A última largada

Não sei o que dizer. Não sei bem o que escrever.

Perdi demasiados camaradas e amigos da minha geração nesta coisa a que chamam voar. Os dias de merda – como o de hoje – tornam-se cada vez mais frequentes. Hoje perdi mais um. E perder um que fosse já seria perder um a mais.

Isto não se torna mais fácil com o passar do tempo. Pelo contrário, torna-se mais difícil. Como se nos relembrasse que a nossa tão egoísta sensação de invencibilidade não passa disso mesmo: uma sensação. Ainda hoje em conversa com um camarada dizíamos que esta profissão é linda. É aquilo que todos nós – que a fazemos – sonhámos um dia fazer. Mas também é cruel. É filha da puta. E esse reverso da medalha é doloroso mesmo quando o fazemos em prol do bem comum. E quando algum de “nós” parte mais cedo no decorrer da sua missão é duplamente difícil.

Tanto na Força Aérea como no mundo civil, voaste para ajudar quem mais precisava. Hoje voavas por todos, no combate a essa maldição que nos atinge todos os anos, os incêndios. É injusto. É muito injusto.

Até um dia Camarada.

Encontrar-nos-emos novamente.

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1922-2022

V1... Rotate”. 

Com um pouco de pressão no sidestick, a aeronave eleva-se no ar. Em pouco menos de dois minutos estamos a voar com trem em cima, flaps recolhidos a subir para uma altitude final de 32.000 pés. Reclino a cadeira para trás e bebo um golo de café; daquele amaldiçoado pelo seu sabor, mas abençoado por meramente existir. Canárias ao final de duas horas, Cabo Verde ao final de quatro. Agora, à nossa frente, só o Brasil. Passadas quase sete horas, 3 cafés e alguma conversa vemos as primeiras luzes da terra de Vera Cruz no horizonte. Iniciamos a descida, aterramos na pista e pouco depois deixamos a carga mais preciosa de todas no seu destino: os nossos passageiros. Em menos de oito horas atravessámos um Oceano. 

A diferença que 100 anos fazem. 

Em 1922 foram setenta e nove dias. Com três aeronaves. Uma amaragem. Uma falha de motor. E certamente muito mais suor, palavrões e lágrimas à mistura. Foram 8000km de viagem até ao seu destino. Com várias escalas e paragens, a primeira travessia aérea do Atlântico Sul foi uma viagem épica que colocou Portugal na história da Aviação mundial. 

E celebra-se hoje, 30 de Março, exactamente 100 anos que se iniciou essa Epopeia. É interessante imaginar o que Sacadura Cabral e Gago Coutinho pensariam se estivessem a bordo de um qualquer voo que hoje descolasse de Lisboa com destino ao Brasil. Provavelmente ficariam admirados com a rapidez, conforto e segurança com que hoje atravessamos Oceanos. Confusos com as cadeiras reclináveis. E estupefactos com o facto de conseguirem comer comida quente a bordo. Tudo isto só é possível porque Aviadores como eles deram o primeiro passo – o mais arriscado de todos. Arriscaram. Acreditaram e sofreram.

Tudo isso faz do dia de hoje um dia digno de celebração. De celebrar dois Heróis. Dois Aviadores. E dois Portugueses.

É de feitos assim que se constroem Nações. De que se contam estórias e se escrevem canções. Faz hoje cem anos que ficámos um pouco maiores. 

A eles!

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TAP: soundbytes & demagogia

O debate de ontem entre os dois principais candidatos a primeiro-ministro foi, sem dúvida, bastante interessante. Mas em relação ao tema de Aviação notou-se que ambos os candidatos ou estariam mal preparados, ou estariam conscientemente a usar informação parcial ou falsa. Afirmar, a título de exemplo, que David Neelman está falido – quando se encontra a lançar uma nova companhia aérea com sucesso (Breeze Airways) no mercado mais concorrencial do mundo, os Estados Unidos – é inacreditável. Aliás, é difícil de encontrar actualmente alguém tão icónico na Indústria do Transporte Aérero como Neelman, que ao longo da sua história fundou cinco – sim, cinco! – companhias aéreas com sucesso: Morris Air, JetBlue, WestJet, Azul e agora a Breeze Airways.

 Mas também do outro lado da barricada se usou um discurso longe do ideal. Uma das áreas mais complexas e mais importantes de qualquer companhia aérea é Revenue Management. É, no fundo, uma arte, que na sua vertente de pricing permite optimizar os preços e preencher os lugares dos aviões enquanto maximiza o lucro por assento de uma companhia aérea. Como referido, é uma área extremamente complexa e onde recentemente se tem utilizado ferramentas de Inteligência Artificial (AI). Contudo uma coisa não se alterou: um dos principais drivers de compra de um bilhete é a sua comodidade no que toca a ligações directas. Isto é, se viajarmos do ponto A para o ponto B, todos preferimos ir directos do que parar num ponto C, D ou E (que torna a viagem mais longa e mais demorada). Por exemplo, se quisermos ir de Lisboa a Boston, preferimos descolar de Lisboa directos a Boston, do que efectuar uma ligação em Londres, Paris ou Frankfurt. O que significa que os bilhetes do ponto A para o ponto B são mais procurados, por serem mais apetecíveis. Nós sabemos isto. As companhias aéreas também. Logo o seu valor é superior. Pode parecer um contrassenso, mas um voo directo, mais curto em distância e menos longo em duração, acaba por ser mais caro que um voo que por vezes percorra o dobro da distância e demore o triplo do tempo. Mundo estranho este das companhias aéreas. É, na prática, uma variante da lei da oferta e procura.  Voos com ligação têm uma muito maior oferta (as possibilidades são várias) e são menos apetecíveis, logo os preços são mais baixos. Um vasto outro número de factores pode afectar o pricing de bilhete, desde datas específicas, necessidades de loadfactor (um avião cheio, mesmo com preços baixos é preferível a um vazio), marketing e “brand awareness” (criar “buzz” mediático sobre uma nova rota ou a companhia aérea em si) ou mesmo por captação do mercado da concorrência (tentar roubar o mercado/cliente de um grupo ou companhia aérea concorrente). Estes factores podem levar ao aumento ou decréscimo de preços de bilhetes em voos directos ou com ligação.

Daí que é preciso ter bastante cuidado quando se afirma: “Um voo Madrid - São Francisco, (...) com escala em Lisboa, custa a um espanhol 190€. Quanto paga o português se apanhar o mesmo avião em Lisboa para ir para São Francisco? Paga 697€. É companhia de bandeira, mas é companhia de bandeira espanhola ou de outro país qualquer, isto é revoltante, isto é inadmissível."

Senão poderíamos igualmente afirmar:

 No site da LUFTHANSA um voo com origem em Lisboa e destino São Francisco com escala em Frankfurt custa 951€. Com escala em Munique custa 740€. Mas e se um alemão voar directo de Frankfurt ou Munique a São Francisco? Passa a custar 1464€ e 1452€. Mas afinal a LUFTHANSA não é a companhia aérea de bandeira alemã? Isto é revoltante, isto é inadmissível! (Para um alemão)

No site da BRITISH AIRWAYS (grupo IAG) um voo com origem em Lisboa e destino São Francisco com escala em Londres Heathrow custa 680€. Mas e se um inglês voar directo de Londres a São Francisco? Passa a custar 2335€ (taxa de conversão actual). Mas afinal a BRITISH AIRWAYS não é a companhia aérea de bandeira inglesa? Isto é revoltante, isto é inadmissível! (Para um inglês).

No site da AIR FRANCE (grupo AF/KLM) um voo com origem em Lisboa e destino São Francisco com escala em Paris CDG ou Amsterdão custa 537€ (Air France) ou 535€ (KLM). Mas e se um francês voar directo de Paris a São Francisco? Passa a custar 1200€. Mas afinal a AIR FRANCE não é a companhia aérea de bandeira francesa? Isto é revoltante, isto é inadmissível! (Para um Francês ou Holandês).

Independentemente da nossa opinião sobre a ajuda estatal na TAP, parece-me evidente que a ideia por detrás da injecção de capital não seria facultar viagens mais baratas aos cidadãos nacionais (que na prática nada mais seria que subsidiar bilhetes). Era sim tentar criar uma empresa que seja viável financeiramente. E para isso esta tem de obedecer a regras de mercado, regras essas que se aplicam a todas as companhias aéreas.

Pode parecer estranho. Pode parecer contra-natura. Mas é preciso entender como funciona uma companhia aérea e o seu pricing de bilhetes (ou qualquer outro assunto de facto) para se poder falar com conhecimento de causa sobre ele. Todos sabemos que, infelizmente, a política é hoje feita de soundbytes. Mas convém que esses sejam baseados em factos. E é possível argumentar de forma coerente, clara e com argumentos factuais sobre a TAP. Seja qual for a nossa posição, uma discussão racional é essencial. Tudo o resto é demagogia. E ontem assistimos a muita demagogia, de ambos os lados.

E esta mata qualquer organização.

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 (Análise efectuada com voo de ida, classe económica, em data escolhida de forma aleatória – 16 de Abril 2022. Dados recolhidos dia 14 de Janeiro da parte da manhã).

(Comparação de preços LUFTHANSA entre LISBOA-SÃO FRANCISCO via Munique e Frankfurt; e voos directos de Munique e Frankfurt para São Francisco)

(Comparação de preços BRITISH AIRWAYS entre LISBOA-SÃO FRANCISCO via Londres e Londres Heathrow - São Francisco)

(Comparação de preços AIR FRANCE entre LISBOA-SÃO FRANCISCO via Paris e Paris - São Francisco)

Foto de capa ( via Observador ©)

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O homem mais rápido do mundo

Pode ser difícil de acreditar, mas a aviação já foi mais que wi-fi fraco, super-computadores e os atrasos que parecem que invadem as notícias e fóruns de discussão de hoje em dia. Uma época houve em que esta se desenvolveu, e cresceu, apenas através da ingenuidade, coragem e sangue de tipos excepcionais.

Yeager

Cresci (tanto fisicamente como na minha carreira) a ler as estórias de gigantes como Bob Hoover, Robin Olds ou Scott Crossfield. Mas provavelmente o “maior” de todos, o mais irreverente, a personificação daquilo a que se chama “the right stuff” é (foi) Charles “Chuck” Yeager. O primeiro homem a bater a barreira do som. E a fazê-lo numa pequena aeronave cor laranja em que eu não entraria nem que fosse um carrinho de rolamentos.  

Yeager faleceu hoje, aos 97 anos. Uma chapada de luva branca à Morte; alguém que A viu bem de perto tantas vezes durou quase um século.

