Dez à esquerda

 

“O que é mais difícil?”. Ouvi vezes sem conta esta pergunta. Era a questão natural quando alguém descobria que estava na Busca e Salvamento. “Todas as missões são difíceis. Todas são diferentes.” era a minha invariável resposta. 

Verdade. Mas mentira ao mesmo tempo. 

Verdade porque todas as missões, fossem reais fossem de treino, eram de facto diferentes. O navio mais simplespodia tornar-se no maior bico de obra já visto no hemisfério norte. Não seria inédito. Eu que o diga.

Mentira porque todos nós sabíamos bem quais seriam – à partida – as operações mais complicadas: recuperações de pesqueiros.

Para nós (ou pelo menos para mim) o Pesqueiro era uma invenção do Diabo. Uma cruel e irrequieta casca de noz no oceano. Pequenos (muitas vezes mais pequenos que o próprio helicóptero), repletos de obstáculos e propensos à influência do downwash do helicóptero a baixas velocidades. Agora adicionem à equação vagas de seis metros e ventos de quarenta nós. Imaginem igualmente que terão de colocar um tipo que é vosso amigo (Recuperador Salvador) num espaço que muitas vezes não era superior a um metro quadrado. E, raios parta os Deuses, se tudo isto for de noite.   

Um dia teria de ser a minha primeira vez. 02 de Julho de 2013 foi o dia.                

“Scorpius”, que raio de nome para um pesqueiro pensava para mim. Quando aquele nome chegou por telefone como sendo o objectivo para hoje nunca assumi que fosse um pesqueiro. Aquele era nome de cargueiro talvez. Ou de petroleiro. Quem sabe de um iate... sim porra, que fosse um iate. Que fosse aquilo que para nós era o Santo Graal, o “barco da Playboy”: um amontado de aço mitológico que invade o imaginário de todos aqueles que se encontram em exigente serviço de alerta. 

scorpius

O dia estava estranho. Bom tempo no Montijo mas a piorar progressivamente a norte de Lisboa. Que raio... estamos em Julho! O tecto das nuvens encontrava-se talvez a uns mil pés e a descer quando decidimos ficar por cima dele. Entramos dentro das nuvens e cruzamos a linha de costa. A única indicação que temos disso é a imagem, em tons verde, do nosso radar de busca que se renova de poucos em poucos segundos. As nuvens que nos envolvem vão ficando cada vez mais claras. Num branco mais intenso e brilhante. Estamos quase a “furar” a camada. Cerro os olhos. Aquela intensidadeé tal que a viseira do capacete pouco me serve. E de repente, num segundo, um céu azul maravilhoso. Nivelamos. Tiro uma fotografia mental e cinco segundos do voo para apreciar aquelas nuvens que passam a rasgar por nós. “O sol lá em cima brilha sempre”. Como é tão verdade. 

As coordenadas do nosso objectivo estão próximas, algures ao largo da Figueira da Foz. A mais ou menos quarenta milhas tentamos um primeiro contacto com o “Scorpius” em canal dezasseis (canal de emergência marítima). Hoje não ía ser uma estreia só para mim. Seria também a estreia neste tipo de embarcações para o Operador de Sistemas – o homem que opera o guincho. Fotógrafo do caraças diga-se por sinal, tinha acompanhado o seu curso de qualificação em OPS, tendo mesmo sido o comandante em alguns dos seus voos de avaliação. Eu sabia que tinha ali um gajo que era uma máquina. E isso dá confiança. E se eu metesse as patas tenho a certeza que o Recuperador Salvador – outro meu bom amigo, com quase dois metros de altura e o dobro da minha envergadura – me chegaria o fato de voo ao pelo. 

Iniciamos a descida. O contacto com o pesqueiro está estabelecido, deslizamos para os duzentos pés e saímos de nuvens por volta dos oitocentos. A coordenação com o “Scorpius” é clara: iremos necessitar que naveguem com o vento sensivelmente a trinta graus por bombordo. Isto irá colocar-nos na melhor posição possível para a recuperação.

“Hoist recover checks”, transmito pela interfonia interna.

Coloco o helicóptero em estacionário ao lado veleiro, a bombordo, porta lateral aberta e iniciamos uma troca de impressões entre nós. Independentemente do posto (Tenente, Sargento Ajudante o Primeiro Sargento) e independentemente da função(Comandante, Co-Piloto, Recuperador, Operador Sistemas e Enfermeiro) todos dão voz à sua opinião. Ali não há lugar para egos. Para egoísmo. Para individualismo. Ali trabalha-se em equipa e somos um. E vidas dependem disso. 

