Um activismo "não muito inteligente"

Recentemente, temos testemunhado em Portugal o crescimento de um activismo climático mais "radical" (uso este termo com bastante cuidado e entre aspas).

Durante uma conferência sobre a transição energética, não há muito tempo, três activistas atiraram bolas de tinta verde ao Ministro do Ambiente, expressando várias palavras de ordem, como por exemplo as as suas queixas contra a empresa de energia portuguesa - a EDP. A sua mensagem? "(...) A EDP não quer saber da transição energética."

No World Aviation Festival em Lisboa, uma das maiores conferências mundiais de aviação comercial, vários activistas invadiram o palco principal durante um painel com diversos CEO’s de várias companhias aéreas. Ironicamente quando estes discutiam o caminho para atingir a meta de “Carbono Zero”. Simultaneamente, outros activistas pintaram o exterior do edifício de vermelho, acompanhando a sua acção com slogans como "A aviação está a matar-nos," "Parem a Aviação," e "vocês são assassinos." Palavras muito fortes. Eu estava lá, sentado nas primeiras filas, e sendo piloto, acho que caí sob a etiqueta de "assassino".

Na semana passada, numa exposição de arte no Centro Cultural de Belém, dois activistas pintaram um quadro de Picasso de cor laranja e colaram-se à parede. Felizmente o quadro estava protegido por uma protecção acrílica. Infelizmente, este não é um evento isolado; incidentes semelhantes têm ocorrido um pouco por todo o mundo.

Estes três exemplos são apenas a ponta do iceberg (ainda hoje alguém se decidiu colar a um avião da companhia aérea nacional). Não me interpretem mal: sou bastante liberal nesta questão. Acredito que o Activismo é essencial numa sociedade democrática livre e, por vezes, é a única maneira de impulsionar o progresso. De crescer. De chamar a atenção para questões críticas. Como Steve Jobs costumava dizer, "Aqueles que são loucos o suficiente para pensar que podem mudar o mundo são os que o mudam".

No entanto, o que me preocupa é o aumento do que eu chamaria de activismo "não muito inteligente," e aqui está o porquê: dados. Dados concretos e factuais. Quando alguém realiza uma ação pública como as mencionadas acima (acções com grande visibilidade e potencial criador de prejuízos materiais), deve estar preparado para a apoiar com factos. É aí que começam as minhas (muitas) dúvidas.

Parece que, na esmagadora maioria dos eventos a que temos vindo a assistir, os activistas não fizeram o seu trabalho de casa: A EDP - Energias de Portugal - é, de facto, um exemplo de como uma empresa, especialmente uma empresa no sector de energia, está a fazer um trabalho louvável. Estabeleceram objetivo de se tornar neutros em carbono até 2030 - altamente ambicioso - e provavelmente conseguirão atingir o seu objectivo antes dessa data. Toda a energia que a EDP produzir será de fontes renováveis, o que é notável, especialmente quando percebemos o quão à frente do objetivo de 2050 estabelecido em Paris a empresa está. De tal maneira que os seus esforços foram recentemente reconhecidos pelas Nações Unidas, sendo a EDP apresentado como um modelo de empresa global a seguir.

De acordo com a Agência Internacional de Energia, o sector da Aviação representou apenas 2% das emissões globais de CO2 em 2022, com algumas fontes apresentando um valor de 2,5%. Portanto, parece-me claro que a Aviação não contribui significativamente para o aumento das emissões de CO2 em todo o mundo - representa sim uma pequena percentagem das emissões globais. E como em tudo na vida, devemos analisar os prós e os contras da nossa posição. Dois por cento (ou mesmo 2,5%) das emissões totais de CO2 não representa, de forma alguma, o cerne do problema, especialmente numa indústria considerada essencial como a aviação. Pergunto-me como esses mesmos activistas acham que as suas roupas chegaram a Portugal ou como é que os seus iPhones apareceram miraculosamente nas prateleiras das lojas… Não é intelectualmente honesto procurar interromper e parar toda uma indústria, todo um sector (como o da Aviação comercial), com slogans, que para além de serem de mau gosto, não representam os factos do mundo em que vivemos.

