Pilotos mimados

(Escrito a 28 Dezembro de 2014)

“Privilegiados! Nem mais um tostão para a TAP.” É engraçado como a história nos persegue. Na minha (curta) carreira de aviador passei de, passo a citar, “militar chulo do estado” para “piloto mimado da TAP”. Começo a pensar que, aos olhos dos meus compatriotas, escolhi a profissão errada. Ou então tenho mau carácter. Por mais dedicados que sejamos. Por mais sacrifícios que façamos. Por mais exigentes nos tornemos ou por mais profissionais que ambicionemos ser, seremos sempre um “chulo” ou um “privilegiado”. 

Fantástica foto de Carlos Seabra. Todos os direitos reservados. 

Fantástica foto de Carlos Seabra. Todos os direitos reservados. 

Em Portugal vivemos um determinado complexo de “(in)felicidade”. Se somos felizes naquilo que fazemos então não devemos estar a fazer o nosso trabalho. É, aliás, como se a palavra “infelicidade” fosse sinónimo de “trabalho” num qualquer dicionário de língua portuguesa. E se não formos infelizes algo está muito mal. 
Perdi conta às vezes que me disseram “pagam-te para te divertires”. “Efectivamente”, retorquia eu, “que culpa tenho eu de gostar do que faço?”. Ambicionei isso. Procurei-o. Era o meu sonho de criança. E lutei por ele. É, penso eu, aquilo que qualquer um de nós procura fazer.
Mas, como em tudo na vida, as pessoas esquecem-se sempre de todos os aspectos menos positivos. As madrugadas. A falta de rotina. O não ter horários. O treino constante. A avaliação permanente. A pressão subjacente. O requisito físico, e mental, obrigatório. E acima de tudo, a responsabilidade. Essa que é enorme. Seja ela a de ser a última esperança de sobrevivência de alguém, do meio do oceano, no meio de uma tempestade às três da manhã ou a de levar 150 almas em segurança ao seu destino. Mas tudo isso, pelos vistos, não interessa. Só interessa aquele fato de voo ou aquela farda tão elegante. 

A aviação ensina-nos e molda-nos um espírito de muitas formas. E uma das grande lições que nos transmite, que nos incute desde cedo, que nos fica gravado na alma é que devemos sempre nivelar por cima. Nunca por baixo. Devemos sempre procurar a excelência. Porque se não o fizermos, os resultados, nesta profissão, poderão ser desastrosos. E muita dessa mentalidade, desse espírito, se pode aplicar à Vida em geral. 

Não me identifico com esta tendência tão recente de alguns meus compatriotas de quererem nivelar por baixo. E de assumirem que, como profissional, não mereço mais do que “mimado” como adjectivo. 

Desculpem-me se sou feliz com o que faço. Mas isso não vai mudar. Nunca

A aviação é um bicho estranho!

A aviação é um bicho estranho. Invade-nos e jamais nos liberta. Fica connosco para todo o sempre. Alojado no mais profundo do nosso ser.

O autor até que é um tipo simpático. Faro, 2008. (Foto: (c) Luis Rosa)

O autor até que é um tipo simpático. Faro, 2008. (Foto: (c) Luis Rosa)


Lembro-me bem quando era mais novo, devia ter os meus sete ou oito anos, de receber um cumprimento, um adeus, um acenar, aquilo que lhe quiserem chamar, de um piloto de Alouette III que cruzava o céu à minha frente, bem baixo, só como um helicopterista sabe. Ali estava ele. Nuns meros cinco segundos. Aquele piloto, aquele tipo – que, quem sabe, até cheguei a conhecer mais tarde – era o meu Herói. O meu ídolo. O exemplo a seguir. Como se aquela pessoa que mais admiramos um dia decidisse aparecer à porta de nossa casa. Sem aviso. Sem telefonema prévio.

