Portugal & Defesa: pouco. Muito pouco.

Irrelevante. Tabu. Desconfortável. Poderia facilmente ser assim que definiríamos o que foi falar de Defesa em Portugal nas últimas décadas. Era, até certo ponto, uma pedra no sapato do poder político: um investimento difícil de justificar perante os eleitores de um país periférico e (aparentemente) seguro como o nosso. 

 Esse paradigma mudou recentemente. A agressão da Federação Russa à Ucrânia, o ressurgimento do conflito no Médio Oriente e uma possível mudança na liderança norte-americana (outra vez) criou na Europa uma consciência sobre assuntos de Defesa que não se via desde o fim da Guerra Fria. Mas talvez não em toda a Europa: Portugal aparenta, mais uma vez, ser uma excepção. 

Tanto o Chefe de Estado Maior da Armada (CEMA), como o Chefe de Estado Maior da Força Aérea (CEMFA) têm aproveitado a conjectura nacional (mudança de Governo) e o contexto internacional para – de forma pouco comum diga-se – “surfar” a onda mediática e trazer a Defesa para a discussão pública. É algo positivo e que contrasta com a inércia que muitas vezes reina nas altas chefias militares. É uma espécie de “acordar”. A Marinha faz pressão para a renovação da sua frota – que se encontra antiga e próximo da obsolescência – com dezassete novos navios. Convém, porém, relembrar que, infelizmente, desses dezassete navios nenhum será combatente para teatros de alta intensidade: não existe nenhum plano para a substituição das fragatas portuguesas. Na Força Aérea Portuguesa, num acto que tem tido algum reflexo nos meios de comunicação social, tem-se falado na substituição dos caças F-16. Portugal tem neste momento 28 aeronaves, e o CEMFA revelou a sua preferência pela aquisição de 27 aeronaves Lockheed Martin F-35A para substituição da frota actual. O F-35 é uma aeronave de última geração, que tem vindo a progressivamente ser escolhida por grande parte dos Aliados nacionais: só na NATO, Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Itália, Alemanha, Dinamarca, Noruega, Finlândia, Bélgica, República Checa e Polónia escolheram-no ou já o operam. 

Um F-35C da Marinha Norte-Americana. A versão naval do F-35.

O valor apresentado pelo CEMFA para a aquisição destas aeronaves seria de 5.5 mil milhões de Euros ao longo de um período de vinte anos. Podemos ou não discutir se é a escolha acertada face a outras aeronaves. Podemos igualmente discutir qual deverá ser o processo de aquisição (compra directa, concurso internacional, contra-partidas pelo uso da Base Aérea das Lajes). Mas algo é indiscutível: se a Nação quiser manter esta capacidade, e de forma relevante, a substituição dos F-16 terá de ser efectuada em breve. A primeira palavra em “Força Aérea Portuguesa” é “Força”. E sendo algo simples, parece que é algo que tendem a esquecer. 

Como o investimento seria bastante elevado, rapidamente se levantaram vozes contra uma possível aquisição; nada de novo. “Que desperdício”! “É muito dinheiro”! “Contruam hospitais”! “Portugal não tem problemas, não está em guerra!”

É, sem dúvida, um valor elevado. Mas convém relembrar três pontos. 

Primeiro, o valor estimado para o programa está calculado para um período de vinte anos. Esse investimento seria diluído nesse período, pelo que estaríamos a falar em média de um valor próximo dos 275 milhões de Euros por ano. Mais uma vez, ninguém discute que é um valor elevado, mas se o país quiser manter essa capacidade de soberania e projecção de força, isso custa dinheiro. A discussão tem de ser baseada em factos e não demagogia (política). 

Segundo, Portugal tem o compromisso de gastar 2% do seu Orçamento em Defesa. Acontece que segundo o Relatório do Secretário Geral da NATO de 2023, Portugal é um dos países da NATO que menos gasta em Defesa, sendo o valor (ainda estimado) para 2023 de 1.48% do PIB (Portugal pretende atingir os 2% somente em 2030). Convém repetir este número: 1.48%. Tendo em conta o contexto internacional presente, as responsabilidades e obrigações que Portugal tem em organizações internacionais e as ameaças que entretanto surgiram, 1.48% parece efectivamente pouco. Arrisco-me a afirmar que se perguntassem a qualquer família portuguesa se gastaria 2% do seu orçamento familiar para garantir que o seu lar e a sua família estivessem seguros, nenhuma hesitaria em responder imediatamente que sim. Estamos a falar de 2%. Dois. Não vinte.

Finalmente, em política internacional e em geopolítica, não existem espaços vazios. A influência que temos – ou queremos ter – é proporcional à nossa capacidade de defender o que é nosso e projectar o nosso interesse. A defesa do nosso espaço de soberania deveria ser uma prioridade. Se não defendermos o que é nosso, alguém o fará por nós (ou não!) com tudo o que isso representa em termos de ameaças para o país e perda de influência internacional. É uma visão que tem um pouco de Kissinger, eu sei, mas os países regem-se na sua maioria por interesse, e não ideologia. De nada nos serve estar a criticar investimentos em Defesa agora se depois somos os primeiros a vociferar contra o facto de Portugal não ter a capacidade de, por exemplo, projectar uma pequena força para retirar portugueses em perigo de um país estrangeiro. A realpolitik tem uma capacidade única de nos dar uma bofetada na cara quando menos esperamos. 

