Habituem-se Portugueses!

Habituem-se a um Governo composto por elementos com base em ligações familiares e não em meritocracia. 

Habituem-se a Secretários de Estado que recebem financiamento para projectos que não saem do papel. 

Habituem-se à noção de que os problemas desaparecem se enterrarmos dinheiro nos mesmos.

Habituem-se a um governo para qual o acto de “reformar” é tabu.  

Habituem-se a um governo em que Ministros tomam decisões estruturais para o país sem respeitar a cadeia hierárquica. 

Habituem-se à arrogância

Habituem-se à ideologia, mesmo que esta signifique a disseminação da incompetência, amadorismo e despotismo em empresas e organizações do Estado. 

Habituem-se a um governo que se rege pela frase “faz o que digo, não faças o que eu faço”. 

Habituem-se a Ministros que clamam contra o Privado e acabam por pagar mais por (muito) menos.

Habituem-se a um governo que restrutura empresas através de cortes brutais e despedimentos colectivos. Enquanto “recompensa” o seu elemento com nomeações e permitiria - se o caso não se tivesse tornado público - uma indemnização milionária sem consequência.

Habituem-se a um executivo que nunca sabe. Nunca ouviu falar. Que desconhece. Que vai averiguar. Que diz “isso é um casinho”.

Habituem-se a governantes que nunca têm culpa, que nunca assumem responsabilidade. “É a conjectura internacional”, “é culpa do governo anterior” (aquele que já saiu faz 8 anos), “é culpa do privado” são as frases de ordem. 

Habituem-se a um governo que, ao contrário da mulher de César, não aparenta fazer um esforço para  tentar parecer sério. 

Habituem-se a representantes políticos para os quais estar cada vez mais na cauda da Europa é não só normal, como aparenta ser desejável. 

Habituem-se a um governo para o qual a Ética é um conceito desconhecido. E a responsabilidade política uma raridade. 

Habituem-se à falta de vergonha.

Habituem-se… 

… Porque a culpa também é nossa. 

Capa da Revista VISÂO de 15/12/2022

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“Accountability”, sabem o que é?

Saudade. Todos nós, portugueses, conhecemos bem essa palavra. É uma parte intrínseca do nosso povo e gostamos de dizer, seja verdade ou não, que não tem tradução em nenhuma outra língua falada neste planeta. Existem palavras ou expressões que surgiram para definir, quantificar ou explicar um determinado acto ou sentimento que era único e exclusivo a um grupo de pessoas. E as palavras dizem muito sobre os povos.

Interessante também é analisar a questão de forma inversa. Que outras palavras existem por esse mundo fora que não têm tradução directa em português? E dessas, do conceito que definem, qual é que nos faria mais falta? Para mim tornou-se uma pergunta de resposta simples: “Accountability”.

De acordo com a Merriam-Webster (Encyclopedia Britannica), “Accountability” é definida como:

 An obligation or willingness to accept responsibility or to account for one's actions.

Em português não existe tradução directa. “Prestação de contas” ou “responsabilidade com ética” deverão ser as expressões mais aproximadas.

E torna-se difícil não pensar que a inexistência desta palavra no nosso léxico diz muito sobre o país que somos: um país onde existe muito pouca “accountability”. Especialmente em níveis com elevado poder de decisão. Por cá, arranjámos uma expressão que define bem a falta de “accountability”: a culpa morre solteira.


Tenho a experiência pessoal de exercer uma profissão em que a existência de “accountability” está bem presente no dia a dia. Em aviação, ao mais pequeno erro, à mais pequena negligência, as consequências são imediatas e directas. E isto porque todo um sistema de controlo e monitorização está montado de modo a garantir que cada um sabe exactamente aquilo que pode, e deve, fazer. A segurança assim o exige, afinal de contas falamos de vidas humanas. Daí que ao mais pequeno incidente existam investigações complexas e demoradas. E a responsabilidade sente-se na pele. É stressante. Mas é essencial.

No país parece que é diferente. “Accountability”?

O país “desconfinou” no Natal, levando à pior vaga de sempre? “Tudo normal”.

O sistema SIRESP funciona com graves limitações, ao abrigo de um contrato que não defende o Estado Português? “É o dia-a-dia”.

O País permite no meio de uma pandemia milhares de pessoas em ajuntamento numa celebração desportiva? “É deixar andar”.

Os portugueses têm de ficar em casa, mas criamos uma “bolha” fictícia para, mais uma vez, observar violência e ajuntamentos em mais um evento desportivo que ninguém na Europa (nem mesmo o país de onde vinham as duas equipas) quis organizar? “Foi azar, correu quase tudo bem”.

