TAP: soundbytes & demagogia

O debate de ontem entre os dois principais candidatos a primeiro-ministro foi, sem dúvida, bastante interessante. Mas em relação ao tema de Aviação notou-se que ambos os candidatos ou estariam mal preparados, ou estariam conscientemente a usar informação parcial ou falsa. Afirmar, a título de exemplo, que David Neelman está falido – quando se encontra a lançar uma nova companhia aérea com sucesso (Breeze Airways) no mercado mais concorrencial do mundo, os Estados Unidos – é inacreditável. Aliás, é difícil de encontrar actualmente alguém tão icónico na Indústria do Transporte Aérero como Neelman, que ao longo da sua história fundou cinco – sim, cinco! – companhias aéreas com sucesso: Morris Air, JetBlue, WestJet, Azul e agora a Breeze Airways.

 Mas também do outro lado da barricada se usou um discurso longe do ideal. Uma das áreas mais complexas e mais importantes de qualquer companhia aérea é Revenue Management. É, no fundo, uma arte, que na sua vertente de pricing permite optimizar os preços e preencher os lugares dos aviões enquanto maximiza o lucro por assento de uma companhia aérea. Como referido, é uma área extremamente complexa e onde recentemente se tem utilizado ferramentas de Inteligência Artificial (AI). Contudo uma coisa não se alterou: um dos principais drivers de compra de um bilhete é a sua comodidade no que toca a ligações directas. Isto é, se viajarmos do ponto A para o ponto B, todos preferimos ir directos do que parar num ponto C, D ou E (que torna a viagem mais longa e mais demorada). Por exemplo, se quisermos ir de Lisboa a Boston, preferimos descolar de Lisboa directos a Boston, do que efectuar uma ligação em Londres, Paris ou Frankfurt. O que significa que os bilhetes do ponto A para o ponto B são mais procurados, por serem mais apetecíveis. Nós sabemos isto. As companhias aéreas também. Logo o seu valor é superior. Pode parecer um contrassenso, mas um voo directo, mais curto em distância e menos longo em duração, acaba por ser mais caro que um voo que por vezes percorra o dobro da distância e demore o triplo do tempo. Mundo estranho este das companhias aéreas. É, na prática, uma variante da lei da oferta e procura.  Voos com ligação têm uma muito maior oferta (as possibilidades são várias) e são menos apetecíveis, logo os preços são mais baixos. Um vasto outro número de factores pode afectar o pricing de bilhete, desde datas específicas, necessidades de loadfactor (um avião cheio, mesmo com preços baixos é preferível a um vazio), marketing e “brand awareness” (criar “buzz” mediático sobre uma nova rota ou a companhia aérea em si) ou mesmo por captação do mercado da concorrência (tentar roubar o mercado/cliente de um grupo ou companhia aérea concorrente). Estes factores podem levar ao aumento ou decréscimo de preços de bilhetes em voos directos ou com ligação.

Daí que é preciso ter bastante cuidado quando se afirma: “Um voo Madrid - São Francisco, (...) com escala em Lisboa, custa a um espanhol 190€. Quanto paga o português se apanhar o mesmo avião em Lisboa para ir para São Francisco? Paga 697€. É companhia de bandeira, mas é companhia de bandeira espanhola ou de outro país qualquer, isto é revoltante, isto é inadmissível."

Senão poderíamos igualmente afirmar:

 No site da LUFTHANSA um voo com origem em Lisboa e destino São Francisco com escala em Frankfurt custa 951€. Com escala em Munique custa 740€. Mas e se um alemão voar directo de Frankfurt ou Munique a São Francisco? Passa a custar 1464€ e 1452€. Mas afinal a LUFTHANSA não é a companhia aérea de bandeira alemã? Isto é revoltante, isto é inadmissível! (Para um alemão)

No site da BRITISH AIRWAYS (grupo IAG) um voo com origem em Lisboa e destino São Francisco com escala em Londres Heathrow custa 680€. Mas e se um inglês voar directo de Londres a São Francisco? Passa a custar 2335€ (taxa de conversão actual). Mas afinal a BRITISH AIRWAYS não é a companhia aérea de bandeira inglesa? Isto é revoltante, isto é inadmissível! (Para um inglês).

No site da AIR FRANCE (grupo AF/KLM) um voo com origem em Lisboa e destino São Francisco com escala em Paris CDG ou Amsterdão custa 537€ (Air France) ou 535€ (KLM). Mas e se um francês voar directo de Paris a São Francisco? Passa a custar 1200€. Mas afinal a AIR FRANCE não é a companhia aérea de bandeira francesa? Isto é revoltante, isto é inadmissível! (Para um Francês ou Holandês).

Independentemente da nossa opinião sobre a ajuda estatal na TAP, parece-me evidente que a ideia por detrás da injecção de capital não seria facultar viagens mais baratas aos cidadãos nacionais (que na prática nada mais seria que subsidiar bilhetes). Era sim tentar criar uma empresa que seja viável financeiramente. E para isso esta tem de obedecer a regras de mercado, regras essas que se aplicam a todas as companhias aéreas.

Pode parecer estranho. Pode parecer contra-natura. Mas é preciso entender como funciona uma companhia aérea e o seu pricing de bilhetes (ou qualquer outro assunto de facto) para se poder falar com conhecimento de causa sobre ele. Todos sabemos que, infelizmente, a política é hoje feita de soundbytes. Mas convém que esses sejam baseados em factos. E é possível argumentar de forma coerente, clara e com argumentos factuais sobre a TAP. Seja qual for a nossa posição, uma discussão racional é essencial. Tudo o resto é demagogia. E ontem assistimos a muita demagogia, de ambos os lados.

E esta mata qualquer organização.

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 (Análise efectuada com voo de ida, classe económica, em data escolhida de forma aleatória – 16 de Abril 2022. Dados recolhidos dia 14 de Janeiro da parte da manhã).

(Comparação de preços LUFTHANSA entre LISBOA-SÃO FRANCISCO via Munique e Frankfurt; e voos directos de Munique e Frankfurt para São Francisco)

(Comparação de preços BRITISH AIRWAYS entre LISBOA-SÃO FRANCISCO via Londres e Londres Heathrow - São Francisco)

(Comparação de preços AIR FRANCE entre LISBOA-SÃO FRANCISCO via Paris e Paris - São Francisco)

Foto de capa ( via Observador ©)

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