Decidimos efectuar a operação mais baixo do que o normal. Vamos fazê-lo a cinquenta pés devido à curta dimensão do pesqueiro. “Cascas de noz...” amaldiçoa a minha mente. 

Como o EH-101 é uma aeronave de dimensões consideráveis, entre a posição onde o piloto comandante se senta e o guincho vão uns cruéis três ou quatro metros. Isto significa que quando o guincho estiver à vertical do ponto de colocação do Recuperador o piloto está de facto metros à frente. Com embarcações pequenas corremos o risco de perder as referencias visuais. Sem referencias não conseguimos manter estacionário. E sem estacionário não há recuperação. E o “Scorpius” é dos pequeninos. 

Faremos igualmente colocação por “hi-line”. Operação que consiste em colocar inicialmente um cabo guia na embarcação que facilitará a descida e colocação do nosso Recuperador em alvos curtos de... espaço. 

“Hi-line” pronto. Cinquenta pés no rádio altímetro. “Checks” efectuados. Inicialmente efectuamos um acompanhamento para que eu e o operador de sistemas tiremos as referencias necessárias. 

“Dez à direita, dois em frente”, inicia o operador de sistemas.

“Oito à direita”.

“Seis à direita”. 

À frente, olho pela janela direita. O pesqueiro fica a cada segundo mais oculto do meu campo de visão. Vejo apenas um pouco do casco pela pequena janela a meus pés, a embater contra as vagas que teimam em não parar. Tenho a janela aberta para sentir aquela brisa que tanto gosto. 

“Dois à direita”.

“Já não tenho referências quase nenhumas aqui à frente”, digo. 

“Um à direita...”

“À vertical, mantenha”.

“Não tenho o pesqueiro à vista.”, voicero com alguma urgência.

“Dois à esquerda. Temos o pesqueiro à esquerda, a perder o objectivo”, diz o operador de sistemas.

“Quatro, não, seis à esquerda.”

“Dez à esquerda, perdi o objectivo”. 

“Ora fodass”, penso. Aí estão umas palavras que nunca pensei ouvi dizer a voar do lado direito (nos helicópteros, salvo raras excepções, o piloto comandante senta-se do lado direito).

Entro novamente na interfonia: “Vou dar a volta, e vamos tentar novamente a quarenta pés”. 

Desço para a altura pretendida. E como dez pés fazem a diferença. Mais baixo seria impossível. O “Scorpius” tinha umas antenas que teimavam em não parar quietas no éter. Mais baixo e iríamos cumprimentá-las. 

“Siga”. 

Quando oiço novamente as palavras “À vertical, mantenha” consigo distinguir parte do casco do “Scorpius” junto aos meus pés. A cada vaga de dimensão maior perco novamente o pesqueiro de vista por instantes. Instintivamente dou manche atrás sempre que isso acontece. Mas dois segundos é o suficiente para colocar o “hi-line” na embarcação. 

“Contacto! Vinte à esquerda”.

“Hi-line” na embarcação! Coloco-me à esquerda com o veleiro bem visível. A partir daqui toda a operação será executada com a preciosa ajuda do “hi-line”, o que permitirá uma colocação mais progressiva e reduzirá o tempo que precisarei de estar à vertical. 

Repetimos o ritual já com o Recuperador Salvador. Preso ao guincho, segura numa das mãos o “hi-line” que o irá guiar ao pesqueiro.

Iremos colocá-lo num pequeno espaço a bombordo, um pouco antes da ponte da do “Scorpius”.

Colocação do Recuperador feita e é altura de descer a maca. Em pouco mais de três, quatro, talvez cinco minutos, temos a bordo a nossa nova e preciosa carga. 

“O helicóptero é teu” digo para o co-piloto. Saída perfeita e voltamos pela direita. 

Limpo o suor da testa e estalo o pescoço. Bem que precisa.

Rumo sul, direcção Lisboa, aeroporto da Portela. Continuamos com tectos baixos, voamos portanto mais baixo (boa!), sempre visuais com o terreno. 

Aterramos na pista 17 e rolamos até à placa militar de Figo Maduro. 

“Esta foi das duras” digo em jeito de início debriefing, “Pesqueiro pequenino hen?”.

“Podes crer!”, oiço lá de trás. 

Mal sabia eu que daí a três semanas iria engolir aquelas palavras. 

Sairia novamente. E para um pesqueiro mais curto que o “Scorpius”. Um metro mais curto! Um maldito metro. 

Lição do dia? Afinal o tamanho conta.

E muito!

 

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