Uma Ministra admite que um currículo de um candidato (candidato esse preferido pela tutela) foi alterado para “embelezar” a candidatura em Bruxelas? “É um procedimento normal, apenas para realçar algumas competências”.

Entregamos de mão beijada através de uma autarquia (?!) dados de três activistas (incluindo morada e telefone) a um estado estrangeiro – estrategicamente adversário da EU e da NATO – que continua a dar provas de manter uma postura altamente anti-democrática? E, convém dizer, sendo dois desses activistas cidadãos portugueses? “Foi um triste lapso”.

Roça o amadorismo.

Há algo que o país precisa mais do que dinheiro. Mais do que investimento estrangeiro, mais do que turistas, mais do que dez ou vinte Auto-Europa.

O país precisa desesperadamente de “accountability”. De gente, de indivíduos, que assumem as suas responsabilidades, com coragem e frontalidade. E tomem as devidas ilações, sejam elas políticas ou não. Longe vão os tempos em que governantes punham o lugar à disposição por menos.

Por muito menos.

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Foto de capa: Tiago Miranda (via Visão)

E agora? Foi azar?

Revoltado. É difícil alguém não se sentir assim.  

Na altura que escrevo estas linhas a protecção civil já confirmou a existência de pelo menos trinta e duas vítimas mortais. Portugal e os incêndios parece o título de uma tragédia grega que se prolonga infinitamente na história recente do nosso país. 

Mas as últimas vinte e quatro horas foram igualmente férteis em declarações surpreendentes.


Disse o Secretário de Estado da Administração Interna que “temos de nos auto-proteger”. Que “Não podemos ficar todos à espera que apareçam os nossos bombeiros e aviões para nos resolver o problema”.

E ouvimos o Primeiro Ministro referir que: “o país tem de estar consciente que a situação que estamos a viver vai seguramente prolongar-se para os próximos anos”. Em jeito de “habituem-se”. 

Gostaria de relembrar que é dever elementar do Estado garantir a segurança física dos seus cidadãos. É, afinal, por isso que pagamos impostos.

Não faz qualquer sentido responsabilizar o governo - seja ele qual for - pela ocorrência de um cataclismo natural. É redutor e intelectualmente desonesto. É algo incontrolável. O mesmo já não se pode dizer sobre a forma como a reacção ao mesmo é gerida, organizada e implementada. Como se gere a crise e, acima de tudo, as declarações públicas que se emitem. Declarações essas que, nestas alturas, têm um peso importantíssimo.  

Honestamente, as últimas vinte e quatro horas soam a de-responsabilização. 

Foto: Paulo Novais (c) Agência Lusa 

Foto: Paulo Novais (c) Agência Lusa 

O Secretário de Estado com a pasta da Administração Interna a dizer que têm de ser as populações a cuidar de si é Kafkiano. Aparentemente é agora responsabilidade das populações afectadas lutar contra incêndios, sem o treino e sem o equipamento necessário. O Estado nada terá a ver com isso. Quem está a exercer um cargo público desta natureza tem de obrigatoriamente medir muito bem as suas palavras. 

O Primeiro Ministro que, curiosamente, foi titular da pasta da Administração Interna durante vários anos na década passada, dizer que temos de estar preparados para mais é quase como dizer que, só agora, acordámos para o problema. E logo ele que, fruto da pasta que tutelou, já tem a experiência e o conhecimento suficiente sobre a questão florestal portuguesa. 

É absurdo.

É como somente colocar as culpas em mão criminosa. Há com certeza imensa. Mas convém lembrar que quem é responsável por legislar sobre o código penal que pune quem pratica esses mesmos actos é o governo ou a Assembleia da República. Aí reside muita da responsabilidade.

É como o SIRESP. Que continua a falhar, mas nada muda. Nada se altera. Nenhum penalização se exige. 

É como o eucalipto. Que foi durante muito tempo a desculpa mas que, afinal, não é o único “culpado”. 

Não gosto de declarações políticas. Raramente as faço. E neste assunto todos, de todo o espectro político, têm culpas no cartório. Esquerda e Direita. Não há nenhum partido na Assembleia da República, com óbvia excepção para o PAN, que esteja livre de responsabilidades.

Mas parece que sempre que algo corre bem, todos no presente executivo dão palmadinhas nas costas e enaltecem-se perante os eleitores. 


Quando as coisas correm mal, a responsabilidade, essa, nunca passa por ali

Foi assim em Pedrogão. Foi assim em Tancos. Foi assim ontem, 15 de Outubro. 

Como se não existissem ilações políticas a retirar. 

Mas existem. Muitas. 

A fibra de um líder não se vê só quando as coisas correm bem. Vê-se também quando correm mal.

E este Verão as coisas correram mal. Foram mais de cem vítimas mortais. 

É fácil estar revoltado, não é? 

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