Competência

Portugal tem tido nas últimas décadas uma relação de indiferença (para não dizer outra palavra mais ofensiva) com as suas Forças Armadas. Era comum – fosse no mundo real, fosse no digital – a existência de comentários incompreensivelmente jocosos. Mas mais impressionante que esse facto, é a resposta que sempre foi dada pela instituição castrense: cumprir a missão com brio.

O Diário de Notícias publicou ontem, dia 09 de Maio, uma interessantíssima reportagem sobre o Vice-Almirante Gouveia e Melo e a task-force de vacinação que comanda. Nela é acompanhado o dia-a-dia da task-force e do seu comandante, coincidindo com o exacto momento em que é atingido um marco histórico: as cem mil inoculações diárias. É importante não relativizar a imensidão da tarefa logística que isto representa. Da coordenação necessária, do planeamento obrigatório e da incessante avaliação do progresso.

Foi notório que assim que o Vice-Almirante Gouveia e Melo ficou responsável pelo programa de vacinação à COVID-19 em Portugal, terminou o uso do mesmo como arma política – que era a mais abjecta forma de lidar com este problema. E embora a excelente capacidade operacional dos militares possa doer a algumas franjas da sociedade (e é importante lembrar que o Vice-Almirante até foi criticado por usar farda camuflada, como se esta não fosse a sua farda de trabalho ou como se não estivesse no seu direito como militar) a verdade é que passámos a ter frontalidade nas declarações e eficiência no processo. Só espanta é como é que não foi assim desde início. Pode ser que o poder política tenha tirado – mais uma vez – as ilações necessárias.

Ainda se vive neste país com um qualquer complexo, que admito, não sei explicar, com as Forças Armadas. Está na altura de, finalmente, terminar com ele. Pois mais uma vez elas responderam como melhor sabem: com competência.

E essa é uma qualidade que faz desesperadamente falta a este país. Cada vez mais.

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(Foto de capa: Global Imagens)


A Pátria honrai, que a Pátria vos contempla

A cada trovão, a cada relâmpago, aquela imensidão negra lá fora tornava-se familiar. Era possível reconhecer os contornos dos montes e do terreno que passava por baixo de nós. Nem que fosse por uns meros segundos. Visualmente, voávamos por fotografias. Estávamos a dois mil pés, rumo a Peniche. Duas da manhã. Talvez três. Tinha-me qualificado há pouco mais de um mês e esta era a minha primeira missão operacional como piloto de busca e salvamento na Esquadra 751. Estávamos em final de Fevereiro, e lá fora o tempo teimava em não perdoar. Ventos fortes, visibilidade baixa, vagas de oito a dez metros no mar. Fomos activados para efectuar uma busca a dois estudantes que tinham desaparecido em Peniche, caídos ao mar. Lembro-me de pensar que seria um “milagre alguém sobreviver nestas condições”. 

Estivemos no local quase três horas. A domar os elementos da natureza com os nossos três motores e o nosso gigante rotor. Todos de olhos postos lá fora, à procura do mais ínfimo sinal de esperança. De vida. 

“Que noite de merda”, pensava. O ar estava tão turbulento que já tinha os olhos cansados de tentar ler os instrumentos do helicóptero. Os olhos, e o corpo, pediam por descanso.  

Mas por mais que as condições naquela madrugada estivessem más, péssimas mesmo, não foi isso que mais me impressionou. 

O que me impressionou foi quem connosco lá estava.

Ali, uns meros cem pés por baixo de nós, navegava uma corveta da Armada portuguesa. Um pequeno navio, construído na década de sessenta, que enfrentava aquelas vagas, do tamanho de uma casa, de frente. Se eu estava a levar “porrada”, se eu estava desconfortável, se a nossa máquina estava instável, eles estavam bem pior. Recordo-me de ver toda a secção dianteira da corveta fora de água e o consequente embate violento no seu regresso ao oceano. E era assim, vaga após vaga. 

“Aqueles gajos têm uns tomates do tamanho do mundo”, comentámos entre nós. E tinham. Estar ali, naquelas condições, dentro de um casco de alumínio e aço, a escassos metros de terra, não era para qualquer um. Não era e não é para qualquer um. Ali, naquela madrugada, naquele momento, senti a mais profunda admiração e orgulho pela Marinha portuguesa. Aqueles gajos fariam o Infante Don Henrique orgulhoso. 