Quando se fala de Defesa em Portugal lembro-me sempre da questão da Literacia Financeira. Somos um país que não a tem, e o mesmo aparenta acontecer com questões de Defesa. Não entendemos a sua crucial importância para o país e a sua magnitude na manutenção do nosso modo de vida. Da nossa liberdade e da nossa soberania.  O investimento em Defesa não é uma mordomia. É algo essencial e necessário. E temos, como país, de finalmente reconhecer isso. 

Ninguém defende uma economia de guerra. Ninguém defende que a maioria do orçamento seja para a Defesa. Estamos apenas a falar de 2%. Dois. 

A Defesa não é um gasto. É um investimento na nossa segurança. 

E quem é que não estaria disposto a gastar esses 2% para estar seguro

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Competência

Portugal tem tido nas últimas décadas uma relação de indiferença (para não dizer outra palavra mais ofensiva) com as suas Forças Armadas. Era comum – fosse no mundo real, fosse no digital – a existência de comentários incompreensivelmente jocosos. Mas mais impressionante que esse facto, é a resposta que sempre foi dada pela instituição castrense: cumprir a missão com brio.

O Diário de Notícias publicou ontem, dia 09 de Maio, uma interessantíssima reportagem sobre o Vice-Almirante Gouveia e Melo e a task-force de vacinação que comanda. Nela é acompanhado o dia-a-dia da task-force e do seu comandante, coincidindo com o exacto momento em que é atingido um marco histórico: as cem mil inoculações diárias. É importante não relativizar a imensidão da tarefa logística que isto representa. Da coordenação necessária, do planeamento obrigatório e da incessante avaliação do progresso.

Foi notório que assim que o Vice-Almirante Gouveia e Melo ficou responsável pelo programa de vacinação à COVID-19 em Portugal, terminou o uso do mesmo como arma política – que era a mais abjecta forma de lidar com este problema. E embora a excelente capacidade operacional dos militares possa doer a algumas franjas da sociedade (e é importante lembrar que o Vice-Almirante até foi criticado por usar farda camuflada, como se esta não fosse a sua farda de trabalho ou como se não estivesse no seu direito como militar) a verdade é que passámos a ter frontalidade nas declarações e eficiência no processo. Só espanta é como é que não foi assim desde início. Pode ser que o poder política tenha tirado – mais uma vez – as ilações necessárias.

Ainda se vive neste país com um qualquer complexo, que admito, não sei explicar, com as Forças Armadas. Está na altura de, finalmente, terminar com ele. Pois mais uma vez elas responderam como melhor sabem: com competência.

E essa é uma qualidade que faz desesperadamente falta a este país. Cada vez mais.

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(Foto de capa: Global Imagens)


A Pátria honrai, que a Pátria vos contempla

A cada trovão, a cada relâmpago, aquela imensidão negra lá fora tornava-se familiar. Era possível reconhecer os contornos dos montes e do terreno que passava por baixo de nós. Nem que fosse por uns meros segundos. Visualmente, voávamos por fotografias. Estávamos a dois mil pés, rumo a Peniche. Duas da manhã. Talvez três. Tinha-me qualificado há pouco mais de um mês e esta era a minha primeira missão operacional como piloto de busca e salvamento na Esquadra 751. Estávamos em final de Fevereiro, e lá fora o tempo teimava em não perdoar. Ventos fortes, visibilidade baixa, vagas de oito a dez metros no mar. Fomos activados para efectuar uma busca a dois estudantes que tinham desaparecido em Peniche, caídos ao mar. Lembro-me de pensar que seria um “milagre alguém sobreviver nestas condições”. 

Estivemos no local quase três horas. A domar os elementos da natureza com os nossos três motores e o nosso gigante rotor. Todos de olhos postos lá fora, à procura do mais ínfimo sinal de esperança. De vida. 

“Que noite de merda”, pensava. O ar estava tão turbulento que já tinha os olhos cansados de tentar ler os instrumentos do helicóptero. Os olhos, e o corpo, pediam por descanso.  

Mas por mais que as condições naquela madrugada estivessem más, péssimas mesmo, não foi isso que mais me impressionou. 

O que me impressionou foi quem connosco lá estava.

Ali, uns meros cem pés por baixo de nós, navegava uma corveta da Armada portuguesa. Um pequeno navio, construído na década de sessenta, que enfrentava aquelas vagas, do tamanho de uma casa, de frente. Se eu estava a levar “porrada”, se eu estava desconfortável, se a nossa máquina estava instável, eles estavam bem pior. Recordo-me de ver toda a secção dianteira da corveta fora de água e o consequente embate violento no seu regresso ao oceano. E era assim, vaga após vaga. 

