“Accountability”, sabem o que é?

Saudade. Todos nós, portugueses, conhecemos bem essa palavra. É uma parte intrínseca do nosso povo e gostamos de dizer, seja verdade ou não, que não tem tradução em nenhuma outra língua falada neste planeta. Existem palavras ou expressões que surgiram para definir, quantificar ou explicar um determinado acto ou sentimento que era único e exclusivo a um grupo de pessoas. E as palavras dizem muito sobre os povos.

Interessante também é analisar a questão de forma inversa. Que outras palavras existem por esse mundo fora que não têm tradução directa em português? E dessas, do conceito que definem, qual é que nos faria mais falta? Para mim tornou-se uma pergunta de resposta simples: “Accountability”.

De acordo com a Merriam-Webster (Encyclopedia Britannica), “Accountability” é definida como:

 An obligation or willingness to accept responsibility or to account for one's actions.

Em português não existe tradução directa. “Prestação de contas” ou “responsabilidade com ética” deverão ser as expressões mais aproximadas.

E torna-se difícil não pensar que a inexistência desta palavra no nosso léxico diz muito sobre o país que somos: um país onde existe muito pouca “accountability”. Especialmente em níveis com elevado poder de decisão. Por cá, arranjámos uma expressão que define bem a falta de “accountability”: a culpa morre solteira.


Tenho a experiência pessoal de exercer uma profissão em que a existência de “accountability” está bem presente no dia a dia. Em aviação, ao mais pequeno erro, à mais pequena negligência, as consequências são imediatas e directas. E isto porque todo um sistema de controlo e monitorização está montado de modo a garantir que cada um sabe exactamente aquilo que pode, e deve, fazer. A segurança assim o exige, afinal de contas falamos de vidas humanas. Daí que ao mais pequeno incidente existam investigações complexas e demoradas. E a responsabilidade sente-se na pele. É stressante. Mas é essencial.

No país parece que é diferente. “Accountability”?

O país “desconfinou” no Natal, levando à pior vaga de sempre? “Tudo normal”.

O sistema SIRESP funciona com graves limitações, ao abrigo de um contrato que não defende o Estado Português? “É o dia-a-dia”.

O País permite no meio de uma pandemia milhares de pessoas em ajuntamento numa celebração desportiva? “É deixar andar”.

Os portugueses têm de ficar em casa, mas criamos uma “bolha” fictícia para, mais uma vez, observar violência e ajuntamentos em mais um evento desportivo que ninguém na Europa (nem mesmo o país de onde vinham as duas equipas) quis organizar? “Foi azar, correu quase tudo bem”.

Uma Ministra admite que um currículo de um candidato (candidato esse preferido pela tutela) foi alterado para “embelezar” a candidatura em Bruxelas? “É um procedimento normal, apenas para realçar algumas competências”.

Entregamos de mão beijada através de uma autarquia (?!) dados de três activistas (incluindo morada e telefone) a um estado estrangeiro – estrategicamente adversário da EU e da NATO – que continua a dar provas de manter uma postura altamente anti-democrática? E, convém dizer, sendo dois desses activistas cidadãos portugueses? “Foi um triste lapso”.

Roça o amadorismo.

Há algo que o país precisa mais do que dinheiro. Mais do que investimento estrangeiro, mais do que turistas, mais do que dez ou vinte Auto-Europa.

O país precisa desesperadamente de “accountability”. De gente, de indivíduos, que assumem as suas responsabilidades, com coragem e frontalidade. E tomem as devidas ilações, sejam elas políticas ou não. Longe vão os tempos em que governantes punham o lugar à disposição por menos.

Por muito menos.

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Foto de capa: Tiago Miranda (via Visão)