Início de Setembro, 2011, Porto Santo. Arrisco-me a dizer que é a altura ideal. O tempo, esse, é de Verão e a ilha encontra-se mais calma após a loucura de Agosto mas ainda com suficiente actividade para não nos sentirmos isolados do mundo. Encontrava-me em mais duas semanas de destacamento – mais duas entre inúmeras outras – a garantir o alerta de busca e salvamento nesta área do país. “Ao menos tinha sorte com o tempo”, reflectia.
Na altura encontrava-me qualificado como “P – Piloto”. O chamado “P” é a qualificação intermédia entre co-piloto e piloto comandante. Significa que curso de comando está feito, voa-se à direita no cockpit – no lugar do comandante – fazendo tudo aquilo que ele faria, incluindo a parte operacional, com a nuance que do lado esquerdo se senta um comandante qualificado que nos guia e ajuda. Esta era uma forma excepcional de o piloto ganhar confiança, experiência e aprender com outros comandantes até ser “largado” como piloto comandante operacional. Na essência, um “P” era um quase comandante. E apenas passaria a tal quando todos os outros comandantes da Esquadra achassem que aquele elemento estaria pronto a assumir o comando de uma tripulação de busca e salvamento numa missão real. E isso não é uma decisão que se tome com leviandade.
Para nós, os “P” da altura, a primeira missão real de guincho barco era um marco crucial. Seria a primeira vez que, sentados à direita, iríamos estar aos comandos do helicóptero durante uma recuperação de guincho real de uma embarcação. Real. Isso significa que nas nossas mãos estaria a vida do nosso camarada Recuperador Salvador, amarrado no guincho à mercê das nossas capacidades – ou falta delas! – e a vida dos náufragos ou resgatados que iríamos ajudar. Por mais que à nossa esquerda estivesse um comandante de pleno direito, a operação só teria sucesso se nós fossemos profissionais. A palavra “responsabilidade” tomava aqui uma outra dimensão.
E é em mais um belo dia na ilha Dourada que toca o telefone.
“Nunes, vamos embora. Vamos voar”, dizia o comandante do outro lado.
A adrenalina é instantânea.
“Foda-se. Queres ver que é desta?”, penso.
Corro para o quarto, calções fora, fato de voo vestido, e ainda me estou a calçar enquanto cruzo a porta do quarto.
A tripulação encontra-se à porta do hotel, entramos todos na carrinha azul – mais conhecida no Porto Santo do que Zarco ou Colombo – e partimos em direcção ao hangar onde se encontra o EH-101 “Merlin”. Este hangar, e alguns pequenos edifícios de apoio, situam-se na parte norte do aeroporto de Porto Santo, na área militar.
Na carrinha o Comandante já tem mais algumas informações. A missão para hoje é resgatar um dos elementos da tripulação do navio “GLORIOUS DOUGLAS” a cento e trinta milhas a norte do Porto Santo.
“Vou à direita?”, pergunto?
Recebo um daqueles olhares como quem diz “Não, queres ver que vais a coçar tomate?”.
“Yeup”, é a resposta exacta.
Comigo um dos operadores de sistema (guincho) mais antigos na esquadra, um recuperador salvador de mão cheia (e grande amigo) e provavelmente o enfermeiro com mais experiência em evacuações aeromédicas em todas as forças armadas. Logo aí fico mais calmo – é mais difícil meter as patas com malta tão profissional a bordo.
O sol brilha. Cheira a praia. Motores em marcha, descolo e rumamos a norte. A caminho entramos em contacto com o Comando Aéreo da Força Aérea, em Lisboa, através de rádio de alta frequência. Recebemos mais informações sobre a posição do navio e o estado do paciente. A sessenta milhas tentamos o primeiro contacto com o navio. Informamos o mesmo que deverá alterar a sua rota para um rumo que seja trinta graus a estibordo da direcção do vento para facilitar a recuperação. Aqui vem a primeira surpresa: como estavam a rumar sul iriam precisar entre dez a doze minutos (!) para alterarem a rota. “Este deve ser dos grandes”, comentamos. Tanto tempo para uma mudança de rota, significa que seria um navio com dimensões consideráveis. Perfeito, coincidia com o nosso horário de chegada.
E era-o. Nem sempre fui um tipo a quem a sorte sorrisse constantemente na vida. Mas nas alturas cruciais ela tem sido uma bela companheira. O navio era enorme. A área de recuperação, na popa, a maior e mais desimpedida de obstáculos que tinha visto até então. O mar, esse, estava chão. Nem um metro de vaga. E o vento era uma ligeira brisa que soprava de forma constante. Não eram só as melhores condições que tinha visto enquanto “P”. Eram as melhores condições que tinha visto em qualquer voo, de treino ou real, que tinha feito até então na Esquadra.
“Ou vai ou racha”, penso. Damos início à operação, já coordenados com o navio.
“Podes colocar o homem à porta”, verbalizo.
“Dez à direita, vinte em frente”, diz a voz calma do operador de guincho. O Recuperador Salvador já se encontra no éter que separa o nosso helicóptero de catorze toneladas daquele navio com milhares mais.
“Oito à direita, dez em frente”.
Tento ser o mais suave possível nos comandos. Cíclico (o nosso manche) um pouco para a frente e para a direita, colectivo como necessário para manter a altura constante.
“Seis à direita, cinco em frente.”
Mais um pouco. “Não faças merda agora”, corre-me pela mente.
“Três à direita, um em frente”.
“Dois à direita”.
“Um à direita”.
“À vertical, mantenha!”
Asseguro as minhas referências visuais, já obtidas durante um estacionário prévio. Agarro-me a elas como um cão se agarra a um osso.
“Mantenha... Contacto!”, diz o operador de guincho.
Para um piloto de busca e salvamento há poucas palavras mais bonitas que aquela: “contacto”. Significa que o Recuperador Salvador está seguro no convés do navio.
“Contacto, foda-se!”, penso interiormente. O pico de stress, a colocação do homem no convés, estava feita.
O Recuperador-Salvador efectua os seus procedimentos e prepara o membro da tripulação, de nacionalidade ucraniana, para a recuperação. O processo repete-se, volto a colocar o helicóptero à vertical da posição e à voz de “Quinze à esquerda” já sei que o Recuperador Salvador e o resgatado se encontram suspensos pelo guincho. Afasto o helicóptero da vertical do navio até estarmos suspensos sobre o oceano.
Todos dentro do helicóptero. O enfermeiro inicia o apoio à vítima. Voltamos a Sul, despedimo-nos do navio e rumamos ao heliporto do hospital do Funchal.
Durante o voo para sul apercebo-me que “já está”. A minha primeira missão de recuperação em navio operacional a voar à direita estava feita. E tinha corrido bem.
Aterramos em Porto Santo já ao final do dia. Vamos jantar todos e regressamos ao hotel. Assim que a cabeça toca na almofada adormeço instantaneamente. Durante esse destacamento efectuámos mais três missões operacionais de evacuação entre ilhas. E sempre a voar à direita.
Mal sabia eu que que iria passar a voar naquele lugar de forma permanente em breve. Ganharia o meu comando no final daquele mês.
O primeiro(a) nunca se esquece, não é o que dizem?
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Foto de capa: Menso Van Westrhenen