Quem diria

Lá fora silêncio. Não fossem as motas do Uber Eats que ocasionalmente sobem e descem a rua à procura do seu cliente esfomeado, poderia dizer-se que estaríamos num cenário de filme. Ou em um dia de Agosto em Lisboa, quando as ruas aparentam vazias. 

Os acontecimentos têm uma tendência engraçada de nos apanhar eventualmente. E este povo, que tantas vezes pensa que “só acontece aos outros”, vê-se agora confrontado com um confinamento forçado. “Cabrão do vírus” pensarão muitos. 

E quem diria? 

Quem diria que depois de nos queixarmos tanto de sair de casa para trabalhar, agora nos queixamos por ficar nela? 

Quem diria que, mesmo assim, há quem insista em por em risco os seus concidadãos e não cumpra o estabelecido.

Quem diria que, afinal, damos valor ao Serviço Nacional de Saúde? 

Quem diria que, realisticamente, aqueles trabalhadores essenciais ao país são aqueles que menos estimamos e menos recompensamos: os funcionários de grandes superfícies comerciais. Os estafetas. Os homens do lixo. Os padeiros e os camionistas. Os que fazem que isto não pare. 

Quem diria que, aqueles que sempre lutaram pela melhoria das suas condições de trabalho, e que viram a sua profissão denegrida pelo poder político, como os enfermeiros, são aqueles a quem mais se exige agora?

Quem diria que, aqueles a quem sempre acusámos de serem uma classe privilegiada, como os médicos, são aqueles que agora nos salvam a vida

Quem diria que, aqueles que sempre ignorámos, os cientistas, são hoje a esperança da Humanidade para um futuro melhor?

Quem diria que, aqueles que sempre criticámos e ignorámos, como os Polícias, são aqueles que arriscam, mais uma vez, a sua saúde para garantir a ordem e a segurança de todos? 

Quem diria que, aqueles que sempre acusámos de chulos, os militares, estão mais uma vez a apoiar a sociedade civil com tudo o que têm? 

Quem diria que, afinal, precisamos todos uns dos outros. E que viver em sociedade é isso mesmo? Reconhecer que somos parte de algo, com direitos e deveres, e não um indivíduo para o qual todos os restantes trabalham.

Pode ser que daqui a alguns anos nos venhamos a aperceber que foi nesta altura que os portugueses ganharam uma maior cultura de cidadania. Que foi nesta altura que se tornaram menos egoístas. Que foi nesta altura que se tornaram mais humildes. 

E aí então, talvez, alguém venha a clamar: quem diria, tornámo-nos um povo melhor.

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(Foto de capa: La Repubblica, jornal italiano)