Yeager era lenda. É uma lenda. E continuará lenda. E será para sempre uma das maiores inspirações para todos aqueles que se consideram pilotos e amantes da aviação.

So long Chuck.

“You do what you can for as long as you can, and when you finally can´t, you do the next best thing. You back up, but you don´t give up.”

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O último voo

Escorria-me uma gota de suor pelo rosto e lá fora estava frio. Muito frio. Tinha acabado de “taxiar” e alinhar um Alouette 3 num dos heliportos da Base Aérea de Beja. Este seria o meu primeiro voo de helicóptero depois do treino elementar e básico de pilotagem em asa fixa, a voar o TB-30 Epsilon, o avião de instrução da Força Aérea Portuguesa. Ao meu lado, no lugar central, o instrutor, e no lugar da esquerda como passageiro estava outro aluno que assumiria o meu lugar a meio do voo. Esta primeira missão seria um voo de familiarização com as áreas de trabalho atribuídas a helicópteros na zona de Beja. Um voo sem avaliação, logo sem pressão.

“Estás pronto? Vá, descola”, disse o instrutor.

Descola?, pensei. Como assim? Este é o meu primeiro voo de helicóptero. Eu não sei voar isto.

Como, meu Major?”, respondi.

“Bora, descola aí, que eu dou uma ajuda”.

Este gajo é doido. Eu não sei mesmo voar isto!

Afirmativo...”.

Inicio a aplicação de colectivo e sinto o helicóptero a elevar-se nos amortecedores. Mais um pouco e estamos fora do chão. E aqui... aqui começa a luta infindável desta máquina infernal para dominar o éter do céu português.

Durante o curso teórico é-nos incutido que a mais difícil do que voar um helicóptero em linha de voo é mantê-lo em estacionário – inamovível sobre o mesmo ponto; aquilo que efectivamente diferencia um helicóptero de um avião, a sua capacidade de “parar” no ar. Mas por mais que nos digam isso, e que esperemos isso, sentir essa dificuldade é bem diferente.

Estávamos no ar. Manche para a frente e para trás. O meu braço não parava. Já não percebia se estava a tentar voar um helicóptero ou a bater um ovo. Com os pés era igual: ora vai o direito para a frente, ora vai o esquerdo. Com o colectivo, o mesmo. Para cima e para baixo. Era o maior teste psicotécnico da minha vida, e só para ficar quieto no mesmo sítio. Ora para cima para baixo, ora rodava no eixo para a esquerda, ora para a direita, e depois esquerda, esquerda, esquerda... e acabei por fazer um 360.

“Ah”, dizia o instrutor pelo meio de uma gargalhada, “pelo menos fazer uma rotação já sabes!”.

Foda-se, pensei, já não sei voar. Que máquina infernal é esta?

O instrutor, bem paciente, tomou o controlo com dois dedos no manche. Dois dedos. E o helicóptero, como que a gozar com o meu esforço, imobilizou-se no ar. Não se deslocava nem 10 cm para qualquer um dos eixos. “Relaxa”, dizia o instrutor “tens de fazer apenas pequenos movimentos”. Passámos a hora e meia seguinte a voar pela planície alentejana. Baixo. Bem baixo. E quando aterrámos pensei: apaixonei-me. Isto é fabuloso.

Foto: Rui Sousa (c)

Foto: Rui Sousa (c)

Para mim, aquele passou a ser um dos segredos mais bem guardados da Força Aérea: uma das aeronaves mais antigas, e visualmente menos sexy, era aquela que, afinal, mais gozo dava a voar. Passados anos, e depois de voar outras aeronaves, aprofundei essa certeza. Nada superava o estar sentado naquela “bolha” de plexiglass a 10 pés do solo. Voei-o como piloto operacional durante aproximadamente dois anos. E foi um privilégio. O Alouette 3 era de facto uma aeronave fantástica.

Após 57 anos de história não haverá provavelmente máquina mais icónica na Força Aérea Portuguesa, que signifique tanto para tantos, como este helicóptero de fabrico francês. Da Guiné a Timor, de Angola à costa portuguesa, de Moçambique ao combate e coordenação de incêndios, o Alouette 3 serviu de forma excepcional várias gerações de portugueses.

Hoje, o Ministro da Defesa voará nessa máquina infernal. Será um dos seus últimos voos oficiais ao serviço da Força Aérea Portuguesa e um acto simbólico de despedida.

Quem o voou, e quem nele trabalhou, não o irá esquecer. E que melhor forma haverá de nos despedirmos dele do que com um brinde. O mesmo que ecoava nos jantares da sua última Esquadra de voo, a 552: “À máquina”!

 Efectivamente, após 57 anos...

À máquina!

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Foto de capa: Rui Sousa

Ora então vamos lá falar da TAP

A TAP é notícia. Outra vez. Seja pela possível intervenção estatal ou pelo plano de retoma na era pós-Covid, a companhia aérea de bandeira nacional aparenta estar a tornar-se, novamente, uma arma de arremesso político. É difícil de encontrar uma empresa em Portugal que gere tanta controvérsia. E nós, como portugueses, adoramos controvérsias. Mas não gostamos de coerência.

Vamos por pontos. Não são muitos.

A indústria do transporte aéreo é paradoxal. Embora ao longo da história tenha existido um crescimento sistemático e significativo da procura, a performance financeira das companhias aéreas tem sido marginal; seria de supor o oposto. A sua margem de lucro é, curiosamente, das mais baixas dentro do próprio sector. Analisando o ROIC (Return on Invested Capital, que não é nada mais que o lucro expresso como percentagem do capital investido e não de facturação) observamos que as companhias aéreas têm demonstrado o valor mais baixo de toda a indústria. Esta situação apenas se inverteu recentemente, onde assistimos a um período em que o ROIC cresceu significativamente (2015-2018) e superou o custo médio ponderado de capital (WACC).

Via IATA (2013)

Via IATA (2013)

IATA (2019)

IATA (2019)

Isto significa que que outras empresas tais como os “lessors”, aeroportos, companhias de handling ou mesmo as agências de viagem têm um ROIC superior às companhias aéreas, as entidades que, de facto, operam as aeronaves. Adicionalmente, o transporte aéreo tem um ROIC inferior a outras indústrias, como a do papel, restauração ou mesmo camionagem. Curioso, não é? Especialmente quando necessita de uma impressionante quantidade de capital. Em termos de EBIT (lucros antes de juros e taxas), este ronda os 5% nos últimos anos a nível global. E porque é que isto é importante? É importante para entendermos como qualquer pequena perturbação da operação normal de uma companhia aérea tem consequências significativas sobre a sua já pequena margem de lucro. Se juntarmos a isto o facto de a aviação ser uma indústria que, por natureza, opera num ambiente global, é fácil entender a importância que factores externos têm na operação. Desde conflitos militares a migrações. De eventos climáticos e crises políticas. De novas inovações tecnológicas a pandemias. O impacto que estes eventos, que não são controláveis, podem ter numa companhia aérea é impressionante. Aliás, estamos a viver um deles: a pandemia SARS-CoV-2 colocou todas as companhias aéreas de joelhos. Segundo a associação internacional de companhias aéreas (IATA), a indústria de transporte aéreo já perdeu mais de 314 mil milhões de Dollars desde o início da crise.

E este será o segundo ponto: não é apenas a TAP que está a passar por dificuldades. São todas as companhias aéreas a nível global. Empresas como o grupo Lufthansa, Vueling e Iberia (IAG), AirFrance, KLM, Delta, American Airlines, United e até Ryanair (empresas tradicionalmente com uma margem de lucro bastante acima da média) viram-se obrigadas a negociar ajuda ou apoio estatal. A TAP (que entrou o ano passado no top quinze das maiores companhias aéreas europeias) é, curiosamente, a única que ainda não sabe se terá algum tipo apoio e, se existir, em que moldes. E isso gera uma incerteza enorme para a empresa. Enquanto todas as suas concorrentes directas já sabem de alguma forma com o que podem contar, a TAP não sabe, o que a coloca numa incrível desvantagem estratégica nesta fase de retoma. Esta indefinição e esta demora por parte do Estado Português em iniciar negociações é incompreensível, especialmente tendo em conta que este detêm 50% da companhia. Ou “sim” ou “não”, mas é rapidamente necessária uma resposta, e um esclarecimento sobre as eventuais condições impostas pelo Estado (que são legítimas).

Isso leva-nos ao terceiro ponto: é a TAP essencial para o país? Sim e não. Para um conceito abstracto daquilo que é um país, não. Mas para o país que somos, Portugal, sim, a TAP é fundamental. Repito: fundamental. Bem ou mal, Portugal é hoje extremamente dependente do turismo. Este é, de facto, o sector com maior peso no nosso produto interno bruto (PIB): 13.1% segundo o INE (valores de 2017). E segundo a União Europeia, 23.1% do emprego gerado em Portugal está directamente ou indirectamente relacionado com este sector (colocando Portugal apenas atrás da Grécia e da Croácia). Em 2019 Portugal recebeu 27 milhões de turistas, dos quais 16 milhões de nacionalidade estrangeira tendo a maioria chegado por via aérea. A TAP em 2019 transportou mais de 17 milhões de passageiros, dos quais uma percentagem significativa passou – e gastou – em Portugal. Por si só isso daria que pensar, mas o facto de ser uma empresa nacional, baseada em Portugal, proporciona e permite a presença de um HUB em Lisboa, algo estrategicamente importantíssimo para o país. Ao invés de sermos um ponto de passagem secundário na Península Ibérica, a presença de um HUB em Portugal é gerador de riqueza. O desaparecimento da TAP facilmente deslocaria a operação que hoje temos em Portugal – especialmente longo curso - para outros aeroportos estrangeiros como, por exemplo, Madrid. O grupo IAG que adquiriu a Air Europa recentemente (uma das maiores concorrentes da TAP para a América do Sul, com base em Madrid), e que também possui a Iberia (que em conjunto com a Air France, Air Europa e TAP são as quatro empresas com mais voos Europa-América do Sul), estaria numa posição privilegiada para assumir parte significativa da operação da TAP. Mas pondo de parte esta visão estratégica, de longo prazo, coloca-se a questão: compensa ao Estado ajudar a companhia aérea nacional com, digamos, mil milhões de Euros? Primeiro que tudo convém esclarecer que esta ajuda não tem de ser a fundo perdido: poderá ser um empréstimo com condições favoráveis ou de cariz obrigacionista, por exemplo, o que significaria que o contribuinte português receberia o retorno do seu investimento a curto prazo. Posto isto, a TAP tem um impacto directo e indirecto no PIB português de 2%. Pagou em impostos e contribuições ao Estado em 2019 328 milhões de Euros. Emprega em Portugal mais de 9000 trabalhadores, que representaram em 2019 um encargo com pessoal na ordem dos 740 milhões de Euros. É fácil entender que só em impostos perdidos, a suposta ajuda do Estado estaria paga em pouco mais de três anos, e que 740 milhões de Euros de ordenados convertidos em subsídios de desemprego representariam um encargo ainda maior. É simples de concluir que a perda da empresa teria um custo muitíssimo superior para o Estado no curto prazo, do que um empréstimo ou injecção de capital. Mas existe sempre o argumento que se a TAP não existir outro concorrente irá tomar a sua posição no mercado. É verdade: em mercado liberalizado é isso que acontece, não existem espaços vazios. No entanto existe uma certeza: esses concorrentes não seriam nacionais. E uma empresa que paga impostos lá fora, na Alemanha, Londres ou Amsterdão, não gerará a riqueza que gera a TAP para o país e para o Estado, e terá Lisboa como destino e não como origem, deitando por terra o projecto de HUB já falado. Afinal, nós, como portugueses gostamos tanto de criticar – e bem! – empresas que por cá operam e pagam os impostos lá fora, e parece que estamos desejosos que também aqui, no transporte aéreo, ocorra o mesmo.

