O último voo

Escorria-me uma gota de suor pelo rosto e lá fora estava frio. Muito frio. Tinha acabado de “taxiar” e alinhar um Alouette 3 num dos heliportos da Base Aérea de Beja. Este seria o meu primeiro voo de helicóptero depois do treino elementar e básico de pilotagem em asa fixa, a voar o TB-30 Epsilon, o avião de instrução da Força Aérea Portuguesa. Ao meu lado, no lugar central, o instrutor, e no lugar da esquerda como passageiro estava outro aluno que assumiria o meu lugar a meio do voo. Esta primeira missão seria um voo de familiarização com as áreas de trabalho atribuídas a helicópteros na zona de Beja. Um voo sem avaliação, logo sem pressão.

“Estás pronto? Vá, descola”, disse o instrutor.

Descola?, pensei. Como assim? Este é o meu primeiro voo de helicóptero. Eu não sei voar isto.

Como, meu Major?”, respondi.

“Bora, descola aí, que eu dou uma ajuda”.

Este gajo é doido. Eu não sei mesmo voar isto!

Afirmativo...”.

Inicio a aplicação de colectivo e sinto o helicóptero a elevar-se nos amortecedores. Mais um pouco e estamos fora do chão. E aqui... aqui começa a luta infindável desta máquina infernal para dominar o éter do céu português.

Durante o curso teórico é-nos incutido que a mais difícil do que voar um helicóptero em linha de voo é mantê-lo em estacionário – inamovível sobre o mesmo ponto; aquilo que efectivamente diferencia um helicóptero de um avião, a sua capacidade de “parar” no ar. Mas por mais que nos digam isso, e que esperemos isso, sentir essa dificuldade é bem diferente.

Estávamos no ar. Manche para a frente e para trás. O meu braço não parava. Já não percebia se estava a tentar voar um helicóptero ou a bater um ovo. Com os pés era igual: ora vai o direito para a frente, ora vai o esquerdo. Com o colectivo, o mesmo. Para cima e para baixo. Era o maior teste psicotécnico da minha vida, e só para ficar quieto no mesmo sítio. Ora para cima para baixo, ora rodava no eixo para a esquerda, ora para a direita, e depois esquerda, esquerda, esquerda... e acabei por fazer um 360.

“Ah”, dizia o instrutor pelo meio de uma gargalhada, “pelo menos fazer uma rotação já sabes!”.

Foda-se, pensei, já não sei voar. Que máquina infernal é esta?

O instrutor, bem paciente, tomou o controlo com dois dedos no manche. Dois dedos. E o helicóptero, como que a gozar com o meu esforço, imobilizou-se no ar. Não se deslocava nem 10 cm para qualquer um dos eixos. “Relaxa”, dizia o instrutor “tens de fazer apenas pequenos movimentos”. Passámos a hora e meia seguinte a voar pela planície alentejana. Baixo. Bem baixo. E quando aterrámos pensei: apaixonei-me. Isto é fabuloso.

Foto: Rui Sousa (c)

Foto: Rui Sousa (c)

Para mim, aquele passou a ser um dos segredos mais bem guardados da Força Aérea: uma das aeronaves mais antigas, e visualmente menos sexy, era aquela que, afinal, mais gozo dava a voar. Passados anos, e depois de voar outras aeronaves, aprofundei essa certeza. Nada superava o estar sentado naquela “bolha” de plexiglass a 10 pés do solo. Voei-o como piloto operacional durante aproximadamente dois anos. E foi um privilégio. O Alouette 3 era de facto uma aeronave fantástica.

Após 57 anos de história não haverá provavelmente máquina mais icónica na Força Aérea Portuguesa, que signifique tanto para tantos, como este helicóptero de fabrico francês. Da Guiné a Timor, de Angola à costa portuguesa, de Moçambique ao combate e coordenação de incêndios, o Alouette 3 serviu de forma excepcional várias gerações de portugueses.

Hoje, o Ministro da Defesa voará nessa máquina infernal. Será um dos seus últimos voos oficiais ao serviço da Força Aérea Portuguesa e um acto simbólico de despedida.

Quem o voou, e quem nele trabalhou, não o irá esquecer. E que melhor forma haverá de nos despedirmos dele do que com um brinde. O mesmo que ecoava nos jantares da sua última Esquadra de voo, a 552: “À máquina”!

 Efectivamente, após 57 anos...

À máquina!

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Foto de capa: Rui Sousa