tripulação cumprimenta‐se em passo apressado no edifício da Esquadra. Construção moderna, algo minimalista, toda ela branca, a “casa‐mãe” da 751 divide‐se em duas secções principais. Uma área operacional com salas de briefing, operações, planeamento e guerra electrónica, e uma área “social” com o tão icónico bar de Esquadra e instalações de apoio. É na primeira que todos se reúnem. 

“Então ouvi dizer que vamos até Espanha…”

Um cargueiro de bandeira dos Barbados, MV KEA, encontra­‐se a afundar ao largo da costa da Galiza. Sensivelmente a cento e oitenta milhas náuticas do cabo Finisterra. Sendo o EH‐101 “Merlin” uma aeronave com um alcance e capacidade de transporte inigualável as autoridades espanholas - sem acesso a máquinas semelhantes - requerem o apoio do estado português.

“Está tudo? Vamos embora!”, diz o comandante de missão. 

“Porra… este é só o meu segundo alerta” penso em silêncio para mim mesmo. Ainda mal me adaptei à esquadra e já me vejo envolvido numa missão longa num país estrangeiro com um cargueiro a afundar. Irra.

O barulho característico dos motores Rolls Royce Turbomeca invade a pacatez desta madrugada da península do Montijo. A missão irá levar-nos até Santiago de Compostela. Aí iremos reabastecer antes de prosseguir para a zona de operações. 

O voo para Santiago é atribulado. Muitas nuvens. Gelo. Turbulência. Especialmente à passagem da Serra do Gerês. Tenho tempo para pensar porque raio temos sistemas de anti gelo nos motores e não nas pás. Não podemos voar em condições de formação de gelo apenas com o sistema instalado nos motores. E quando entramos numa nuvem quando não há outra hipótese, com temperaturas negativas, acreditem... Pensamos nisso. Nisso e naquele café bebido à pressa na Esquadra que vale ouro. Não. Vale bem mais do que ouro.

Aterramos em Santiago onde o reabastecimento é efectuado o mais rapidamente possível. Entretanto aterra um helicóptero “Super Puma” espanhol, proveniente da área de operações. Regressa com um náufrago. Devido à falta de autonomia da aeronave foi-­lhes apenas possível resgatar um elemento. Descrevem uma situação de caos. O normal para um cargueiro a afundar. Hora de descolar novamente. A hora e meia que nos separa da zona operacional parece-se com dias. A ansiedade acumula-­se. Discutem‐se os últimos pormenores da missão. Afinam­‐se estratégias. Inicia­‐se a coordenação com as autoridades espanholas que entretanto já tinham uma aeronave de asa fixa no local tendo encaminhado alguns navios civis para a área que, esperava-se, chegariam em breve. Limpa-se o suar que escorre pela testa. 

A sensivelmente cinquenta milhas náuticas já é possível ouvir na frequência de emergência marítima a voz, carregada de stress, de um qualquer náufrago e de um operacional de busca e salvamento espanhol que, desesperadamente, lhe dizia para abandonar o navio. “Fodass” penso, “mais 100kts de velocidade hoje dava jeito”. Mas não havia nada a fazer. A velocidade já lá estava: no máximo.

“SASEMAR, SASEMAR, this is RESCUE 23 calling on guard, we´re 3 minutes out”.

E ali estava ele. O MV KEA. Um imponente cargueiro, tombado de lado. Nem se assemelhava a um navio. Era como um grande destroço.

O MV KEA

O MV KEA

À deriva, à mercê dos elementos. À sua volta a água embatia no casco em tons de negro. Negro da Nafta, libertada dos seus tanques. E como um mal nunca vem só, especialmente em busca e salvamento, as vagas chegavam aos oito metros de altura. No meio disto tudo pequenos pontos laranjas. Pequenas figuras com movimento próprio. Quase que ocultas pelas vagas e destroços. Náufragos.

“Ali, do lado direito, três náufragos”.

