O homem mais rápido do mundo

Pode ser difícil de acreditar, mas a aviação já foi mais que wi-fi fraco, super-computadores e os atrasos que parecem que invadem as notícias e fóruns de discussão de hoje em dia. Uma época houve em que esta se desenvolveu, e cresceu, apenas através da ingenuidade, coragem e sangue de tipos excepcionais.

Yeager

Cresci (tanto fisicamente como na minha carreira) a ler as estórias de gigantes como Bob Hoover, Robin Olds ou Scott Crossfield. Mas provavelmente o “maior” de todos, o mais irreverente, a personificação daquilo a que se chama “the right stuff” é (foi) Charles “Chuck” Yeager. O primeiro homem a bater a barreira do som. E a fazê-lo numa pequena aeronave cor laranja em que eu não entraria nem que fosse um carrinho de rolamentos.  

Yeager faleceu hoje, aos 97 anos. Uma chapada de luva branca à Morte; alguém que A viu bem de perto tantas vezes durou quase um século.

Yeager era lenda. É uma lenda. E continuará lenda. E será para sempre uma das maiores inspirações para todos aqueles que se consideram pilotos e amantes da aviação.

So long Chuck.

“You do what you can for as long as you can, and when you finally can´t, you do the next best thing. You back up, but you don´t give up.”

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Direito por linhas tortas

Desolado. Era assim que me sentia e não existia outra palavra que pudesse definir o que me passava pela alma naquele momento. Decorria o final do Verão de 2003, e tinha acabado de saber que tinha reprovado no exame nacional de Química. E com isso no 12º ano. 

A vida às vezes tem uma maneira engraçada de nos surpreender. De nos dar a volta e de nos obrigar a olhar para o panorama geral. Provavelmente aquele ditado popular “fecha-se uma porta, abre-se uma janela” é mesmo verdade. Aquele Verão prova-o. 

Estava a efectuar o estágio de voo para a Academia da Força Aérea. Duas semanas na Base Aérea de Sintra e sete voos em DHC-1 Chipmunk. Aeronave antiga, difícil (será alguma fácil para quem está a começar?), desconfortável e com uns instrutores que tendencialmente falavam mais alto do que os meus tímpanos estavam habituados. Estaria a mentir se dissesse que estava a adorar a experiência – estava (estávamos!) todos nervosos e expectantes. Era um dos últimos obstáculos a ultrapassar se quiséssemos ingressar na Academia.

Naquela altura – provavelmente estará igual agora – podíamos dividir os nossos exames nacionais em duas fases. E podíamos igualmente anular uma disciplina e ir apenas a exame, contando essa nota como a nota final. Era procedimento normal entre os alunos anular uma disciplina com nota mais baixa e tentar a sorte no exame, tentando garantir assim uma nota superior. Era o meu caso. Estava prestes a terminar o ensino secundário com média de 14.6 e queria chegar ao quinze. Química – para o qual eu tinha tanto jeito como para tricotar camisolas de malha – iria ser a minha pior disciplina, terminando o ano com onze valores. Fruto da minha ingenuidade (a verdadeira palavra aqui é “estupidez”) de adolescente, decidi anular a disciplina e propor-me a exame na segunda fase. “Assim tiro um treze ou catorze e não me estraga a média, acabo com média de quinze”, pensava eu. Feliz e contente lá fui. E assim chegamos ao final daquele Verão. Onde nas vésperas do meu sexto voo recebi a notícia que tinha tirado pouco mais de nove valores. Choque. Tinha acabado de chumbar o 12º ano.

Eu nem sabia o que dizer. Nem sabia o que pensar. Nem sabia o que fazer. Média superior a catorze, e ano chumbado. Piloto? Jamais. Estava desolado. Como é que era possível?

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No dia em que abandonei o estágio de voo, após aquele sexto voo, o instrutor com quem voei demonstrou o porquê de todos o considerarem alguém excepcional. Pegou em mim, num trator de reboque, e andámos cinco minutos a acelerar pela placa da base aérea. Disse-me que nada terminava ali, que podia voltar a tentar, e que experimentasse concorrer para PIL (piloto miliciano) ao invés de PILAV (Academia). Era esse o seu conselho. Hoje somos colegas na mesma companhia aérea. 

Fui para casa. Acabava ali o sonho. 

Só que não. A Vida, essa madrasta, troca-nos as voltas. 

Repeti o 12º ano. Fiz todas as disciplinas que podia fazer (gato frio de água escaldada tem medo). Entrei na Faculdade, e no meio do primeiro semestre candidatei-me novamente à Força Aérea. Para Miliciano, como aquele instrutor me tinha aconselhado. Entrei em 2005. 

E a partir daí, é história. Entrei no melhor timing possível. Ganhei as asas em 2007. Voei operacionalmente uma, se não a mais, icónica máquina da Força Aérea: o Alouette 3. Qualifiquei-me em EH-101 Merlin e ganhei o meu comando em 2011. Fiz o que sempre sonhei fazer – Busca e Salvamento – e colecionei histórias para um dia contar aos netos. Vivi uma fase óptima na Esquadra 751, repleta de pilotos com espírito de iniciativa e vontade de fazer melhor e diferente. Fizemos a diferença naqueles anos. E quando saí das fileiras, fruto do final do meu contrato de seis anos, tive a sorte de entrar de imediato no mercado civil. Foi uma passagem directa. O timing, esse, foi perfeito mais uma vez. E aqui, agora, no mundo civil, reconheço a sorte que tenho de fazer parte do momento que a companhia aérea onde estou vive. 


E tudo isto porque chumbei naquele exame de Química. 


Quem diria – eu nunca! – que um dos meus momentos mais baixos foi, curiosamente, a grande razão dos meus momentos mais altos. Não fosse aquela nota, não tinha entrado quando entrei, não tinha ido para PIL como fui, não tinha voado o que voei, não tinha transitado para o mundo civil quando transitei.  Aquele exame foi, por mais estranho que pareça, uma bênção. 

Se o Ricardo de agora pudesse dizer algo ao Ricardo de então, do final daquele Verão, diria “não te preocupes”. Ele não iria acreditar, estou certo. Mas a verdade é que “tudo vai correr bem”. 

E correu. 

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