Finalmente, chegamos ao último ponto: a nossa facilidade como povo de achincalhar aquilo que nos é importante. É totalmente legítimo criticar a gestão da TAP. É totalmente legítimo interrogar sobre planos futuros e questionar o não cumprimento dos objectivos financeiros do plano estratégico. E é totalmente legítimo exigir condições para que a ajuda do estado português se materialize. No entanto, já não é compreensível qualquer tipo de interferência política nas decisões operacionais da companhia ou utilizá-la para fazer campanha. Ou então temos de ser coerentes, e escolher se queremos uma companhia que se torne rentável, ou se queremos uma que voe as rotas que queremos, mesmo não existindo procura, por mero capricho ou ambição pessoal. É que ter as duas é impossível. E teremos de pagar bem mais pela segunda opção. E a classe política neste aspecto esteve - e está - muito mal. Deveria ser do interesse nacional uma TAP saudável que crie riqueza ao país. E país é a palavra importante aqui. Somos um todo, e não um aglomerado de regiões. Caso contrário todas têm, legitimamente, ambições próprias, mas que são incompatíveis com esse principal objectivo. A instrumentalização da TAP - de gestão privada - para exacerbar a divisão nacional ou conflitos regionais é, acima de tudo, populismo. E diz muito sobre a nossa incapacidade de ter uma visão estratégica a nível nacional, que é infelizmente e regularmente substituída por uma visão individual, redutora e de curto prazo.

Compreendo que como país estamos fartos de intervenções estatais. Estamos saturados de ver dinheiro público mal gasto. Mas esta pandemia é uma situação excepcional, em que todas as companhias aéreas a nível global estão em igual situação, e em que o sector do transporte aéreo – essencial para o turismo, para a economia nacional e para o país – é especialmente afectado. Pura e simplesmente a esmagadora maioria das companhias aéreas desapareciam sem qualquer tipo de apoio e todas elas, e a indústria como um todo, precisa urgentemente de ajuda.

Ajudar a TAP não é um capricho. Não é um desvario. Não é uma teimosia. É uma necessidade. A TAP é estrategicamente importante para o nosso país, tal como ele existe hoje. E ao contrário do que possa parecer, sairá mais barato ao Estado intervir do que deixar cair a companhia.

Muito, mas muito, mais barato.

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Foto: TAP Air Portugal

Esses gajos dos helicópteros

“Epah”, dizia, “não é bem assim”. Faz uns dias foi assim que respondi a um colega. Estávamos os dois no cockpit, algures sobre Espanha a trinta e sete mil pés, e falávamos de um traço muitas vezes associado ao povo português: a mesquinhez. Eu, de forma algo ingénua, ainda acreditava que aquilo seria uma reputação injusta.

 Os últimos dias provaram-me (mais uma vez) errado. Viver e aprender, como dizem os norte-americanos. Somos mesquinhos. E não é pouco.

 Após o recente falecimento de um piloto de combate a incêndios no norte do país, e pelo facto de o mesmo ser oficial piloto da Força Aérea, multiplicaram-se os comentários, manchetes e notícias sobre como pilotos militares participavam no combate a incêndios pondo em causa a sua legitimidade. “Militares tiram férias para ganhar milhares a apagar incêndios” foi, a título de exemplo, uma das manchetes publicada num jornal nacional. Às vezes, a forma como se escreve diz mais que o seu conteúdo.

Vamos lá esclarecer uma coisa: devemos ser o único país onde alguém nas suas férias decide trabalhar, em detrimento do seu descanso, em prol dos seus compatriotas e isso é visto como negativo.

Mas qual é o problema?

Porque é militar? Estava devidamente autorizado (como estavam todos) pela chefia máxima desse ramo militar, cumprindo todos os parâmetros exigidos pela lei e pela instituição militar.

Porque existem pilotos civis? A falta de pilotos de helicópteros com os requisitos mínimos para combate a incêndios, e disponíveis a fazê-lo, é tão significativa que obriga a “importar” pilotos estrangeiros, como é exemplo os elementos de nacionalidade espanhola e brasileira que neste momento voam em Portugal.

Porque é remunerado? Voar um helicóptero, com um balde cheio de água em carga suspensa, durante dez horas diárias num dos ambientes mais hostis em termos aeronáuticos, com orografia do terreno acidentada, obstáculos artificiais como postes de alta tensão, e turbulência extrema causada pelo incêndio é digno de quê? Uma palmada nas costas e um copo de água? Um “gosto” no Facebook? Uma corrente de amizade online? E, já agora convém lembrar, numa função que representa a defesa do património de todos os portugueses.

Confesso… às vezes não compreendo o que se passa na mente colectiva de quem habita este pequeno país. A Força Aérea Portuguesa não é um a prisão. Os seus militares – e neste caso concreto os seus pilotos – são elementos altamente treinados, profissionais e com valências distintas. Mas têm vidas para além da tropa. Têm famílias. Têm férias como todos nós. E sim, a sua formação é paga pelo erário público, tal como qualquer elemento da função pública ou formado pelo estado. Vamos portanto, pela mesma ordem de ideias, proibir os médicos formados em faculdades públicas portuguesas de exercer no privado? Vamos impedir um funcionário das finanças de abrir o seu negócio? Vamos impedir um bombeiro sapador de, nas suas férias, trabalhar como vigilante florestal para uma entidade privada? Vamos impedir um agente da PSP de ter um part-time se ele quiser providenciar melhores condições financeiras para a sua família?

Que diferença esta… da nossa mentalidade latina para a mentalidade anglo-saxónica onde ter vários empregos, onde trabalhar mais para “subir na vida”, é visto com admiração. E não com o escárnio e mal dizer que caracteriza a nossa reacção.

E faço aqui a minha declaração de interesses: fui piloto da Força Aérea. Fui piloto de helicópteros. Não fui piloto de combate a incêndios. E só tenho a agradecer a todos aqueles que todos os dias entram num helicóptero ou avião para combater um incêndio no meu país. E é justo o que ganham para o fazer? Claro que não. Deveriam ganhar o triplo.  

O Oficial Piloto Aviador que perdeu a vida foi Socorrista. Era Bombeiro. Era Piloto de Busca e Salvamento. Era Piloto de Combate a Incêndios. Porra, até os dois cães que tinha foram treinados pelo próprio, no seu tempo livre, para serem cães de busca e salvamento. Dedicou, literalmente, toda a sua existência à salvaguarda da vida dos seus compatriotas.

 Merecia mais de nós.

 Muito mais.

 

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Foto de capa: autor desconhecido

Há 50 anos fomos à lua. E agora?

Existem gerações que têm o privilégio, e a sorte, de viverem em alturas incríveis. De observarem momentos que definem a humanidade. De viverem a História em directo. Hoje celebra-se um desses dias. Há cinquenta anos o Homem aterrava na lua; chegámos lá depois de uma viagem de quatro dias. E a nave que “nos” levou tinha um computador de bordo com um poder de cálculo inferior ao de uma simples calculadora de bolso. Fantástico e inspirador.

1969 foi para a aeronáutica, e para todos os efeitos, um ano excepcional: o Homem foi à lua, o Concorde voaria pela primeira vez e o consórcio Airbus seria criado.

Passados estes cinquenta anos onde está a nossa curiosidade? A nossa vontade de descobrir? De ir mais longe, mais alto, mais rápido? O que se passou com a nossa capacidade de filtrar conhecimento? De pensar pela nossa cabeça? De ambicionar melhor e de procurar fazer coisas novas?

Apollo11

Há uma observação acutilante no livro “Art of the Long View”, de Peter Schwartz. Ao analisar os Estados Unidos do final do século passado, o autor tenta perceber o que se passou com a motivação social do povo americano. Enquanto que na década de sessenta um problema era encarado como um desafio – a ida à lua, a maior das epopeias da Humanidade era o maior exemplo – no final do século XX qualquer problema – o exemplo dado era a falta de infraestruturas nas maiores cidades americanas – era assumido como uma inevitabilidade sem solução, e não como um desafio. A percepção de como encarar “algo” difícil tinha, socialmente, mudado.

 Nós, como espécie, estamos presos nessa mesma letargia.

 Vivemos numa época em que ainda existe quem pense que o planeta é plano. Mesmo cinquenta anos depois de da Lua termos visto o globo a que chamamos “casa”.

Vivemos numa época em que parte da população não vacina os filhos, mesmo após décadas de investigação científica, doenças erradicadas e um aumento incrível da esperança média de vida.

Vivemos numa época em que indivíduos com poder de decisão ignoram de forma intencional o conselho de quem percebe: a comunidade científica.

Vivemos numa epóca em que o valor da verdade, na comunicação pública e política, aparenta ser nulo.

Se Neil Amstrong e a Buzz Aldrin imaginassem isso enquanto caminhavam pela lua (e já agora a Michael Collins enquanto orbitava alguns quilómetros acima) certamente se interrogariam que raio se teria passado connosco.

Está na altura de voltar a ganhar o foco. De pararmos com merdas. De olharmos novamente para o desconhecido e encarar os nossos problemas como desafios. E de ir em frente. De lembrar que unidos somos capazes de feitos fantásticos.

Faz cinquenta anos que fomos à lua caramba!

A agora?

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O primeiro



Início de Setembro, 2011, Porto Santo. Arrisco-me a dizer que é a altura ideal. O tempo, esse, é de Verão e a ilha encontra-se mais calma após a loucura de Agosto mas ainda com suficiente actividade para não nos sentirmos isolados do mundo. Encontrava-me em mais duas semanas de destacamento – mais duas entre inúmeras outras – a garantir o alerta de busca e salvamento nesta área do país. “Ao menos tinha sorte com o tempo”, reflectia. 