Vinte anos depois, algures pelas planícies da Beira Interior, voava aos comandos de um Alouette III em rota para a Serra da Estrela. Mais uma sessão de voo de Montanha, essencial para qualquer piloto operacional. Ao sobrevoar uma pequena estrada reparei que ali, sentado ao pé de uma típica casa de granito, estava um miúdo. Um puto! Sete, oito, talvez nove anos. E como que por reflexo automático… acenei.

E viajei no passado.
A cara daquela criança era a minha cara há duas décadas. Aquele sorriso era meu. Aquela sensação de felicidade era minha. Era como se tivesse sido transferida entre gerações, num ritual estranho mas repleto de sentido.

Um gesto tão simples… mas que significa(ou) tanto.


A aviação é um bicho estranho…
Mas é um bicho lindo!

Porque fazemos aquilo que fazemos

Não deve existir nenhum piloto militar que não recorde com nostalgia os tempos que voou ao serviço do seu país. O tipo de voo, as missões, a camaradagem.

São coisas que não se esquecem. Mas existem Esquadras – e missões – que nos tocam mais que outras.

Aquando da minha passagem pela Força Aérea Portuguesa (curta é certo) muitas vezes me vi deparado com a pergunta “porque é que fazia aquilo que fazia”. A resposta surgiu, um dia, da forma mais inesperada.

Servi durante mais de quatro anos na Esquadra 751 a voar o magnífico EH-­‐101 “Merlin”. A nossa principal missão era a execução de missões de Busca e Salvamento. Missões essas que deixavam uma marca profunda em todos os que por lá passámos. "Posso ser um tipo novo", costumo dizer, "mas já tenho umas histórias para contar aos netos". O lema, “Para que outros vivam”, era vivido ao máximo. Era a nossa motivação, a nossa força, o nosso orgulho.

Foto: Menso Van Westrhenen (c)

Foto: Menso Van Westrhenen (c)

Em 2012, para além das funções como piloto‐comandante, era igualmente oficial de relações públicas da Esquadra. Todos os tripulantes, fossem pilotos, recuperadores salvadores ou operadores de sistemas, tinham funções complementares em terra. Aquela era a minha. E, consequência dessa atribuição, era da minha responsabilidade organizar, desenvolver e implementar a política de comunicação da Esquadra.

Um dos eventos que organizámos foi uma Grande Reportagem da TVI imediatamente após o incidente com o cruzeiro Costa Concordia. A premissa seria demonstrar os meios que Portugal teria no caso dessa catástrofe acontecer em águas nacionais. Uma das hipóteses que achámos interessante foi promover o reencontro entre um recuperador salvador (os homens que descem no cabo para irem resgatar quem deles precisa) e um náufrago por ele resgatado. E assim foi. No dia combinado o referido náufrago foi ter connosco à Esquadra e com ele trouxe o seu pequeno filho. Decidimos filmar esse reencontro à entrada do edifício da Esquadra. “Porreiro”, pensava eu, “vai dar um bom momento de televisão”.

Durante a filmagem do reencontro fiquei a fazer companhia ao filho . Ele teria quatro, cinco anos talvez. Estávamos sentados os dois à beira do passeio, a poucos metros de onde o pai estava a ser entrevistado. Então, de forma repentina, toca-me no braço, chama-me a atenção e olha-me nos olhos. E aí, nesse momento, ouvi umas palavras que ficarão comigo para todo o sempre.

Obrigado por salvarem o meu pai”.

Ali estava eu. Militar, fardado com fato de voo, com aquele ar tipicamente rígido e já com alguma experiência em missões complexas… e fui invadido por um riso incontrolável acompanhado de uma emoção que apenas posso descrever como… indescritível.

Eu nem tinha participado naquela missão específica, e ouvir aquilo foi um dos momentos mais simples, mas memoráveis da minha vida.

Ali, naquele início de tarde sentado naquele passeio, tive a certeza:

É por isto que fazemos aquilo que fazemos”.

www.merlin37.com/fazemosoquefazemos