É preciso ser-se um alguém especial para estar ali dentro. (Foto: Nélson Vitorino)

É preciso ser-se um alguém especial para estar ali dentro. (Foto: Nélson Vitorino)

Existem poucos países no mundo com tamanha tradição naval como Portugal. A Marinha de guerra portuguesa, a Armada, está intrinsecamente ligada à história do nosso país. À nossa nação, a nós como povo, e às nossas tradições. 

Fosse no primeiro embate contra a frota sarracena, nos Descobrimentos, na manutenção da nossa soberania ou na salvaguarda da vida humana, falar da Armada é falar de Portugal.

Este ano, 2017, celebram-se setecentos anos sobre a formação oficial da Marinha de guerra portuguesa. Setecentos anos. Não estamos a falar de vinte e cinco. De cinquenta ou de cem. Nem de duzentos. São setecentos anos de Armada. Setecentos anos de história. De tradições. De combate. De coragem (muita!) e de ousadia. De ir do Brasil ao Japão em cascas de madeira. De fazer de Portugal, uma das mais pequenas nações da Europa, a maior de todas. De ir para além do mundo conhecido e dar “novos mundos ao mundo”.

Não é só Portugal que deve muito à sua Marinha. É toda a civilização ocidental. 

Nos dias que correm gostamos imenso de falar de Portugal e do mar. De como ele é importante para nós, de como faz parte da nossa maneira de ser, de como nos influencia e de como o nosso futuro, tal como o nosso passado, passa por ali: aquele profundo azul. 

Pois bem, quem nele nos representa, quem dele se ocupa, quem dele cuida e quem dele protege é a nossa Marinha. E fá-lo há setecentos anos. 

A história da Marinha é indissociável da história portuguesa. E foda-se, que magnífica história é essa! 

Em todos os navios da Armada está orgulhosamente inscrito o lema “A Pátria honrai, que a Pátria vos contempla”

E está na altura da a Pátria contemplar a Marinha. Pois ela muito nos honrou, e honra, como Nação, por esse mundo fora. 

Parabéns Marinha portuguesa. 

E obrigado. 

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Os quatro magníficos

Vinte e um.

“Que bando de gajos que para aqui vai”. 

Éramos vinte e um no meu curso da Força Aérea e quem olhasse para nós naquele tempo com certeza que teria dúvidas que aquele ajuntamento de gajos, de cabelo rapado e olhar incerto, daria origem a punhado de competentes pilotos militares. 

Foto: J. Parracho (Marinha Portuguesa)

Foto: J. Parracho (Marinha Portuguesa)

Após a aquisição dos helicópteros LYNX pela Marinha (e façamos um aparte para fazer uma vénia a essa grande máquina) esse ramo viu-se obrigado a formar os seus próprios pilotos. A opção lógica, claro, passava pela formação na Força Aérea Portuguesa. 

É assim que, após a nossa recruta na OTA, conhecemos pela primeira vez os quatro oficiais da Marinha que vão integrar o nosso curso. Afinal éramos vinte e um... mais quatro.

Oficiais de carreira provenientes da Escola Naval, foram que como atirados aos lobos para um grupo de “putos” sem qualquer experiência militar.  Imagino o que não lhes deverá ter passado pela cabeça. Certamente um expressivo “fodass”! Não é por acaso que o nome do meu curso é "Infernais". Podia muito bem ter sido "Bandidos" ou "Índios" tal era a quantidade de... chamemos-lhe irreverência, que demonstrávamos. 

Ao longo de mais dois anos aqueles quatro elementos foram o nosso enquadramento. Pela Ota, pelos “horrores” da Esquadra 101 e mais tarde pela Esquadra 552, todos nós ficámos com a sensação que aqueles quatro marmotas – e sim, podem ser porreiros mas continuam marmotas! – eram umas máquinas do caraças. E como tal todos lhe temos uma dívida de gratidão. 

Pelo enquadramento. Pela paciência. Pelos raspanetes. Pela camaradagem. Pela ajuda. Pela ponte que foram com os oficiais mais antigos. Pela... amizade. Essa que ainda dura e durará para sempre.

É estranho pensar que provavelmente o factor de maior sucesso de um curso da Força Aérea tenha sido... elementos da Marinha. Justiça seja feita: é a verdade. 

Éramos vinte e um. Acabámos quinze. Mas sem aqueles quatro, seríamos menos. 

Merecem todas as rodadas que lhes conseguirmos pagar. E eles que não me oiçam dizer isto, senão metade do meu ordenado irá acabar nos cofres da Super Bock!

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