Na altura encontrava-me qualificado como “P – Piloto”. O chamado “P” é a qualificação intermédia entre co-piloto e piloto comandante. Significa que curso de comando está feito, voa-se à direita no cockpit – no lugar do comandante – fazendo tudo aquilo que ele faria, incluindo a parte operacional, com a nuance que do lado esquerdo se senta um comandante qualificado que nos guia e ajuda. Esta era uma forma excepcional de o piloto ganhar confiança, experiência e aprender com outros comandantes até ser “largado” como piloto comandante operacional. Na essência, um “P” era um quase comandante. E apenas passaria a tal quando todos os outros comandantes da Esquadra achassem que aquele elemento estaria pronto a assumir o comando de uma tripulação de busca e salvamento numa missão real. E isso não é uma decisão que se tome com leviandade. 

Para nós, os “P” da altura, a primeira missão real de guincho barco era um marco crucial. Seria a primeira vez que, sentados à direita, iríamos estar aos comandos do helicóptero durante uma recuperação de guincho real de uma embarcação. Real. Isso significa que nas nossas mãos estaria a vida do nosso camarada Recuperador Salvador, amarrado no guincho à mercê das nossas capacidades – ou falta delas! – e a vida dos náufragos ou resgatados que iríamos ajudar. Por mais que à nossa esquerda estivesse um comandante de pleno direito, a operação só teria sucesso se nós fossemos profissionais. A palavra “responsabilidade” tomava aqui uma outra dimensão. 


E é em mais um belo dia na ilha Dourada que toca o telefone. 

“Nunes, vamos embora. Vamos voar”, dizia o comandante do outro lado. 

A adrenalina é instantânea. 

“Foda-se. Queres ver que é desta?”, penso. 

Corro para o quarto, calções fora, fato de voo vestido, e ainda me estou a calçar enquanto cruzo a porta do quarto. 

A tripulação encontra-se à porta do hotel, entramos todos na carrinha azul – mais conhecida no Porto Santo do que Zarco ou Colombo – e partimos em direcção ao hangar onde se encontra o EH-101 “Merlin”. Este hangar, e alguns pequenos edifícios de apoio, situam-se na parte norte do aeroporto de Porto Santo, na área militar. 

Na carrinha o Comandante já tem mais algumas informações. A missão para hoje é resgatar um dos elementos da tripulação do navio “GLORIOUS DOUGLAS” a cento e trinta milhas a norte do Porto Santo. 

“Vou à direita?”, pergunto? 

Recebo um daqueles olhares como quem diz “Não, queres ver que vais a coçar tomate?”. 

“Yeup”, é a resposta exacta. 

Comigo um dos operadores de sistema (guincho) mais antigos na esquadra, um recuperador salvador de mão cheia (e grande amigo) e provavelmente o enfermeiro com mais experiência em evacuações aeromédicas em todas as forças armadas. Logo aí fico mais calmo – é mais difícil meter as patas com malta tão profissional a bordo.

O sol brilha. Cheira a praia. Motores em marcha, descolo e rumamos a norte. A caminho entramos em contacto com o Comando Aéreo da Força Aérea, em Lisboa, através de rádio de alta frequência. Recebemos mais informações sobre a posição do navio e o estado do paciente. A sessenta milhas tentamos o primeiro contacto com o navio. Informamos o mesmo que deverá alterar a sua rota para um rumo que seja trinta graus a estibordo da direcção do vento para facilitar a recuperação. Aqui vem a primeira surpresa: como estavam a rumar sul iriam precisar entre dez a doze minutos (!) para alterarem a rota. “Este deve ser dos grandes”, comentamos. Tanto tempo para uma mudança de rota, significa que seria um navio com dimensões consideráveis. Perfeito, coincidia com o nosso horário de chegada. 

O primeiro(a) nunca se esquece, não é o que dizem? (Foto: autor desconhecido)

O primeiro(a) nunca se esquece, não é o que dizem? (Foto: autor desconhecido)

E era-o. Nem sempre fui um tipo a quem a sorte sorrisse constantemente na vida. Mas nas alturas cruciais ela tem sido uma bela companheira. O navio era enorme. A área de recuperação, na popa, a maior e mais desimpedida de obstáculos que tinha visto até então. O mar, esse, estava chão. Nem um metro de vaga. E o vento era uma ligeira brisa que soprava de forma constante. Não eram só as melhores condições que tinha visto enquanto “P”. Eram as melhores condições que tinha visto em qualquer voo, de treino ou real, que tinha feito até então na Esquadra.

“Ou vai ou racha”, penso. Damos início à operação, já coordenados com o navio.

“Podes colocar o homem à porta”, verbalizo. 

“Dez à direita, vinte em frente”, diz a voz calma do operador de guincho. O Recuperador Salvador já se encontra no éter que separa o nosso helicóptero de catorze toneladas daquele navio com milhares mais. 

“Oito à direita, dez em frente”. 

Tento ser o mais suave possível nos comandos. Cíclico (o nosso manche) um pouco para a frente e para a direita, colectivo como necessário para manter a altura constante.

“Seis à direita, cinco em frente.”

Mais um pouco. “Não faças merda agora”, corre-me pela mente.

“Três à direita, um em frente”.

“Dois à direita”.

“Um à direita”.

“À vertical, mantenha!”

Asseguro as minhas referências visuais, já obtidas durante um estacionário prévio. Agarro-me a elas como um cão se agarra a um osso. 

“Mantenha... Contacto!”, diz o operador de guincho. 

Para um piloto de busca e salvamento há poucas palavras mais bonitas que aquela: “contacto”. Significa que o Recuperador Salvador está seguro no convés do navio.

“Contacto, foda-se!”, penso interiormente. O pico de stress, a colocação do homem no convés, estava feita. 

O Recuperador-Salvador efectua os seus procedimentos e prepara o membro da tripulação, de nacionalidade ucraniana, para a recuperação. O processo repete-se, volto a colocar o helicóptero à vertical da posição e à voz de “Quinze à esquerda” já sei que o Recuperador Salvador e o resgatado se encontram suspensos pelo guincho. Afasto o helicóptero da vertical do navio até estarmos suspensos sobre o oceano.

Todos dentro do helicóptero. O enfermeiro inicia o apoio à vítima. Voltamos a Sul, despedimo-nos do navio e rumamos ao heliporto do hospital do Funchal. 

Durante o voo para sul apercebo-me que “já está”. A minha primeira missão de recuperação em navio operacional a voar à direita estava feita. E tinha corrido bem. 

Aterramos em Porto Santo já ao final do dia. Vamos jantar todos e regressamos ao hotel. Assim que a cabeça toca na almofada adormeço instantaneamente. Durante esse destacamento efectuámos mais três missões operacionais de evacuação entre ilhas. E sempre a voar à direita. 

Mal sabia eu que que iria passar a voar naquele lugar de forma permanente em breve. Ganharia o meu comando no final daquele mês. 

O primeiro(a) nunca se esquece, não é o que dizem?  

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Foto de capa: Menso Van Westrhenen

O Futuro foi lá atrás

Não me recordo que idade tinha. Sete, talvez oito anos. E “paciência” era a palavra que definia os meus pais. Colado na janela da casa da minha avó, procurava um vislumbre do Concorde, que aterraria e descolaria de Lisboa. Aquela que era a mais rápida aeronave de transporte de passageiros do mundo e iria partir da capital portuguesa para uma volta ao mundo.

Hoje, dia 02 de Março, faz cinquenta anos que o Concorde descolou pela primeira vez, decorria o ano de 1969.   

Quando os aviões eram bonitos!

Quando os aviões eram bonitos!

Custa a acreditar que já passou meio século. E ainda custa mais acreditar que nenhum Concorde – e para esse efeito, nenhuma outra aeronave semelhante – voe hoje pelos céus do planeta. Esse ano – o de 1969 – foi provavelmente o pináculo da indústria aeroespacial humana. O Concorde voaria pela primeira vez e alguns meses depois o homem aterraria na Lua.   

Onde foi parar o nosso espírito empreendedor? Em pouco mais de vinte e cinco anos – de 1944 a 1969 – as viagens aéreas passaram de pequenos bimotores a hélice com capacidade de pouco menos de trinta passageiros, para uma aeronave capaz de voar no limiar da atmosfera a mais de duas vezes a velocidade do som. Um salto tecnológico fenomenal e um atestado à vontade humana de ir mais alto, mais longe e mais rápido. Esse espírito, essa vontade de quebrar barreiras e de ser o “primeiro” foi a partir daí substituído por uma política de redução de “custos” e eficiência. Nunca mais os aviões voaram tão rápido ou tão alto. Nos cinquenta anos seguintes, em termos aerodinâmicos, as aeronaves mantiveram-se com um design bastante semelhante. O voar mais barato, mais economicamente e com um maior número de passageiros passou a ser o benchmark da Indústria. Foi, sem dúvida, a opção mais racional. Democratizou a aviação, e fez do transporte aéreo aquilo que ele é hoje.  

 Mas parte do “glamour” , da “aventura” e do “orgulho” de ir mais além desapareceu da Aviação com aquele que foi o mais belo avião de transporte de passageiros do mundo. Como se as duas realidades – a empreendedora e a mais económica - não fossem compatíveis.

 Já passaram cinquenta anos. E parece que o futuro ficou lá atrás.

 Não estará na altura de voltarmos a olhar mais alto?

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Direito por linhas tortas

Desolado. Era assim que me sentia e não existia outra palavra que pudesse definir o que me passava pela alma naquele momento. Decorria o final do Verão de 2003, e tinha acabado de saber que tinha reprovado no exame nacional de Química. E com isso no 12º ano. 

A vida às vezes tem uma maneira engraçada de nos surpreender. De nos dar a volta e de nos obrigar a olhar para o panorama geral. Provavelmente aquele ditado popular “fecha-se uma porta, abre-se uma janela” é mesmo verdade. Aquele Verão prova-o. 

Estava a efectuar o estágio de voo para a Academia da Força Aérea. Duas semanas na Base Aérea de Sintra e sete voos em DHC-1 Chipmunk. Aeronave antiga, difícil (será alguma fácil para quem está a começar?), desconfortável e com uns instrutores que tendencialmente falavam mais alto do que os meus tímpanos estavam habituados. Estaria a mentir se dissesse que estava a adorar a experiência – estava (estávamos!) todos nervosos e expectantes. Era um dos últimos obstáculos a ultrapassar se quiséssemos ingressar na Academia.

