Segunda-feira é sempre aquele dia cruel. “A pior invenção da humanidade”, dizem os olhos de todos aqueles com quem me cruzo. Lá fora a chuva cai de forma intensa, e mais intensamente caiu durante o fim de semana. Noé estaria como peixe na água. Está montado o cenário. Segunda-feira. Dia 01 de Abril de 2013. Mais um dia das mentiras. Mais um dia alerta.
A rotina é a mesma de um dia normal. Com aquela pequena – grande! – diferença de sentir uma ligeira ansiedade sempre que o telefone toca. E claro, ele tocou.
“ALERTAAAAA”, alguém berra pelos corredores da Esquadra. É pavloviano. Eu, e o meu co-piloto, estamos nas operações em dois segundos. Um vai anotando as coordenadas num papel e outro abre o Google Earth para uma confirmação muito rápida da zona de operação aproximada.
“Epah, esta merda não deve estar bem”, digo.
A porra da coordenada não estava no Atlântico. Nem mesmo ali numa escarpa, fosse onde fosse na costa portuguesa. Estava no meio do Alentejo. Sim. No meio do Alentejo.
“Que raio?”
Telefone na mão e chamada directa para o Comando Aéreo (CA).
“Podem-me confirmar as coordenadas por favor?”
Bastaram trinta segundas para ficarmos a saber que as coordenadas estavam correctas. Durante as chuvadas do fim de semana várias ribeiras e ribeiros transbordaram por completo, um pouco por todo o país. Ali, para os lados do Torrão, um condutor distraído (lá no fundo eu quero mesmo dizer negligente) ignorou a barreira montada pela Protecção Civil e decidiu tentar atravessar aquela estrada que, na prática, era agora um rio. Resultado lógico. Foi arrastado.
“Esta vai ser uma estreia!”
A partir daí tudo corre em automático.
Coordenadas no bolso. Capacete e equipamento de emergência na mão. Helicóptero em marcha. Descolagem. Tudo isto em pouco mais de dez minutos. Já no ar, velocidade máxima, direcção sul. Entramos em contacto com o Comando Aéreo para obter actualizações. Não há novidades. Já se encontram no local algumas unidades dos bombeiros.
O local exacto chama-se Ribeira de São Romão.
“Ribeira o caraças!”, voicero quando chegamos às coordenadas. O que temos à nossa frente é um caudal de água quase tão largo como o rio Sado. Damos uma primeira volta e tentamos encontrar o tal carro arrastado. Nada. Só água. Tanto de um lado da margem como do outro são visíveis unidades dos bombeiros com as quais entramos em contacto. Ao iniciar a segunda volta alguém da tripulação expressa um decisivo “Está ali, às duas horas”.
“Epah não vejo carro nenhum!”
“Carro? É uma cabeça!”
O veículo estava completamente submerso. Ali, quase à nossa frente, estava uma cabeça, quase invisível, oculta pelo constante movimento da água ao seu redor. Era ele, o “nosso” condutor desesperado que se agarrava a algo como uma lapa se agarra a uma rocha.
Volta rápida, pás a "bater", posicionamo-nos face ao vento e em trinta segundos estamos com os procedimentos feitos, porta aberta e o Recuperador Salvador pronto a descer.
“Trinta em frente, dois à direita” .
O operador de guincho começa a guiar-me para o objectivo. Ao mesmo tempo o recuperador inicia a descida e o co-piloto mantém um olho à nossa altitude. Já o disse várias vezes. Digo-o mais uma: o trabalho de equipa aqui não é boa prática. É obrigatório. E que grande equipa tenho eu hoje.
O recuperador toca na água a menos de um metro do objectivo.
“Contacto!”
Em menos de dois minutos o recuperador está novamente suspenso no cabo, desta vez com um muito valioso passageiro nos braços. Hesito em usar a palavra “náufrago” neste caso... será “arrastado” melhor?
Recuperação feita e o enfermeiro da tripulação inicia o seu trabalho. Coordenamos com os bombeiros e aterramos ali mesmo, na margem, para deixar o nosso recente passageiro. Entrega feita e descolamos em direcção ao Montijo.
Como é hábito, nesta altura iniciamos uma espécie de de-briefing informal. Todos os membros da tripulação falam entre si sobre o que acharam da operação, o que correu mal, o que correu bem, como podemos melhorar. E claro, curiosidades. E aí, o nosso recuperador salvador (militar experiente, instrutor, com um físico de fazer inveja ao Hulk) partilha connosco o breve diálogo que teve com o senhor:
“Estava a ver que tinha de usar da força física...”
“Então?”
“Ele não se queria vir embora sem o carro!”
“Desculpa?”
“Não queria lá deixar o carro! Ainda perguntou se não o podíamos içar!”
Como a natureza humana é engraçada. Estamos à beira da morte. Exaustos. Em estado de Hipotermia. Mas o cabrão do carro é que não pode ficar ali. Não, o importante é o cabrão do carro!
“Pena não teres trazido a matrícula. Dava uma bela recordação!”
E se dava! E se dava!