Por último, acho impressionante tentar estabelecer uma ligação entre a arte (e o seu eventual papel na nossa jornada climática) e as alterações climáticas. Não tenho a certeza se Picasso costumava ir para o seu jardim queimar carvão apenas por diversão… Mas tentar vandalizar uma das mais importantes obras de arte da história para simplesmente tentar passar uma mensagem parece-me um acto de insanidade. A arte representa o pináculo das nossas capacidades e engenho como espécie - um testemunho à nossa capacidade de criar aquilo que é uma beleza duradoura, apreciada por diferentes gerações ao logo da nossa história. A arte deveria ser admirada por estes activistas como um exemplo. Um exemplo de como podemos criar coisas que resistem ao teste do tempo, tal como nos esforçamos igualmente para construir um futuro melhor para os nossos filhos, e não o contrário.

Admito que este é um texto que não queria escrever. Mais uma vez, acredito firmemente que o Activismo é crucial. No entanto, este deve ser inteligente. Se pudesse falar com algum destes activistas, argumentaria que esta não é a forma mais eficaz de transmitir a mensagem - por mais válida que seja. Polarizam opiniões, deslocam o foco da mensagem para as acções em si e amplia o grande fosse que já separa parte da nossa sociedade contemporânea. Mais: minimiza e faz escárnio de anos de trabalho em busca de um mundo mais sustentável.

Portanto, por favor, antes de se envolverem em mais acções novamente, verifiquem os factos. Investiguem. Examinem os dados. Façam uma pausa, respirem fundo e perguntem a vocês mesmos: "Isto vai ajudar ou piorar a situação?" .

Pelo bem de todos nós, considerem o conselho de alguém que apoia também de forma firme a busca de sustentabilidade e o combate às mudanças climáticas. Pese embora vocês me considerem um “assassino”.

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Habituem-se Portugueses!

Habituem-se a um Governo composto por elementos com base em ligações familiares e não em meritocracia. 

Habituem-se a Secretários de Estado que recebem financiamento para projectos que não saem do papel. 

Habituem-se à noção de que os problemas desaparecem se enterrarmos dinheiro nos mesmos.

Habituem-se a um governo para qual o acto de “reformar” é tabu.  

Habituem-se a um governo em que Ministros tomam decisões estruturais para o país sem respeitar a cadeia hierárquica. 

Habituem-se à arrogância

Habituem-se à ideologia, mesmo que esta signifique a disseminação da incompetência, amadorismo e despotismo em empresas e organizações do Estado. 

Habituem-se a um governo que se rege pela frase “faz o que digo, não faças o que eu faço”. 

Habituem-se a Ministros que clamam contra o Privado e acabam por pagar mais por (muito) menos.

Habituem-se a um governo que restrutura empresas através de cortes brutais e despedimentos colectivos. Enquanto “recompensa” o seu elemento com nomeações e permitiria - se o caso não se tivesse tornado público - uma indemnização milionária sem consequência.

Habituem-se a um executivo que nunca sabe. Nunca ouviu falar. Que desconhece. Que vai averiguar. Que diz “isso é um casinho”.

Habituem-se a governantes que nunca têm culpa, que nunca assumem responsabilidade. “É a conjectura internacional”, “é culpa do governo anterior” (aquele que já saiu faz 8 anos), “é culpa do privado” são as frases de ordem. 

Habituem-se a um governo que, ao contrário da mulher de César, não aparenta fazer um esforço para  tentar parecer sério. 

Habituem-se a representantes políticos para os quais estar cada vez mais na cauda da Europa é não só normal, como aparenta ser desejável. 

Habituem-se a um governo para o qual a Ética é um conceito desconhecido. E a responsabilidade política uma raridade. 

Habituem-se à falta de vergonha.

Habituem-se… 

… Porque a culpa também é nossa. 

Capa da Revista VISÂO de 15/12/2022

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A indecente Inacção Europeia

Uma nação europeia de quarenta milhões de habitantes luta pela sua existência. Impensável, pensávamos todos, que em pleno século XXI um regime estrangeiro decidisse invadir um país europeu soberano e democrático. Uma invasão total, impossível de justificar por motivos históricos ou pelos defeitos da democracia Ucraniana - umas das mais recentes na Europa.