O operador de sistemas – o tripulante responsável por operar o guincho e guiar os pilotos para a vertical do objectivo – iniciava a sua operação.

“Dez em frente, dois à direita”.


Este elemento guia o piloto através de uma escala numérica que não tem um significado próprio. Não são metros. Nem pés. Nem milhas. Não é nenhuma unidade de medida específica. É apenas uma unidade mental com que ambos trabalham que vai diminuindo à medida que se vão aproximando do objectivo. A juntar a isto, o Recuperador Salvador, já preso no cabo do guincho, dá igualmente indicações ao operador de sistemas. Uma verdadeira cadeia de comunicação. Recuperador, Operador de Sistemas, Piloto. Com tempo apercebemo-nos das pequenas diferenças entre operadores de guincho. De diferentes percepções das escalas. Tal como eles se apercebem, e aprendem a lidar, com os diferentes pilotos. É mágico quando tudo corre na perfeição. E geralmente corria sempre. 

“Oito em frente, um à direita”.

“Seis em frente”.

“Três em frente”.

“Um em frente”.

“À vertical. Mantenha”.

“Contacto!”

E assim foi, náufrago atrás de náufrago, foram recuperados cinco elementos em mar aberto. Até o nosso Recuperador Salvador estava completamente negro, dos pés à cabeça. Aquela nafta, com um cheiro intenso, colocou todos dentro do helicóptero com sensação de enjoo. Entretanto um navio de busca e salvamento espanhol, que tinha chegado à área, resgatava outros elementos da tripulação do amaldiçoado cargueiro.

Passado alguns minutos chegamos à conclusão que dois elementos da tripulação estariam desaparecidos. Ainda tínhamos algum tempo de autonomia. A missão não terminava aqui. Efectuamos vários circuitos de busca. 

Bingo fuel. Hora de regressar. 

“Fast forward” uns meses. Salão Náutico de Barcelona. Novembro de 2010. A tripulação do RESCUE 23 que participou no resgate do MV KEA encontra-­se novamente reunida, com excepção do Recuperador Salvador que, por motivos de força maior não pode estar presente.  

Foto: CAVFAP (c) 

Foto: CAVFAP (c) 

Desta vez o fato de voo ficou em casa. Farda número um, impecavelmente engomada, para receber por parte do governo espanhol (através da sua agência marítima SASEMAR) a condecoração “Ancla de Plata” 2010.

O orgulho está lá. Espelhado na face de cada um de nós. 

Tal como está cá hoje. 

28 de Abril de 2016. A Esquadra 751 celebra trinta e oito anos de história. Trinta e oito anos de muita dedicação, suor e esforço. Trinta oito anos de muitas noites sem dormir, de stress constante, de tomadas de decisão impossíveis. De coragem. De discussões com a mulher. De divórcios. De saudade. Dessa filha da puta de saudade que tende em nos assombrar quando estamos fora. Mas acima de tudo trinta e oito anos de dever cumprido. Trinta e oito anos a dar o melhor de cada um de nós, aqueles que por lá passaram e aqueles que por lá estão. 

Lembro-me bem que nesse dia, após quase quinze horas de missão, ainda fui jantar com um grupo de amigos a Lisboa. Ali para os lados da Av. da Liberdade. Quando cheguei - atrasado - perguntaram-me que tinha eu andado a fazer que tinha o telefone desligado. Ao descrever aquelas horas imediatamente anteriores um deles pergunta-me: “Porque raio fizeram isso tudo?”

A minha resposta foi simplesmente: 

Para que outros vivam.” 

Parabéns Esquadra 751. Obrigado. Por tudo.

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E o carro?

Segunda-feira é sempre aquele dia cruel. “A pior invenção da humanidade”, dizem os olhos de todos aqueles com quem me cruzo. Lá fora a chuva cai de forma intensa, e mais intensamente caiu durante o fim de semana. Noé estaria como peixe na água. Está montado o cenário. Segunda-feira. Dia 01 de Abril de 2013. Mais um dia das mentiras. Mais um dia alerta. 