Naquela altura – provavelmente estará igual agora – podíamos dividir os nossos exames nacionais em duas fases. E podíamos igualmente anular uma disciplina e ir apenas a exame, contando essa nota como a nota final. Era procedimento normal entre os alunos anular uma disciplina com nota mais baixa e tentar a sorte no exame, tentando garantir assim uma nota superior. Era o meu caso. Estava prestes a terminar o ensino secundário com média de 14.6 e queria chegar ao quinze. Química – para o qual eu tinha tanto jeito como para tricotar camisolas de malha – iria ser a minha pior disciplina, terminando o ano com onze valores. Fruto da minha ingenuidade (a verdadeira palavra aqui é “estupidez”) de adolescente, decidi anular a disciplina e propor-me a exame na segunda fase. “Assim tiro um treze ou catorze e não me estraga a média, acabo com média de quinze”, pensava eu. Feliz e contente lá fui. E assim chegamos ao final daquele Verão. Onde nas vésperas do meu sexto voo recebi a notícia que tinha tirado pouco mais de nove valores. Choque. Tinha acabado de chumbar o 12º ano.

Eu nem sabia o que dizer. Nem sabia o que pensar. Nem sabia o que fazer. Média superior a catorze, e ano chumbado. Piloto? Jamais. Estava desolado. Como é que era possível?

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No dia em que abandonei o estágio de voo, após aquele sexto voo, o instrutor com quem voei demonstrou o porquê de todos o considerarem alguém excepcional. Pegou em mim, num trator de reboque, e andámos cinco minutos a acelerar pela placa da base aérea. Disse-me que nada terminava ali, que podia voltar a tentar, e que experimentasse concorrer para PIL (piloto miliciano) ao invés de PILAV (Academia). Era esse o seu conselho. Hoje somos colegas na mesma companhia aérea. 

Fui para casa. Acabava ali o sonho. 

Só que não. A Vida, essa madrasta, troca-nos as voltas. 

Repeti o 12º ano. Fiz todas as disciplinas que podia fazer (gato frio de água escaldada tem medo). Entrei na Faculdade, e no meio do primeiro semestre candidatei-me novamente à Força Aérea. Para Miliciano, como aquele instrutor me tinha aconselhado. Entrei em 2005. 

E a partir daí, é história. Entrei no melhor timing possível. Ganhei as asas em 2007. Voei operacionalmente uma, se não a mais, icónica máquina da Força Aérea: o Alouette 3. Qualifiquei-me em EH-101 Merlin e ganhei o meu comando em 2011. Fiz o que sempre sonhei fazer – Busca e Salvamento – e colecionei histórias para um dia contar aos netos. Vivi uma fase óptima na Esquadra 751, repleta de pilotos com espírito de iniciativa e vontade de fazer melhor e diferente. Fizemos a diferença naqueles anos. E quando saí das fileiras, fruto do final do meu contrato de seis anos, tive a sorte de entrar de imediato no mercado civil. Foi uma passagem directa. O timing, esse, foi perfeito mais uma vez. E aqui, agora, no mundo civil, reconheço a sorte que tenho de fazer parte do momento que a companhia aérea onde estou vive. 


E tudo isto porque chumbei naquele exame de Química. 


Quem diria – eu nunca! – que um dos meus momentos mais baixos foi, curiosamente, a grande razão dos meus momentos mais altos. Não fosse aquela nota, não tinha entrado quando entrei, não tinha ido para PIL como fui, não tinha voado o que voei, não tinha transitado para o mundo civil quando transitei.  Aquele exame foi, por mais estranho que pareça, uma bênção. 

Se o Ricardo de agora pudesse dizer algo ao Ricardo de então, do final daquele Verão, diria “não te preocupes”. Ele não iria acreditar, estou certo. Mas a verdade é que “tudo vai correr bem”. 

E correu. 

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Há dias de merda

Ontem descolei do aeroporto do Porto com destino a Genebra. A minha preocupação – claramente egoísta – é que aquele seria mais um dia longo. Três sectores de voo, onze horas de trabalho. Pouco antes de entrar em espaço aéreo espanhol ouvimos na frequência um helicóptero do INEM em comunicação com Lisboa. Dirigia-se para o Porto. Como ex-piloto de helicópteros da Força Aérea, lembro-me de pensar que uns 30.000 pés abaixo de nós, estaria provavelmente um amigo e ex-camarada meu. Aterrámos em Genebra, reabastecemos, embarcámos passageiros e descolámos de regresso ao Porto. Ao reentrar em espaço aéreo português o sistema de defesa aérea nacional, a cargo da Força Aérea, tentava entrar em contacto com o mesmo helicóptero do INEM sem sucesso. Comentei no cockpit que “a malta do INEM devia ter aterrado algures por causa do mau tempo”. Chegámos ao Porto pouco depois e seguimos para o Funchal.

Há dias de merda. Lá em baixo, para lá daqueles 30.000 pés, estava efectivamente um amigo e camarada. Alguém que esteve comigo na mesma esquadra de voo. Alguém que esteve presente no meu último voo como piloto militar. Alguém que amava aquilo que fazia. Com ele, outros três excelentes profissionais. E aqui, nestes dias de merda, a experiência não torna as coisas mais fáceis. Quando somos mais novos, especialmente quando ganhamos as nossas Asas, convencemo-nos que somos invencíveis. Um puto a quem deram um avião ou um helicóptero. O mundo a nossos pés. É inerente a qualquer piloto. É, arrisco, inerente a qualquer pessoa que faz aquilo que ama. E, como em tudo na vida, com a idade vem a percepção da realidade. A percepção de que somos falíveis e que o risco, esse, está sempre de braço dado com a nossa profissão. E ver camaradas “voarem” para o seu derradeiro voo não fica mais fácil com o tempo. Pelo contrário. Torna-se mais doloroso. Especialmente quando o fazem no desenrolar de uma missão em prol de todos nós.

 Há dias em que a Vida nos prova que é uma grande filha da puta. Que é injusta. Que leva os melhores de entre nós demasiado cedo.

 Ontem foi um desses dias.

  

Guarda-me uma cerveja.

Encontrar-nos-emos novamente.

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A culpa é da TAP?

Nas últimas semanas têm-se multiplicado as notícias sobre o estado do transporte aéreo nacional tendo vários artigos de opinião como foco a TAP. “Sempre a mesma coisa”. “Sempre atrasada”. "Uma vergonha”. O ranking de pontualidade da TAP Air Portugal está efectivamente abaixo da maioria das suas congéneres europeias. No mais recente Airline and Airport Star Ratings, publicado pela consultora OAG que mede os registos de pontualidade (On-Time Performance) de companhias aéreas e aeroportos, a TAP obteve a pontuação de 63.8%. 

Mas será que a culpa é apenas da TAP Air Portugal? Serão estes atrasos somente imputáveis à transportadora aérea nacional?

Vamos por pontos, e primeiro... os práticos:

O “caos” do aeroporto de Lisboa. Não sou eu que o digo. É o EL PAÍS, jornal do país vizinho. No mesmo rating acima referido publicado pela OAG, em mais de mil e duzentos aeroportos analisados globalmente, o aeroporto da Portela é o sexto pior classificado, ganhando apenas uma estrela em cinco possíveis. Com o aumento brutal de tráfego aéreo e do número de passageiros a chegar a Lisboa, que atingiu em 2017 26.7 milhões, mais 11 milhões que em 2013, Lisboa está a tornar-se um exemplo de crescimento insustentável. A ANA (Aeroportos de Portugal) vende a capacidade máxima de movimentos por hora que o aeroporto é capaz de suportar: quarenta. Isto significa que o mais pequeno contratempo, como por exemplo uma aproximação interrompida, mudança de pista ou mesmo descolagens entre aeronaves de classe diferentes (por exemplo um ATR-72 e um Airbus A340), resultará imediatamente num atraso. Mesmo tendo em conta que na hora seguinte, a “hora de recuperação”, o número de movimentos passe para trinta e oito. Por mais boa vontade que o controlo de Lisboa tenha será impossível recuperar esse atraso. Adicionalmente, a aplicação do processo A-CDM (Airport Collaborative Decision Making), que ajudaria a coordenar as operações em terra do aeroporto, acabaria por ser implementado de forma rápida e tardia (de modo a garantir os fundos europeus que o poderiam financiar). E, mesmo assim, o sistema não está completamente integrado com o EUROCONTROL sendo que algumas das tarefas não são executadas de forma automática (como a actualização de planos de voos ou do horário de saída – TOBT (Target Off Block Time) - que poderá demorar até cinco minutos a ser actualizado). Tendo em conta que se uma aeronave perder um TOBT por segundos, terá de esperar, mesmo que pronta, vários minutos, poderá ter-se uma ideia da dimensão temporal que o simples processo de sair do stand poderá ter. A juntar a isto as aeronaves com Slot (e já lá vamos a esta questão) têm sempre prioridade sobre as aeronaves que não o têm. Tendo em conta que hoje em dia a maioria dos voos tem Slot, o primeiro voo que não o tenha arrisca-se a sair com um atrasado significativo. Fisicamente também não há capacidade para mais. Na prática Lisboa possui apenas uma pista (03/21), sendo que a segunda, a pista 35/17, está constantemente fechada devido à necessidade de parquear aeronaves. A inexistência de um caminho de rolagem (taxiway) paralelo ao longo de toda a extensão da pista 21, quando as descolagens se dão na direcção sul, significa por si só que quando esta configuração está activa é impossível retirar o máximo de eficiência em termos de movimentos do aeroporto. Estes factos são completamente alheios e não são controláveis pela TAP. 

A somar a esta ineficiência e saturação da infraestrutura aeroportuária, existem questões de espaço aéreo. Este encontra-se dividido em sectores. Cada sector está atribuído a um controlador aéreo e tem uma capacidade máxima de aeronaves que pode suportar. Ultrapassar esse limite só quebrando as regras. Um Slot é, de uma forma muito rudimentar e simplificada, uma janela de tempo que está atribuída a uma determinada aeronave em terra – no aeroporto – ou no ar – espaço aéreo – e que garante que operação do voo seja contínua. É que lá em cima não existem bombas de gasolina, e quando um avião descola tem de se garantir que em rota existe a capacidade para o receber e acomodar. Um Slot é, resumidamente, uma faixa horária. Com a saturação do espaço aéreo e dos aeroportos europeus é cada vez mais comum a existência de Slots que por norma atrasam a partida planeada dos voos. Adicionalmente, em Portugal existem diversas zonas restritas ou reservadas de espaço aéreo que condicionam a optimização do mesmo. Um bom exemplo será a incapacidade de se criarem rotas de saída de instrumentos (SID, Standart Instrument Departures) para aeronaves mais lentas em Lisboa. E finalmente o software do sistema de gestão do espaço aéreo nacional encontra-se obsoleto. A NAV tem vindo a alertar para este facto, tendo o mesmo falhado pelo menos quatro vezes nos últimos anos. A sua substituição está finalmente prevista para o próximo ano de 2019. Estes factos são completamente alheios e não são controláveis pela TAP. 