“Aqueles gajos têm uns tomates do tamanho do mundo”, comentámos entre nós. E tinham. Estar ali, naquelas condições, dentro de um casco de alumínio e aço, a escassos metros de terra, não era para qualquer um. Não era e não é para qualquer um. Ali, naquela madrugada, naquele momento, senti a mais profunda admiração e orgulho pela Marinha portuguesa. Aqueles gajos fariam o Infante Don Henrique orgulhoso. 

É preciso ser-se um alguém especial para estar ali dentro. (Foto: Nélson Vitorino)

É preciso ser-se um alguém especial para estar ali dentro. (Foto: Nélson Vitorino)

Existem poucos países no mundo com tamanha tradição naval como Portugal. A Marinha de guerra portuguesa, a Armada, está intrinsecamente ligada à história do nosso país. À nossa nação, a nós como povo, e às nossas tradições. 

Fosse no primeiro embate contra a frota sarracena, nos Descobrimentos, na manutenção da nossa soberania ou na salvaguarda da vida humana, falar da Armada é falar de Portugal.

Este ano, 2017, celebram-se setecentos anos sobre a formação oficial da Marinha de guerra portuguesa. Setecentos anos. Não estamos a falar de vinte e cinco. De cinquenta ou de cem. Nem de duzentos. São setecentos anos de Armada. Setecentos anos de história. De tradições. De combate. De coragem (muita!) e de ousadia. De ir do Brasil ao Japão em cascas de madeira. De fazer de Portugal, uma das mais pequenas nações da Europa, a maior de todas. De ir para além do mundo conhecido e dar “novos mundos ao mundo”.

Não é só Portugal que deve muito à sua Marinha. É toda a civilização ocidental. 

Nos dias que correm gostamos imenso de falar de Portugal e do mar. De como ele é importante para nós, de como faz parte da nossa maneira de ser, de como nos influencia e de como o nosso futuro, tal como o nosso passado, passa por ali: aquele profundo azul. 

Pois bem, quem nele nos representa, quem dele se ocupa, quem dele cuida e quem dele protege é a nossa Marinha. E fá-lo há setecentos anos. 

A história da Marinha é indissociável da história portuguesa. E foda-se, que magnífica história é essa! 

Em todos os navios da Armada está orgulhosamente inscrito o lema “A Pátria honrai, que a Pátria vos contempla”

E está na altura da a Pátria contemplar a Marinha. Pois ela muito nos honrou, e honra, como Nação, por esse mundo fora. 

Parabéns Marinha portuguesa. 

E obrigado. 

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Os quatro magníficos

Vinte e um.

“Que bando de gajos que para aqui vai”. 

Éramos vinte e um no meu curso da Força Aérea e quem olhasse para nós naquele tempo com certeza que teria dúvidas que aquele ajuntamento de gajos, de cabelo rapado e olhar incerto, daria origem a punhado de competentes pilotos militares. 

Foto: J. Parracho (Marinha Portuguesa)

Foto: J. Parracho (Marinha Portuguesa)

Após a aquisição dos helicópteros LYNX pela Marinha (e façamos um aparte para fazer uma vénia a essa grande máquina) esse ramo viu-se obrigado a formar os seus próprios pilotos. A opção lógica, claro, passava pela formação na Força Aérea Portuguesa. 

É assim que, após a nossa recruta na OTA, conhecemos pela primeira vez os quatro oficiais da Marinha que vão integrar o nosso curso. Afinal éramos vinte e um... mais quatro.

Oficiais de carreira provenientes da Escola Naval, foram que como atirados aos lobos para um grupo de “putos” sem qualquer experiência militar.  Imagino o que não lhes deverá ter passado pela cabeça. Certamente um expressivo “fodass”! Não é por acaso que o nome do meu curso é "Infernais". Podia muito bem ter sido "Bandidos" ou "Índios" tal era a quantidade de... chamemos-lhe irreverência, que demonstrávamos. 

Ao longo de mais dois anos aqueles quatro elementos foram o nosso enquadramento. Pela Ota, pelos “horrores” da Esquadra 101 e mais tarde pela Esquadra 552, todos nós ficámos com a sensação que aqueles quatro marmotas – e sim, podem ser porreiros mas continuam marmotas! – eram umas máquinas do caraças. E como tal todos lhe temos uma dívida de gratidão. 

Pelo enquadramento. Pela paciência. Pelos raspanetes. Pela camaradagem. Pela ajuda. Pela ponte que foram com os oficiais mais antigos. Pela... amizade. Essa que ainda dura e durará para sempre.

É estranho pensar que provavelmente o factor de maior sucesso de um curso da Força Aérea tenha sido... elementos da Marinha. Justiça seja feita: é a verdade. 

Éramos vinte e um. Acabámos quinze. Mas sem aqueles quatro, seríamos menos. 

Merecem todas as rodadas que lhes conseguirmos pagar. E eles que não me oiçam dizer isto, senão metade do meu ordenado irá acabar nos cofres da Super Bock!

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