E mais uma vez, a bravura não conhece linhas. Não conhece demarcações. Não conhece fronteiras. Nas planícies da Ucrânia, milhões de ucranianos lutam pela sua liberdade, pelo seu direito a existir como Nação, com garra, resiliência e uma inegável coragem, digna de lenda. Nas ruas da Rússia, milhares de corajosos cidadãos russos mostram o seu apoio ao fim do conflito, sendo presos e condenados meramente por expressarem a sua solidariedade com os seus vizinhos. 

Daqui a muitos anos, ao ler os livros de História, as nossas crianças e netos irão perguntar-nos como é que nós, no Ocidente, pudemos ser testemunhas desta página negra da história moderna e fazer tão pouco tão tarde. 

E nesse instante a nossas caras ficarão cobertas de vergonha. Porque nós, pouco ou nada fizemos. 

Indecente, irão dizer-nos. E nós, calados, olharemos para baixo.

Como aparentamos fazer agora.

As palavras “coragem”, “resiliência” e “liderança” resumidas numa só: Zelensky.

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Três razões para ter orgulho

Por vezes é difícil ter esperança neste país. É difícil no meio de tanto escândalo, de tanta irresponsabilidade e de tanta falta de competência acreditar que somos tão ou mais capazes, tão ou mais válidos, ou tão ou mais profissionais que os outros. Um aparente fatalismo instalou-se entre nós, ou talvez apenas em mim. Mas felizmente surgem indivíduos que nos provam o contrário. Que provam que temos muitas razões para ter orgulho. Três das razões mais recentes?

Sir António Horta-Osório, banqueiro português que liderou a reestruturação e a impressionante recuperação do Lloyds Bank no Reino Unido, recebeu o grau de cavaleiro, pela Rainha de Inglaterra. Um honra única, que não só é um atestado à extrema competência de Horta-Osório, como uma constatação do facto que após a recuperação do banco com injecção de capital público, o mesmo devolveu ao erário público britânico todo o dinheiro investido mais um cheque “extra” de novecentos milhões de Euros. António Horta-Osório é hoje o chairman do Credit Suisse, o primeiro português a ocupar uma posição daquele género.

Daniela Braga, uma investigadora e empresária portuguesa, na área da Inteligência Artificial foi uma das doze pessoas escolhias pelo presidente norte-americano, Joe Biden, para integrar a mais recente Task-Force da Casa Branca que irá definir o futuro da política norte-americana nessa tão importante área. Uma confirmação da sua competência e do seu conhecimento único sobre aquela que é uma das tecnologias que já está a moldar o nosso futuro.

Rodrigo da Costa, que desde o final de 2020 se tornou o director executivo da EUSPA – EU Agency for the Space Program. O primeiro português a ocupar um cargo desta responsabilidade num dos organismos mais importantes para a exploração espacial europeia, responsável por programas tão importantes como o Galileo ou EGNOS. Uma mente brilhante, num local de destaque.

E embora estes nomes possam não ser do conhecimento da maioria dos portugueses, eles representam o melhor que há entre nós. E numa altura em que o campeonato europeu de futebol acabou de começar, convém lembrar que o nosso potencial é muito, mas muito mais do que apenas futebol. E, verdade seja dita, em campos bem mais importante do que um campo de futebol.

António, Daniela e Rodrigo, um brinde!

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“Accountability”, sabem o que é?

Saudade. Todos nós, portugueses, conhecemos bem essa palavra. É uma parte intrínseca do nosso povo e gostamos de dizer, seja verdade ou não, que não tem tradução em nenhuma outra língua falada neste planeta. Existem palavras ou expressões que surgiram para definir, quantificar ou explicar um determinado acto ou sentimento que era único e exclusivo a um grupo de pessoas. E as palavras dizem muito sobre os povos.

