A vida de piloto de alerta de Busca e Salvamento é um paradoxo. Uma lixada luta interna entre a vontade pessoal e o bom senso humanitário.
Por um lado queremos voar. Qualquer piloto, e isto é inerente à sua função, quer dar “gás aos copos” e descolar rumo ao vazio. Era para aquilo que lá estávamos. Por outro, a dura realidade: sabíamos que qualquer saída significaria alguém em graves apuros.
“Se tivesse de sair, ao menos que fosse comigo” era o consolo que dávamos à nossa consciência. Os alertas saem. Não existe volta a dar. Mais vale que sejam no meu turno.
E foi exactamente isso que aconteceu a 31 de Janeiro de 2011. Passava um pouco da hora de almoço. Estômago cheio. Aquela hora em que o nosso corpo teima em não responder. Parece um Fiat Panda de 1978. Mas para isso mudar basta um telefonema. É instantâneo.
“ALERTA!” grita-se pela esquadra.
“Eiii, vou voar!”
Era o co-piloto de alerta essa tarde. O comandante era um grande amigo meu que agora, anos mais tarde, trabalha comigo na mesma empresa civil. Os anos passam, o espírito mantém-se.
Como sempre, corrida para a sala das operações e falamos muito rapidamente do que se passa. A moleza? Essa já era.
Um pesqueiro de nome “Desterrado” estava a afundar, com oito almas a bordo, algures a vinte milhas náuticas entre o cabo Espichel e o cabo da Roca.
Colete de emergência, “may-west”, capacete na mão e corrida para o helicóptero, sempre fiel e silenciosamente pronto no seu lugar habitual. O EH-101 “Merlin” atribuído ao alerta nacional fica tradicionalmente sempre na mesma posição na placa. A mais próxima do heliporto e com táxi desimpedido de modo a minimizar ao máximo o tempo de descolagem.
Connosco hoje no helicóptero temos um Operador de Sistemas que tem mais anos disto que eu de vida. Uma verdadeira “máquina de guerra”. Conseguia guiar-nos para um navio com olhos fechados. O recuperador salvador é igualmente um veterano destas andanças. Como todos os outros tem uns tomates feitos de ferro e uma humildade do tamanho do mundo. O nosso enfermeiro, experiente para não variar, é um dos gajos mais desenrascados que conheço. E quando tudo falha, quando aquela dor que temos no joelho depois de duas horas de Ténis é tão intensa que mal andamos ele tem sempre pronta uma resposta:
“Bebe água que isso passa”
“Epah, mas mal ando.”
“Doi quando tocas?”
“Doi, porra!”
“Então não toques!”
Voar com estes gajos é voar com total confiança. É assim que gosto. É assim que deve ser.
Descolagem e velocidade máxima. Chegamos ao local das primeiras coordenadas. Nada. Zero. Niente. Dia limpo, visibilidade perfeita e nem uma embarcação à vista.
“Mas que raio?”
Entramos em contacto com o Comando Aéreo (CA) que prontamente nos transmite as coordenadas actualizadas. Novamente “gás aos copos” e estamos na nova zona de operações em menos de dez minutos.
Ali estava ele. Pesqueiro, dimensões pequenas, como que a lutar pela vida, a navegar com rumo Sul.
Entramos em canal dezasseis (frequência de emergência marítima):
“Pesqueiro Desterrado, daqui é o RESCUE 23, helicóptero de Busca e Salvamento da Força Aérea”.
Obtemos resposta do mestre da embarcação. A sua voz, tensa e nervosa, denota a gravidade da situação.
“Oh Rescue! Tenho a casa das máquinas a meter água, o motor praticamente debaixo de água!”
Nós, no cockpit, como que olhamos um para o outro em silêncio. Ambos sabemos o que nos vai na mente. “Vai ao fundo”. Iniciamos via rádio a coordenação para a evacuação do pesqueiro. Queremos os tripulantes todos com coletes, na água, a uma distância de segurança. Queremos saber quantos são e que equipamento têm. E então ouvimos uma resposta que nunca pensámos ouvir.
“Malta. Mas nós não vamos abandonar o nosso pesqueiro!”
“Mestre...(!)... como assim!?”
“Ele está a meter água. Mas ainda navega. O motor está submerso, mas funciona... vou tentar levá-lo para Sesimbra.”
“Mestre, a operação é muito mais fácil se fizermos um abandono controlado...”
E aí oiço, naquela voz forte, endurecida por anos de mar e mar e mais mar, umas palavras que não esquecerei:
“Rescue! Para mim isto não é um pesqueiro. Para mim é a minha vida”.
E com aquilo calou-nos. Era a vida dele. Não. Era mais que isso. Era o seu sustento. A sua embarcação. A sua alma. E ele era o seu mestre. O seu comandante. E iria lutar por ela até ao seu último suspiro. Fosse o do frágil motor do pesqueiro. Fosse o seu.
Nós, habituados a tantos naufrágios e tanta vida perdida no mar, por vezes desnecessariamente, achámos a decisão um risco acrescido. Mas aceitámos. A decisão não era nossa. E não havia ninguém dentro daquele helicóptero que não respeitasse profundamente a decisão do seu mestre.
Ficamos a acompanhá-los. Como um lobo “escolta” um outro lobo ferido. Sempre com eles, a baixa velocidade. Direcção Sesimbra.
A corveta da Marinha Afonso Cerqueira já se encontrava a caminho da nossa posição para nos render com uma preciosa carga: uma bomba de água. Passámos o testemunho após uns quarenta minutos. Aqueles oito homens, a lutar pela vida da sua embarcação, estavam em boas mãos.
Ao dizer “Boa sorte mestre!” nos rádios lembro-me bem de pensar na triste sorte que aqueles homens teriam. Afundariam provavelmente nos próximos minutos. Afinal de contas que motor funciona submerso? Que pesqueiro navega a meter água e mais água? Nenhum. Nenhum mesmo.
E mais uma vez a vida me provou como posso estar errado.
Já era de noite quando o “Desterrado” entrou no porto de Sesimbra. “Ferido” mas “vivo”. Aqueles oito homens tinham-se safado. Eles e o seu ganha pão. A sua vida.
Eu posso usar barba. Mas ela nunca será tão rija como aquela daqueles homens, naquele pesqueiro, naquela tarde.
Bom trabalho mestre!
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