Como terceiro ponto, a localização geográfica portuguesa. Lisboa está localizada na extremidade sudoeste da Europa, o que significa que a esmagadora maioria dos voos de médio curso com origem na capital tem de cruzar grande parte do território europeu. Uma greve no controlo de espaço aéreo francês, por exemplo, (e nos últimos anos têm sido várias) irá obrigar a que uma aeronave voe uma rota consideravelmente mais longa que o esperado. Uma aeronave da TAP com destino a Milão que se vir confrontada com uma greve do sector do controlo aéreo de Marselha, terá de fazer essa rota por Norte, via Paris e Bruxelas, ou por sul, por espaço aéreo Argelino, atrasando o voo significativamente. É evidente que esta questão afecta qualquer companhia aérea, não apenas a TAP. Mas uma operadora que está localizada numa das extremidades da Europa sofrerá consideravelmente mais que as restantes. Um dia de greve do controlo aéreo francês significa que quase todos os voos de médio curso da companhia nacional sofrerão algum tipo de atraso. Mais uma vez, estes factos são completamente alheios e não são controláveis pela TAP.

A nova geração de aeronaves TAP: Airbus A320NEO, A321NEO e A330NEO. (c) TAP Air Portugal

A nova geração de aeronaves TAP: Airbus A320NEO, A321NEO e A330NEO. (c) TAP Air Portugal


Mas agora falemos estrategicamente. Da “Big Picture”.

A concessão/privatização da ANA (Aeroportos de Portugal) ao grupo francês VINCI representou algo raro na indústria. O estado privatizou toda a estrutura aeroportuária portuguesa (ANA) ao mesmo consórcio, entregando efectivamente um monopólio a uma empresa privada. Por norma privatizam-se aeroportos individualmente, gerando concorrência. Não se privatiza toda a estrutura à mesma entidade. Privatizar individualmente os aeroportos incentiva a que “lutem” entre si para captar tráfego, melhorando as condições oferecidas e apostando numa expansão sustentada. A cedência de um monopólio a uma única entidade poderá ter o efeito inverso (como é exemplo o aumento constante das taxas aeroportuárias nos aeroportos nacionais). 

É igualmente bom relembrar que estava previsto no acordo de concessão da ANA que a Portela estaria esgotada com o processamento de 22 milhões de passageiros anuais e que essa seria uma das condições para que a empresa vencedora iniciasse o estudo e construção de uma alternativa. A Portela ultrapassou os 22 milhões em 2016. Hoje vamos quase em 27 milhões.

Igualmente surpreendente é o silêncio do Estado português. Para quem o turismo representa a pedra basilar da política de recuperação económica, a não tomada de uma decisão e o arrastar constante da escolha de uma alternativa irá levar, mais uma vez, a um impasse estratégico no país. O pensamento a longo prazo é algo que, infelizmente, ainda não está enraizado na nossa cultura governativa. E mesmo a opção Portela + 1, Montijo, está longe de ser consensual. Estudos mais recentes defendem que afinal levará mais anos que o previsto a ser construído (nunca antes de 2022) e que o seu custo será muito maior ao anunciado (nunca abaixo dos dois mil milhões de Euros). Provavelmente já estaria na altura do Estado fazer o que lhe compete: reunir a ANA, VINCI, Força Aérea Portuguesa, ANAC, NAV, Ministério do Planeamento e das Infraestruturas, Ministério da Economia, Ministério das Finanças, Secretaria de Estado do Turismo e o gabinete do primeiro-ministro, todos debaixo do mesmo tecto e daí só sair com uma decisão. Provavelmente chegariam à conclusão que estaria na altura de voltar a pensar na construção de um aeroporto de raiz e que essa opção, a longo prazo, sairia mais barata ao país. 

Com tudo isto não quero de todo afirmar que a TAP não tem defeitos. Tem com certeza. E deverá fazer tudo ao seu alcance para os corrigir. E quando tal não for possível, deverá exceder-se na protecção dos seus passageiros. A TAP está em franco crescimento o que origina diversas irregularidades operacionais. Mas, verdade seja dita, todas as companhias aéreas as têm. Não é um problema exclusivo da TAP. Mas parece que todas as críticas acabam por recair sobre ela. 

E, para terminar, façamos uma pequena analogia. Vamos imaginar que moramos em Almada. Entramos no nosso trabalho às 09:00 da manhã e todos os dias apanhamos um Táxi às 08:45. Como o trânsito na ponte 25 de Abril está sempre o caos chegamos constantemente atrasados. Mas nunca nos passará pela cabeça culpar o Táxi e o seu condutor, pois não?

Este problema não afecta apenas a TAP. Afecta todas as companhias aéreas a operar a partir de Lisboa. O problema está a montante não está? Está.

E neste caso a montante até tem nome. 

Chama-se Aeroporto Humberto Delgado. 

Dez anos, lembras-te?

Lembras-te?

Primeiro foi preencher os papéis. 

Depois foi aquela primeira ida ao centro de recrutamento. Mancebo? O que é isso? 

Depois os psicotécnicos. Perguntas sem sentido, desenhos borrados e gente fardada que te trata mal. 

Depois os médicos. “Quase ninguém passa na oftalmologia”, diz alguém. “Tenho um amigo que chumbou por ter um dente chumbado”, diz outro alguém.

Depois são os testes físicos, e amaldiçoamos o nosso cérebro por ter tido a ideia (estúpida) de beber duas latas de Redbull antes de uma corrida. Na segunda volta, lá está ela: a dor de burro. 

Depois o estágio de voo. Eu pensava que voar era divertido. Este avião nem é divertido nem é confortável. E o instrutor berra. Alto. 

Depois, recebes a carta em casa. És aceite. Sentes-te no pico do mundo. 

Depois vem a recruta. Corres, fazes flexões, disparas G-3, lanças umas granadas. Saltas muros, marchas quilómetros, não dormes. Crias laços. Aprendes a marchar. A toda a santa hora do dia. 

Depois juras bandeira. Sentes o orgulho de estar ali, de pé, face à bandeira nacional a entoar o mais o belo dos hinos nacionais: o nosso. 

Depois começas a parte teórica do curso. Passas o Verão enfiado numa base vazia. Sem ninguém, está tudo de férias menos o teu curso. 

Depois vais para sul. Para o meio do Alentejo. 

Depois vem mais teoria.

Depois vem o aperto. O não dormir. O atingir o fundo para te levantares depois. 

Depois vem o primeiro voo de instrução. Os primeiros suores. Os primeiros receios de não perceberes nada daquilo. Nem voar direito consegues. 

Depois lá consegues. Voar a direito. E voar em volta também, que a circunferência da Terra é grande e ir sempre a direito iria demorar algum tempo. 

Depois és largado. Voas sozinho pela primeira vez. Gritas dentro do cockpit quando descolas. Praguejas a alto e bom som contra todos aqueles filhos da puta que acharam que não eras capaz. És só tu, aquela máquina voadora e o infinito éter do céu português. 

Depois vem o jantar de largada. Não vale a pena falares dele porque, lá no fundo, nem te consegues lembrar do que por lá se passou.

Depois vêm as agulhas. Fechado dentro de uma tela, sem olhar para fora da aeronave, cruzas o país inteiro a olhar para três ou quatro instrumentos. Nada de olhar para fora, onde o sol brilha. Rota ponta mais trinta, cauda rota mais quarenta e cinco e pensas que está dominado. Não está. É muito mais que isso. 

Depois vêm os “loopings”, os trevos e os oito lentos e outras coisas que te fazem ver em túnel. Chamam-lhe força G. “Isto afinal é uma curtição”.

Depois mudas-te para a casa do lado. Vais voar helicópteros. Não! Vais voar “o” helicóptero. Aquele que tem idade para ser teu pai. 

Depois volta a teoria. E, foda-se, o manual está em Francês. Porque é que eu nunca prestei atenção às aulas de Francês? 

Depois vem o primeiro voo. Apercebes-te que, afinal, já não sabes voar.

Depois apaixonas-te pela máquina.  

Depois aprendes a voá-la. Esta consegue parar no ar. E até consegue voar para trás. 

Depois aprendes a fazer “bolinhas” no ar. 

Depois és largado. Sozinho, numa máquina desenhada pelo próprio Diabo. Sobrevives, não sabes bem como.  

Depois vem o jantar de largada de helicóptero. E neste tens uma vaga ideia que andava um bidé debaixo das mesas e alguém a discursar enquanto vómito lhe saía pelas narinas. 

Depois voltas a voar instrumentos. 

Depois aprendes a voar em formação. Ali, bem perto, quase com rotores sobrepostos. Voas com uma, duas, três aeronaves. Chegas a voar no meio de oito. “Bons tempos”, pensarás mais tarde.

Depois aprendes a navegar a cem pés com cartas do Exército de 1963. “Aquela casa não existe”. “Aquele lago é novo”. “Falta aqui a auto-estrada” passam a ser as tuas frases de eleição.

Depois aprendes a voar com quinhentos quilos presos por um cabo de aço ao helicóptero. Sentes pela primeira vez o que é um pêndulo em voo. Chamam-lhe carga suspensa.

Depois aprendes a “fazer um guincho”. Um tipo muito mais experiente e antigo do que tu, vai-se pendurar de livre vontade no guincho do teu helicóptero, contigo aos comandos. Há gajos malucos. 

Depois chega o último voo do curso. Fazes uma rapada à Esquadra (fazes não, faz o instrutor). Respiras de alívio. Chegas ao quarto e tomas um duche frio. Prometes a ti próprio que logo à noite vais a Beja rebentar uma garrafa de um qualquer líquido com elevado teor alcoólico. 

Depois vem o brevetamento. Finalmente tens asas ao peito: e são douradas. Não são de ouro, mas valem muito mais. Toda a gente que interessa está lá. A família, os camaradas, a porra da base inteira. O teu sonho de criança termina ali. Ou começa. Conseguiste aquilo que sempre quiseste, e isso faz de ti alguém realizado. 

E depois chegas ao dia de hoje. Hoje, dia 21 de Dezembro, faz precisamente dez anos que me puseram as Asas ao peito. Passaram dez anos. Dez. Dez anos de piloto. Dez anos de sonho realizado.

Olhas para trás e pensas “Que grande sorte que tive”! 

É que não tenho uma profissão.

Tenho uma paixão.  