Ribeira? Isto é um rio!

Ribeira? Isto é um rio!

A rotina é a mesma de um dia normal. Com aquela pequena – grande! – diferença de sentir uma ligeira ansiedade sempre que o telefone toca. E claro, ele tocou. 

ALERTAAAAA”, alguém berra pelos corredores da Esquadra. É pavloviano. Eu, e o meu co-piloto, estamos nas operações em dois segundos. Um vai anotando as coordenadas num papel e outro abre o Google Earth para uma confirmação muito rápida da zona de operação aproximada. 

“Epah, esta merda não deve estar bem”, digo. 

A porra da coordenada não estava no Atlântico. Nem mesmo ali numa escarpa, fosse onde fosse na costa portuguesa. Estava no meio do Alentejo. Sim. No meio do Alentejo. 

“Que raio?” 

Telefone na mão e chamada directa para o Comando Aéreo (CA).

“Podem-me confirmar as coordenadas por favor?”

Bastaram trinta segundas para ficarmos a saber que as coordenadas estavam correctas. Durante as chuvadas do fim de semana várias ribeiras e ribeiros transbordaram por completo, um pouco por todo o país. Ali, para os lados do Torrão, um condutor distraído (lá no fundo eu quero mesmo dizer negligente) ignorou a barreira montada pela Protecção Civil e decidiu tentar atravessar aquela estrada que, na prática, era agora um rio. Resultado lógico. Foi arrastado. 

“Esta vai ser uma estreia!”

A partir daí tudo corre em automático.
Coordenadas no bolso. Capacete e equipamento de emergência na mão. Helicóptero em marcha. Descolagem. Tudo isto em pouco mais de dez minutos. Já no ar, velocidade máxima, direcção sul. Entramos em contacto com o Comando Aéreo para obter actualizações. Não há novidades. Já se encontram no local algumas unidades dos bombeiros. 

O local exacto chama-se Ribeira de São Romão.  

“Ribeira o caraças!”, voicero quando chegamos às coordenadas. O que temos à nossa frente é um caudal de água quase tão largo como o rio Sado. Damos uma primeira volta e tentamos encontrar o tal carro arrastado. Nada. Só água. Tanto de um lado da margem como do outro são visíveis unidades dos bombeiros com as quais entramos em contacto. Ao iniciar a segunda volta alguém da tripulação expressa um decisivo “Está ali, às duas horas”. 

“Epah não vejo carro nenhum!”

“Carro? É uma cabeça!” 

O veículo estava completamente submerso. Ali, quase à nossa frente, estava uma cabeça, quase invisível, oculta pelo constante movimento da água ao seu redor. Era ele, o “nosso” condutor desesperado que se agarrava a algo como uma lapa se agarra a uma rocha. 

Volta rápida, pás a "bater", posicionamo-nos face ao vento e em trinta segundos estamos com os procedimentos feitos, porta aberta e o Recuperador Salvador pronto a descer. 

“Trinta em frente, dois à direita” .

O operador de guincho começa a guiar-me para o objectivo. Ao mesmo tempo o recuperador inicia a descida e o co-piloto mantém um olho à nossa altitude. Já o disse várias vezes. Digo-o mais uma: o trabalho de equipa aqui não é boa prática. É obrigatório. E que grande equipa tenho eu hoje. 

torrao2

O recuperador toca na água a menos de um metro do objectivo. 

“Contacto!”

Em menos de dois minutos o recuperador está novamente suspenso no cabo, desta vez com um muito valioso passageiro nos braços. Hesito em usar a palavra “náufrago” neste caso... será “arrastado” melhor? 

Recuperação feita e o enfermeiro da tripulação inicia o seu trabalho. Coordenamos com os bombeiros e aterramos ali mesmo, na margem, para deixar o nosso recente passageiro. Entrega feita e descolamos em direcção ao Montijo. 