Interessante também é analisar a questão de forma inversa. Que outras palavras existem por esse mundo fora que não têm tradução directa em português? E dessas, do conceito que definem, qual é que nos faria mais falta? Para mim tornou-se uma pergunta de resposta simples: “Accountability”.

De acordo com a Merriam-Webster (Encyclopedia Britannica), “Accountability” é definida como:

 An obligation or willingness to accept responsibility or to account for one's actions.

Em português não existe tradução directa. “Prestação de contas” ou “responsabilidade com ética” deverão ser as expressões mais aproximadas.

E torna-se difícil não pensar que a inexistência desta palavra no nosso léxico diz muito sobre o país que somos: um país onde existe muito pouca “accountability”. Especialmente em níveis com elevado poder de decisão. Por cá, arranjámos uma expressão que define bem a falta de “accountability”: a culpa morre solteira.


Tenho a experiência pessoal de exercer uma profissão em que a existência de “accountability” está bem presente no dia a dia. Em aviação, ao mais pequeno erro, à mais pequena negligência, as consequências são imediatas e directas. E isto porque todo um sistema de controlo e monitorização está montado de modo a garantir que cada um sabe exactamente aquilo que pode, e deve, fazer. A segurança assim o exige, afinal de contas falamos de vidas humanas. Daí que ao mais pequeno incidente existam investigações complexas e demoradas. E a responsabilidade sente-se na pele. É stressante. Mas é essencial.

No país parece que é diferente. “Accountability”?

O país “desconfinou” no Natal, levando à pior vaga de sempre? “Tudo normal”.

O sistema SIRESP funciona com graves limitações, ao abrigo de um contrato que não defende o Estado Português? “É o dia-a-dia”.

O País permite no meio de uma pandemia milhares de pessoas em ajuntamento numa celebração desportiva? “É deixar andar”.

Os portugueses têm de ficar em casa, mas criamos uma “bolha” fictícia para, mais uma vez, observar violência e ajuntamentos em mais um evento desportivo que ninguém na Europa (nem mesmo o país de onde vinham as duas equipas) quis organizar? “Foi azar, correu quase tudo bem”.

Uma Ministra admite que um currículo de um candidato (candidato esse preferido pela tutela) foi alterado para “embelezar” a candidatura em Bruxelas? “É um procedimento normal, apenas para realçar algumas competências”.

Entregamos de mão beijada através de uma autarquia (?!) dados de três activistas (incluindo morada e telefone) a um estado estrangeiro – estrategicamente adversário da EU e da NATO – que continua a dar provas de manter uma postura altamente anti-democrática? E, convém dizer, sendo dois desses activistas cidadãos portugueses? “Foi um triste lapso”.

Roça o amadorismo.

Há algo que o país precisa mais do que dinheiro. Mais do que investimento estrangeiro, mais do que turistas, mais do que dez ou vinte Auto-Europa.

O país precisa desesperadamente de “accountability”. De gente, de indivíduos, que assumem as suas responsabilidades, com coragem e frontalidade. E tomem as devidas ilações, sejam elas políticas ou não. Longe vão os tempos em que governantes punham o lugar à disposição por menos.

Por muito menos.

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Foto de capa: Tiago Miranda (via Visão)

Competência

Portugal tem tido nas últimas décadas uma relação de indiferença (para não dizer outra palavra mais ofensiva) com as suas Forças Armadas. Era comum – fosse no mundo real, fosse no digital – a existência de comentários incompreensivelmente jocosos. Mas mais impressionante que esse facto, é a resposta que sempre foi dada pela instituição castrense: cumprir a missão com brio.

O Diário de Notícias publicou ontem, dia 09 de Maio, uma interessantíssima reportagem sobre o Vice-Almirante Gouveia e Melo e a task-force de vacinação que comanda. Nela é acompanhado o dia-a-dia da task-force e do seu comandante, coincidindo com o exacto momento em que é atingido um marco histórico: as cem mil inoculações diárias. É importante não relativizar a imensidão da tarefa logística que isto representa. Da coordenação necessária, do planeamento obrigatório e da incessante avaliação do progresso.