Foto: CAVFAP (c)

Foto: CAVFAP (c)

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Há heróis na multidão

“Estes tipos e a mania de conduzirem do lado contrário da estrada”, era a única coisa que me passava pela cabeça. Lá fora estava frio, daquele húmido que entra pelos ossos. Que tempo tão tipicamente inglês. Ao volante, tentava não ir em contra mão ou levar comigo uma ovelha no para-choques. Perdido numa qualquer aldeia nos arredores de Oxford, eu e um camarada, tentávamos desesperadamente chegar intactos à base aérea de Benson. Era aqui que nós, pilotos de EH-101 Merlin, efectuávamos o nosso simulador de treino anual. 

A comunidade de países que opera este helicóptero é relativamente pequena pelo que em Benson conseguíamos trocar impressões com quase todos os operadores daquela máquina. Ingleses, Japoneses, Canadianos e Dinamarqueses eram presença assídua por aquelas bandas. A juntar a isso um grupo de instrutores de vários tipos de helicóptero, com mais anos de voo do que eu de vida, estavam sempre presentes. 

E é com um deles que me começo a aperceber da particularidade da nossa operação em Portugal. Uma manhã, depois de mais uma viagem do “lado contrário da estrada”, e sem razão nenhuma aparente, discutíamos o alcance efectivo do EH-101. Ao referir o facto que, por norma, íamos em excesso das 370 milhas náuticas do ponto de descolagem, um instrutor dizia-nos que “não podia ser”. Ao que ficámos por ali vinte, talvez trinta minutos, a consultar os manuais e a mostrar-lhe que, para nós, essa era uma operação normal e regular. Erámos, pelos vistos, os únicos que efectuavam missões a tal distância, sob condições tão adversas de meteorologia e sem reabastecimento intermédio (os canadianos aproveitavam as plataformas petrolíferas como ponto de reabastecimento).

Foto: Luís Forra (Agência Lusa) (c)

Foto: Luís Forra (Agência Lusa) (c)

Por vezes, é difícil Portugal reconhecer os seus como profissionais, como bons ou mesmo como excepcionais. Tirando raras excepções – como no futebol – temos a tendência de relativizar pela negativa as nossas capacidades, comparando sempre com o que “vem de fora”. Algo feito “lá fora” parece ser sempre melhor do que algo “feito cá dentro”. É um pensamento negativo tão nosso, intrínseco no nosso ADN popular, com origem indeterminada. Quem sabe, talvez da altura do mapa cor de rosa. 

A realidade é que, mesmo sem esse reconhecimento, por cá temos muita gente muito boa, muito profissional e que nada deve a ninguém por esse globo fora. 

A Esquadra 751 da Força Aérea Portuguesa é um desses casos.

Todos os dias do ano, vinte e quatro horas por dia, aqueles pouco mais de cem militares mantêm em prontidão três alertas de busca e salvamento. Um no continente, um na Madeira e um nos Açores. Cerca de 20% daquele pequeno grupo está sempre de alerta, em prontos a descolar, revezando-se dia após dia, semana após semana, o que dará para perceber o esforço herculano de quem lá trabalha. 

A juntar a isso temos a importância da missão. Busca e salvamento, exigente mesmo nos dias mais calmos. Voar sempre que alguém precisa, faça o tempo que fizer, seja a que hora for. Fui um privilegiado por lá ter servido mais de quatro anos e por ter conhecido os camaradas que conheci. Vê-se por lá muita coisa que, pensamos, só seriam possíveis num qualquer filme produzido em Hollywood. Mas curiosamente, a grande diferença entre a realidade e a ficção é que a ficção tem de fazer sentido. A realidade, muitas vezes, não o faz. E quem quer que por lá tenha passado tem com certeza muitas estórias que os amigos pensarão que são um exagero. Mas não o são. Ali vivem-se situações extraordinárias. Há algo de imensamente reconfortante em ver no nosso dia a dia demonstrações de coragem, de abnegação e de sentido de dever. Sentir espírito de iniciativa ao invés de inércia. Sentir que, numa qualquer noite fria, num qualquer ponto do oceano, se for preciso, há um grupo de homens e mulheres que tudo farão para ajudar quem precisa. Foi, sem qualquer dúvida, um sítio excepcional para se trabalhar.

Por aquela gente sinto verdadeira admiração e respeito. 

Esse espírito, essa coragem e essa disponibilidade de fazer tudo por tudo em prol do próximo, é hoje finalmente reconhecida pela Nação. A Esquadra 751 recebeu das mãos do Presidente da República, Marcelo Rebelo da Sousa, a maior condecoração que um cidadão, ou grupo, pode receber do Estado português: a ordem militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito. Esta ordem é atribuída por feitos excepcionais de heroísmo militar ou cívico e actos ou serviços excpecionais de abnegação e sacrifício pela Pátria e pela Humanidade. 

Naquela condecoração estão quase quarenta anos de serviço. Milhares de vidas salvas e dezenas de milhares de horas de voo voadas. Estão centenas de militares. Estão muitos sucessos, mas também alguns falhanços. Muitos sonhos, muito suor e muitas lágrimas. E muito esforço familiar.

A Esquadra 751 é a primeira, e única, esquadra de voo da Força Aérea Portuguesa a ter a honra de ser agraciada com tal distinção a título colectivo. Não é, certamente, um pequeno feito. Hoje a Nação reconhece os seus.

Uma Missão extraordinária, só pode ser feita por pessoas extraordinárias.

E eu não me lembro de ninguém mais merecedor para tal. Ainda bem que ainda existem heróis na multidão. 

Aos que lá estão, e aos que por lá passaram, obrigado. 

Parabéns Esquadra 751.

www.merlin37.com/heroisnamultidao

(c) Força Aérea Portuguesa

(c) Força Aérea Portuguesa

A TAP já não é o que era

 

A TAP já não é o que era.

Quantas vezes já ouvi isto nos últimos tempos. Por amigos. Por conhecidos. Nos jornais. Na televisão. Em quase todos os fóruns de opinião pública existente, especialmente nas redes sociais.

E é dito de uma forma claramente depreciativa. Dito de uma forma a rebaixar aquela que (ainda) é a companhia aérea de bandeira nacional.

É algo que, de facto, transcende gerações de portugueses. O espírito de no meu tempo é que era.

E lá no fundo é verdade. E ainda bem. 

A TAP já não é o que era. Já não é o que era porque a aviação comercial já não é o que era. As necessidades e exigências do transporte aéreo comercial moderno assim o exigem. Adaptou-se. Onde antes existiam rotações de três ou quatro horas hoje fazem-se em tão pouco tempo como 45 minutos. Onde antes se tinham rotas com 5 ou 6 passageiros hoje existem rotas com aviões quase sempre cheios. Onde antes existia uma frota de 20 ou 30 aviões, hoje existem mais de 60. O dobro. Onde antes não existia concorrência, hoje, e com o mercado liberalizado, existem dez, vinte, ou mais concorrentes.

E tudo isto implica mais exigência. O que levará a mais falhas de serviço, sem dúvida. Falhas essas que têm de ser resolvidas. Com empenho e pragmatismo. Mas elas são consequência da evolução de toda a envolvente aeronáutica.

Foto: TAP Portugal (c)

Foto: TAP Portugal (c)

Ao ler o que se escreve por aí é difícil não ficar com a ideia que gerir expectativas, para quem voa na TAP, é uma tarefa impossível. Ora se quer preços que rivalizem com as companhias low cost, ora se quer um serviço de topo. E isso é, no mercado de hoje, impossível. Não é possível vender bilhetes a valores tão baixos como 36€ e servir uma refeição quente num voo de cinquenta minutos. E por mais que isso custe a alguns, a TAP não existe para cumprir as mordomias de uma classe, de um grupo ou de um indivíduo. Existe para, ao mesmo tempo que fornece um serviço em total segurança, gerar lucro. E isso obriga à tomada de decisões, por vezes difíceis, de convergência de serviço e adaptação ao mercado e concorrência.

A TAP ainda hoje representa Portugal. O nome está lá. Reflectido no indicativo de todos os voos: “Air Portugal”. E, independentemente de tudo, a TAP é ainda hoje uma referência. Referência de optimização (é das mais eficientes companhias da Europa, poucos fazem tanto com tão pouco). Referência de segurança (considerada a 7ª companhia aérea mais segura do mundo em 2014 pelo JACDEC, 3ª mais segura da Europa e constantemente no TOP 15). Referência como empresa (é o maior exportador nacional). Referência como símbolo nacional (ela é um pedaço de Portugal pelo mundo).

E, para o bem e para o mal, a verdade é que ela é a nossa companhia. Não entendo a vontade tão forte de alguns compatriotas meus de a verem falhar. 

A TAP representa um país: o nosso.  Com tradição, com profissionalismo e com alma (o que hoje em dia é difícil nesta indústria).

E isso deveria encher-nos de orgulho.

O mesmo que se tem ao ver o nome de Portugal inscrito na fuselagem de cada avião.

TAP Vintage - Airbus A330

Deve ter sido uma altura única. Para aqueles que nela voaram, trabalharam ou simplesmente usufruíram dela. Falo dos primórdios da aviação comercial. Que época excepcional.

Sempre que oiço estórias daquele tempo, contadas na primeira pessoa, cresce em mim um verdadeiro sentimento de inveja saudável. Quem me dera ter vivido aquele período.

Hoje vemos a aviação como algo garantido. Algo comum e generalizado. E muitas vezes não nos apercebemos que da “Aventura” à “Rotina” vão apenas algumas dezenas de anos. Passaram pouco mais de cem anos desde que o homem finalmente submeteu o ar à tecnologia. Nós, portugueses, fizemos parte dessa gloriosa história. Cruzámos o atlântico sul, fizemos raides aéreos a África e a Macau. Alguns dos nossos aviadores foram os primeiros cartógrafos de muitas regiões remotas do globo. Tivemos impacto.

A companhia aérea nacional – a TAP Portugal – com pouco mais de setenta anos de existência, ainda hoje é uma das mais reconhecidas companhias aéreas mundiais, com uma imagem forte e um registo de segurança invejável.

Cruzar o Atlântico ou o deserto a bordo de um Airbus A330 não é o mesmo que era na altura da fundação da companhia. Hoje ficamos chateados porque o “wi-fi” não funciona a bordo ou porque não gostamos daquele recheio na sandes. Raios. Mas há setenta anos atrás, e a bordo de um velhinho C-47 Dakota, demorava-se mais de uma semana, com várias paragens, a chegar-se a Lourenço Marques, actual Maputo. Era um “milagre”. Cada voo era uma experiência nova. Um privilégio e, há que dizê-lo também, apenas acessível aos mais abastados.