Como é hábito, nesta altura iniciamos uma espécie de de-briefing informal. Todos os membros da tripulação falam entre si sobre o que acharam da operação, o que correu mal, o que correu bem, como podemos melhorar. E claro, curiosidades. E aí, o nosso recuperador salvador (militar experiente, instrutor, com um físico de fazer inveja ao Hulk) partilha connosco o breve diálogo que teve com o senhor: 

“Estava a ver que tinha de usar da força física...”

“Então?”

“Ele não se queria vir embora sem o carro!”

“Desculpa?”

“Não queria lá deixar o carro! Ainda perguntou se não o podíamos içar!”

Como a natureza humana é engraçada. Estamos à beira da morte. Exaustos. Em estado de Hipotermia. Mas o cabrão do carro é que não pode ficar ali. Não, o importante é o cabrão do carro!

“Pena não teres trazido a matrícula. Dava uma bela recordação!”

E se dava!  E se dava!

Porque fazemos aquilo que fazemos

Não deve existir nenhum piloto militar que não recorde com nostalgia os tempos que voou ao serviço do seu país. O tipo de voo, as missões, a camaradagem.

São coisas que não se esquecem. Mas existem Esquadras – e missões – que nos tocam mais que outras.

Aquando da minha passagem pela Força Aérea Portuguesa (curta é certo) muitas vezes me vi deparado com a pergunta “porque é que fazia aquilo que fazia”. A resposta surgiu, um dia, da forma mais inesperada.

Servi durante mais de quatro anos na Esquadra 751 a voar o magnífico EH-­‐101 “Merlin”. A nossa principal missão era a execução de missões de Busca e Salvamento. Missões essas que deixavam uma marca profunda em todos os que por lá passámos. "Posso ser um tipo novo", costumo dizer, "mas já tenho umas histórias para contar aos netos". O lema, “Para que outros vivam”, era vivido ao máximo. Era a nossa motivação, a nossa força, o nosso orgulho.

Foto: Menso Van Westrhenen (c)

Foto: Menso Van Westrhenen (c)

Em 2012, para além das funções como piloto‐comandante, era igualmente oficial de relações públicas da Esquadra. Todos os tripulantes, fossem pilotos, recuperadores salvadores ou operadores de sistemas, tinham funções complementares em terra. Aquela era a minha. E, consequência dessa atribuição, era da minha responsabilidade organizar, desenvolver e implementar a política de comunicação da Esquadra.

Um dos eventos que organizámos foi uma Grande Reportagem da TVI imediatamente após o incidente com o cruzeiro Costa Concordia. A premissa seria demonstrar os meios que Portugal teria no caso dessa catástrofe acontecer em águas nacionais. Uma das hipóteses que achámos interessante foi promover o reencontro entre um recuperador salvador (os homens que descem no cabo para irem resgatar quem deles precisa) e um náufrago por ele resgatado. E assim foi. No dia combinado o referido náufrago foi ter connosco à Esquadra e com ele trouxe o seu pequeno filho. Decidimos filmar esse reencontro à entrada do edifício da Esquadra. “Porreiro”, pensava eu, “vai dar um bom momento de televisão”.

Durante a filmagem do reencontro fiquei a fazer companhia ao filho . Ele teria quatro, cinco anos talvez. Estávamos sentados os dois à beira do passeio, a poucos metros de onde o pai estava a ser entrevistado. Então, de forma repentina, toca-me no braço, chama-me a atenção e olha-me nos olhos. E aí, nesse momento, ouvi umas palavras que ficarão comigo para todo o sempre.

Obrigado por salvarem o meu pai”.

Ali estava eu. Militar, fardado com fato de voo, com aquele ar tipicamente rígido e já com alguma experiência em missões complexas… e fui invadido por um riso incontrolável acompanhado de uma emoção que apenas posso descrever como… indescritível.

Eu nem tinha participado naquela missão específica, e ouvir aquilo foi um dos momentos mais simples, mas memoráveis da minha vida.

Ali, naquele início de tarde sentado naquele passeio, tive a certeza:

É por isto que fazemos aquilo que fazemos”.

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