Foi notório que assim que o Vice-Almirante Gouveia e Melo ficou responsável pelo programa de vacinação à COVID-19 em Portugal, terminou o uso do mesmo como arma política – que era a mais abjecta forma de lidar com este problema. E embora a excelente capacidade operacional dos militares possa doer a algumas franjas da sociedade (e é importante lembrar que o Vice-Almirante até foi criticado por usar farda camuflada, como se esta não fosse a sua farda de trabalho ou como se não estivesse no seu direito como militar) a verdade é que passámos a ter frontalidade nas declarações e eficiência no processo. Só espanta é como é que não foi assim desde início. Pode ser que o poder política tenha tirado – mais uma vez – as ilações necessárias.

Ainda se vive neste país com um qualquer complexo, que admito, não sei explicar, com as Forças Armadas. Está na altura de, finalmente, terminar com ele. Pois mais uma vez elas responderam como melhor sabem: com competência.

E essa é uma qualidade que faz desesperadamente falta a este país. Cada vez mais.

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(Foto de capa: Global Imagens)


(Uma espécie de) Democracia

O The Economist Intelligence Unit publicou hoje o seu relatório “Democracy Index 2020 – In sickness and in health?”. Este documento, elaborado pela revista “The Economist”, mede o pulso à qualidade das democracias mundiais analisando vários factores. É um relatório único, um dos poucos do género, onde os diversos países são agrupados em quatro grandes grupos: full democracies, flawed democracies, hybrid regimes e authoritarian regimes.

Portugal, naquilo que poderá ser um choque para alguns, desceu de grupo, e é hoje considerado por este “think-thank” como “flawed democracy”, localizando-se no fundo da tabela referente à Europa Ocidental. O relatório relativo a 2020 sempre seria particular, consequência da crise pandémica que vivemos e das diversas medidas limitadoras dos movimentos impostas em várias democracias ocidentais. É importante não relativizar a importância de já não sermos considerados uma democracia plena, especialmente quando uma leitura mais atenta do relatório nos indica uma das explicações pela qual Portugal caiu de grupo:

In Portugal, the frequency of parliamentary debates (through which the prime minister is held accountable) was reduced during the pandemic. This, coupled with the lack of transparency around the appointment of the president of the auditing court, led to a deterioration in the checks and balances score.

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As democracias são regimes frágeis e que muito dificilmente sobreviverão a uma permanentemente falta de transparência. Portugal está a entrar num caminho perigoso. Ser considerado uma “flawed democracy” é, infelizmente, uma fotografia bastante nítida do país em que vivemos actualmente. Em que uma procuradora geral da república competente é substituída, um presidente do tribunal de contas é afastado, uma procuradora com melhor currículo é preterida face a uma figura mais “amigável”, e onde membros do governo dizem não ser legítimo criticar o executivo. Sem qualquer consequência política. Sem qualquer pudor. Sem, arrisco-me a dizer, qualquer vergonha. Um caso seria inócuo, vários denotam um padrão. Uma tendência. E por isso é que uma chamada de atenção é importante. Vivemos num país onde a meritocracia foi substituída por um cartão partidário. Onde a competência é substituída por amizades. Onde a lógica é subvertida pela chamada “nomeação política”. Os “amigos” são o que mais conta e isso, por si só, leva a uma quebra de confiança nas instituições democráticas (e consequente subida do extremismo político).

Nunca sairemos da aparente espiral infindável de crises até que tenhamos uma reflexão clara sobre que democracia queremos, e que postura estamos dispostos a ter perante cargos públicos, perante a suposta impunidade reinante e perante a clara falta de auto-crítica de governos em funções. Independentemente da cor política.

A responsabilidade é de todos: dos órgãos de soberania ao cidadão comum. Do presidente da república ao eleitor que não vota. Dos meios de comunicação social ao comentador de Facebook.

E de nada vale gritar que é “uma vergonha” (porque o é) se não fizermos nada para o alterar (porque não o temos feito).

Competência precisa-se.

Urgentemente.


