Competência

Portugal tem tido nas últimas décadas uma relação de indiferença (para não dizer outra palavra mais ofensiva) com as suas Forças Armadas. Era comum – fosse no mundo real, fosse no digital – a existência de comentários incompreensivelmente jocosos. Mas mais impressionante que esse facto, é a resposta que sempre foi dada pela instituição castrense: cumprir a missão com brio.

O Diário de Notícias publicou ontem, dia 09 de Maio, uma interessantíssima reportagem sobre o Vice-Almirante Gouveia e Melo e a task-force de vacinação que comanda. Nela é acompanhado o dia-a-dia da task-force e do seu comandante, coincidindo com o exacto momento em que é atingido um marco histórico: as cem mil inoculações diárias. É importante não relativizar a imensidão da tarefa logística que isto representa. Da coordenação necessária, do planeamento obrigatório e da incessante avaliação do progresso.

Foi notório que assim que o Vice-Almirante Gouveia e Melo ficou responsável pelo programa de vacinação à COVID-19 em Portugal, terminou o uso do mesmo como arma política – que era a mais abjecta forma de lidar com este problema. E embora a excelente capacidade operacional dos militares possa doer a algumas franjas da sociedade (e é importante lembrar que o Vice-Almirante até foi criticado por usar farda camuflada, como se esta não fosse a sua farda de trabalho ou como se não estivesse no seu direito como militar) a verdade é que passámos a ter frontalidade nas declarações e eficiência no processo. Só espanta é como é que não foi assim desde início. Pode ser que o poder política tenha tirado – mais uma vez – as ilações necessárias.

Ainda se vive neste país com um qualquer complexo, que admito, não sei explicar, com as Forças Armadas. Está na altura de, finalmente, terminar com ele. Pois mais uma vez elas responderam como melhor sabem: com competência.

E essa é uma qualidade que faz desesperadamente falta a este país. Cada vez mais.

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(Foto de capa: Global Imagens)


(Uma espécie de) Democracia

O The Economist Intelligence Unit publicou hoje o seu relatório “Democracy Index 2020 – In sickness and in health?”. Este documento, elaborado pela revista “The Economist”, mede o pulso à qualidade das democracias mundiais analisando vários factores. É um relatório único, um dos poucos do género, onde os diversos países são agrupados em quatro grandes grupos: full democracies, flawed democracies, hybrid regimes e authoritarian regimes.

Portugal, naquilo que poderá ser um choque para alguns, desceu de grupo, e é hoje considerado por este “think-thank” como “flawed democracy”, localizando-se no fundo da tabela referente à Europa Ocidental. O relatório relativo a 2020 sempre seria particular, consequência da crise pandémica que vivemos e das diversas medidas limitadoras dos movimentos impostas em várias democracias ocidentais. É importante não relativizar a importância de já não sermos considerados uma democracia plena, especialmente quando uma leitura mais atenta do relatório nos indica uma das explicações pela qual Portugal caiu de grupo:

In Portugal, the frequency of parliamentary debates (through which the prime minister is held accountable) was reduced during the pandemic. This, coupled with the lack of transparency around the appointment of the president of the auditing court, led to a deterioration in the checks and balances score.

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As democracias são regimes frágeis e que muito dificilmente sobreviverão a uma permanentemente falta de transparência. Portugal está a entrar num caminho perigoso. Ser considerado uma “flawed democracy” é, infelizmente, uma fotografia bastante nítida do país em que vivemos actualmente. Em que uma procuradora geral da república competente é substituída, um presidente do tribunal de contas é afastado, uma procuradora com melhor currículo é preterida face a uma figura mais “amigável”, e onde membros do governo dizem não ser legítimo criticar o executivo. Sem qualquer consequência política. Sem qualquer pudor. Sem, arrisco-me a dizer, qualquer vergonha. Um caso seria inócuo, vários denotam um padrão. Uma tendência. E por isso é que uma chamada de atenção é importante. Vivemos num país onde a meritocracia foi substituída por um cartão partidário. Onde a competência é substituída por amizades. Onde a lógica é subvertida pela chamada “nomeação política”. Os “amigos” são o que mais conta e isso, por si só, leva a uma quebra de confiança nas instituições democráticas (e consequente subida do extremismo político).

Nunca sairemos da aparente espiral infindável de crises até que tenhamos uma reflexão clara sobre que democracia queremos, e que postura estamos dispostos a ter perante cargos públicos, perante a suposta impunidade reinante e perante a clara falta de auto-crítica de governos em funções. Independentemente da cor política.

A responsabilidade é de todos: dos órgãos de soberania ao cidadão comum. Do presidente da república ao eleitor que não vota. Dos meios de comunicação social ao comentador de Facebook.

E de nada vale gritar que é “uma vergonha” (porque o é) se não fizermos nada para o alterar (porque não o temos feito).

Competência precisa-se.

Urgentemente.


Poderão efectuar o download do relatório aqui: https://www.eiu.com/

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