Um Boeing 747 da TAP Portugal (autor desconhecido)

Um Boeing 747 da TAP Portugal (autor desconhecido)

Com esta nostalgia e consciência histórica em mente, as grandes companhias aéreas mundiais (e já são poucas as que têm História e ainda sobrevivem) têm vindo a promover a pintura de alguns dos seus aviões com esquemas de pintura usados durante os chamados “anos de ouro” da aviação. Quando a aviação era “glamourosa” diz-se. Foi assim com a Lufthansa, com a Aer Lingus, Iberia, entre muitas outras.

Sempre pensei que era uma pena a TAP Portugal não ter uma dessas aeronaves. Com tanta história, com tanto reconhecimento e com tanto carinho por aquela companhia, não fazia sentido a TAP não possuir uma aeronave que nos transportasse de novo para aqueles tempos. E mesmo que não fosse pelo aspecto emocional, que o fosse pelo aspecto estético. As antigas pinturas da TAP eram, à falta de melhor palavra, lindas. Tinham classe. Aquelas décadas de 50 e 60 foram efectivamente anos de ouro da aviação, mas foram-no também do design.

Mas finalmente isso mudou.

A companhia aérea nacional pintou uma aeronave Airbus A330 com uma pintura “retro” da TAP.

E está fabulosa.

Uma pintura não só para relembrar o passado, mas também para nos relembrar que esta companhia (que é nossa e que representa, e muito, a imagem de Portugal lá fora) pode ter um futuro bastante risonho.

Começámos com caravelas. Evoluímos para naus. Depois vieram os barcos a vapor. Passámos para aviões de tela e de madeira. Agora usamos monstros de metal. Mas o espírito, esse, mantém-se o mesmo.

Parabéns TAP.

Parabéns Portugal.

www.merlin37.com/tapretro

Foto: Hélio Sales (c) 

Foto: Hélio Sales (c) 

O "novo" A330 da TAP Portugal com pintura retro. Foto: Diogo Parra (c) 

O "novo" A330 da TAP Portugal com pintura retro. Foto: Diogo Parra (c) 

O "novo" A330 da TAP Portugal com pintura retro. Foto: Diogo Parra (c)

O "novo" A330 da TAP Portugal com pintura retro. Foto: Diogo Parra (c)

O "novo" A330 da TAP Portugal com pintura retro. Foto: Diogo Parra (c)

O "novo" A330 da TAP Portugal com pintura retro. Foto: Diogo Parra (c)

A Morte não escolhe

Lá fora o vento soprava violentamente, como se quisesse derrotar por submissão o nosso helicóptero. Por baixo de nós o mar estava forte, cavado, com uma ondulação cruel. Tudo a norte do Tejo fazia lembrar Inverno. E estávamos em Julho.  

Ao nosso lado, a pouco mais de quarenta pés, estava um pesqueiro que teimava em não parar quieto. Nós os cinco estávamos ali para retirar e transportar daquela casca de noz alguém que precisava de ajuda urgente. A operação poderia resumir-se de forma simples: iríamos colocar um homem (por sinal, nosso amigo e camarada) num espaço aproximado de um metro quadrado, num pesqueiro que não parava quieto, com ondulação de cinco metros, através de um cabo de aço ligado à nossa máquina que, por provável solidariedade ou mera teimosia também não parava quieta. E assim o fizemos. 

Foto: André Garcez (c) 

Foto: André Garcez (c) 

Servi sob o comando de um Comandante de Esquadra que nos dizia algo do género: 

Quando a morte chega, ela não escolhe postos, não escolhes amizades, não escolhe géneros.

Aquela mensagem teve um forte impacto em mim e na maneira como voava. Significava simplesmente que, dentro daquele helicóptero, todos nós, desde o Piloto Comandante, ao Co-Piloto, ao Operador de Sistemas, passando pelo Recuperador Salvador e Enfermeiro, somos uma equipa. E como tal devemos trabalhar em perfeita sintonia num ambiente de respeito mútuo e total confiança. A missão por si só já era exigente e complexa, portanto era quase que obrigatório que todos estivéssemos na mesma página. Caso contrário, quando a coisa corresse mal, não havia posto ou amizade que se salvasse. Rodas no ar e todos os nossos problemas, pessoais ou não, ficavam em terra. O foco teria de ser só um. E lá dentro todos tínhamos de nos dar bem. 

Na aviação existe um conceito chamado de “Crew Resource Management” (CRM) que, muito resumidamente, defende que uma tripulação deve trabalhar em conjunto, inquirindo-se quando há dúvidas, e sem qualquer receio ou imposição de autoridade por de quem dela a usufrui. Sem medo de represálias entre eles. Um Co-Piloto não deverá ter medo de dizer a um Comandante que está errado e vice-versa. Chamem-lhe honestidade profissional. 

E aquela frase continua a ser uma das melhores referências a CRM que conheço.

Foi para mim um orgulho ter trabalhado em Esquadras de Voo onde em cada voo a confiança no Homem ao nosso lado era total. Quando tive a sorte de ganhar o meu Comando lembro-me claramente de voar em missões reais e sentir uma calma ímpar fruto da confiança plena em toda aquela malta, “presa” comigo naquele pedaço de alumínio e metal compósito. Quando alguém dizia algo sabia que o dizia sem qualquer tipo de restrição ou problema. Aliás, fazia-me mais confusão como é que eles tinham confiança em mim, um puto de 26 anos aos comandos!
Essa confiança, esse CRM, fazia com que fosse possível colocar um dos nossos homens naquele metro quadrado no convés daquele pesqueiro. 

A confiança, o respeito, o saber ouvir e a humildade de reconhecer o erro próprio, são a base de qualquer boa tripulação. De qualquer bom CRM. De qualquer bom aviador e arrisco-me a dizer, de qualquer boa pessoa. 

Se não for assim é bom que nos lembremos todos daquela frase. 

Quando a morte chega, ela não escolhe postos, não escolhe amizades, não escolhe géneros.

E ela anda sempre à espreita. 

Nada de novo na frente Norte: TAP e Porto

Faz décadas, talvez mesmo séculos, que nós, como povo, vivemos com uma crónica falta de auto-confiança. Isso espelha-se no dia a dia, um pouco por todo o lado. Temos tendência a desvalorizar o que é nacional e, automaticamente, a dar mais valor a tudo aquilo que vem de fora. E quando é altura de criticar, de atirar a primeira pedra, a dualidade de critérios é ainda maior. 

O aeroporto de Saint Étienne anunciou recentemente que rescindiu contrato com uma companhia aérea “low cost” que operava nas suas instalações. Essa companhia aérea efectuava cinco frequências semanais: duas para Fes, em Marrocos, e três para o Porto. Por essas cinco frequências semanais era subsidiada pela autarquia dessa cidade em setecentos mil euros anuais. Setecentos mil euros por cinco frequências semanais. Incomportável para o aeroporto que já tinha um défice superior a dois milhões de euros, referiram os responsáveis. 

Curiosamente este cancelamento de três frequências semanais de uma companhia “low cost” para o Porto não justificou a intervenção de nenhum autarca. 

Mas por cá, como sempre, a polémica entre a cidade do Porto e a TAP Portugal mantém-se.

O negócio do transporte aéreo é excepcionalmente competitivo. É volátil, dependendo sempre de tantas variáveis externas à empresa que uma qualquer crise – seja ela política, económica, social, de matérias primas – poderá levar à falência de uma empresa que era sólida somente à meses atrás. 

É normal que as companhias aéreas utilizem os seus recursos finitos – os aviões – nas rotas onde eles são mais rentáveis. Afinal de contas o objectivo de uma companhia aérea é dar lucro. Obter dividendos. E, até ver, a TAP Portugal embora com cinquenta por cento de capital público é uma empresa de gestão privada (o próprio estado português o refere).
Tendo em conta que a injecção de capital público na TAP é, neste momento, quase nulo, é normal que a companhia tente rentabilizar os seus meios. 

O corte que ocorreu faz uns meses de algumas rotas na cidade do Porto (rotas essas que, aliás, estão novamente a ser reforçadas, subida de 9% de passageiros no último mês de Janeiro), o fortalecimento do “hub” de Lisboa e os preços competitivos de, por exemplo, Vigo para Lisboa, são parte de uma estratégia para voltar a colocar a TAP nos verdes e obter quota de mercado a outras companhias, sendo uma táctica comum a qualquer outra companhia aérea no mercado. 

Sendo que a TAP Portugal é de gestão privada, não podemos querer que ela dê lucro e ao mesmo tempo cumpra os desejos de todos. 

Vivemos num país com pormenores engraçados. Um país geograficamente pequeno em que todos os distritos querem um aeroporto internacional. Temos três em Portugal continental: Lisboa, Porto e Faro. Mas aqui d´el Rei se Beja e Leiria não querem igualmente um. E todos sabemos como correu o projecto de Beja. 

E a mesma linha de pensamento é aplicada à TAP Portugal. Todos querem rotas da sua cidade. E isso, muitas vezes, não é possível. E o que não falta são exemplos por toda essa Europa. 

Quantos voos internacionais tem a Iberia de Barcelona? Quantos voos internacionais tem a Lufthansa de Berlim? A Iberia tem um hub: Madrid. A Lufthansa tem dois: Munique e Frankfurt. Nós teríamos de ter dois? 

Quando se vem a público criticar uma empresa nacional – e até apelar ao seu boicote por razões meramente de orgulho regional – é preciso ter-se consciência da realidade do mercado. A competitividade do negócio do transporte aéreo não é sensível a regionalismos, a paixões ou a opiniões. A realidade dos números é soberana. Para quem pretende ter sucesso, pelo menos. 

Eu não digo que não existam erros de gestão. Não digo que não se devia apostar mais no Porto. Pelo contrário. Provavelmente existe muito mercado por explorar. Mas a TAP Portugal tem de gerir muito bem os ovos que tem para dar o maior número de omeletes possível. Tem de gerir prioridades. 
Afinal o que preferíamos nós todos como cidadãos? Como contribuintes

Uma TAP com lucro significativo e crescimento sustentado mas com alguns voos deficitários a menos no Porto? Ou uma TAP com um “hub” no Porto mas a reportar prejuízo? 

Eu compreendo que um político  “defenda a sua dama”.  Está no sangue de qualquer um. Mas com pés e cabeça. E não atacando um parceiro importante apenas por eleitoralismo político.

Ou então é simples: financia-se e subsidia-se a TAP Portugal como se faz com algumas empresas “low cost”

Saint Étienne pagava setecentos mil euros. Quanto pagarão os municípios do norte pelas mesmas "low cost"? 

Mas disso... disso não convém falar. 

É incómodo.

E não dá votos

www.merlin37.com/tapeporto