Poderão efectuar o download do relatório aqui: https://www.eiu.com/

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Quem diria

Lá fora silêncio. Não fossem as motas do Uber Eats que ocasionalmente sobem e descem a rua à procura do seu cliente esfomeado, poderia dizer-se que estaríamos num cenário de filme. Ou em um dia de Agosto em Lisboa, quando as ruas aparentam vazias. 

Os acontecimentos têm uma tendência engraçada de nos apanhar eventualmente. E este povo, que tantas vezes pensa que “só acontece aos outros”, vê-se agora confrontado com um confinamento forçado. “Cabrão do vírus” pensarão muitos. 

E quem diria? 

Quem diria que depois de nos queixarmos tanto de sair de casa para trabalhar, agora nos queixamos por ficar nela? 

Quem diria que, mesmo assim, há quem insista em por em risco os seus concidadãos e não cumpra o estabelecido.

Quem diria que, afinal, damos valor ao Serviço Nacional de Saúde? 

Quem diria que, realisticamente, aqueles trabalhadores essenciais ao país são aqueles que menos estimamos e menos recompensamos: os funcionários de grandes superfícies comerciais. Os estafetas. Os homens do lixo. Os padeiros e os camionistas. Os que fazem que isto não pare. 

Quem diria que, aqueles que sempre lutaram pela melhoria das suas condições de trabalho, e que viram a sua profissão denegrida pelo poder político, como os enfermeiros, são aqueles a quem mais se exige agora?

Quem diria que, aqueles a quem sempre acusámos de serem uma classe privilegiada, como os médicos, são aqueles que agora nos salvam a vida

Quem diria que, aqueles que sempre ignorámos, os cientistas, são hoje a esperança da Humanidade para um futuro melhor?

Quem diria que, aqueles que sempre criticámos e ignorámos, como os Polícias, são aqueles que arriscam, mais uma vez, a sua saúde para garantir a ordem e a segurança de todos? 

Quem diria que, aqueles que sempre acusámos de chulos, os militares, estão mais uma vez a apoiar a sociedade civil com tudo o que têm? 

Quem diria que, afinal, precisamos todos uns dos outros. E que viver em sociedade é isso mesmo? Reconhecer que somos parte de algo, com direitos e deveres, e não um indivíduo para o qual todos os restantes trabalham.

Pode ser que daqui a alguns anos nos venhamos a aperceber que foi nesta altura que os portugueses ganharam uma maior cultura de cidadania. Que foi nesta altura que se tornaram menos egoístas. Que foi nesta altura que se tornaram mais humildes. 

E aí então, talvez, alguém venha a clamar: quem diria, tornámo-nos um povo melhor.

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(Foto de capa: La Repubblica, jornal italiano)

Esses gajos dos helicópteros

“Epah”, dizia, “não é bem assim”. Faz uns dias foi assim que respondi a um colega. Estávamos os dois no cockpit, algures sobre Espanha a trinta e sete mil pés, e falávamos de um traço muitas vezes associado ao povo português: a mesquinhez. Eu, de forma algo ingénua, ainda acreditava que aquilo seria uma reputação injusta.

 Os últimos dias provaram-me (mais uma vez) errado. Viver e aprender, como dizem os norte-americanos. Somos mesquinhos. E não é pouco.

 Após o recente falecimento de um piloto de combate a incêndios no norte do país, e pelo facto de o mesmo ser oficial piloto da Força Aérea, multiplicaram-se os comentários, manchetes e notícias sobre como pilotos militares participavam no combate a incêndios pondo em causa a sua legitimidade. “Militares tiram férias para ganhar milhares a apagar incêndios” foi, a título de exemplo, uma das manchetes publicada num jornal nacional. Às vezes, a forma como se escreve diz mais que o seu conteúdo.

Vamos lá esclarecer uma coisa: devemos ser o único país onde alguém nas suas férias decide trabalhar, em detrimento do seu descanso, em prol dos seus compatriotas e isso é visto como negativo.

Mas qual é o problema?

Porque é militar? Estava devidamente autorizado (como estavam todos) pela chefia máxima desse ramo militar, cumprindo todos os parâmetros exigidos pela lei e pela instituição militar.

Porque existem pilotos civis? A falta de pilotos de helicópteros com os requisitos mínimos para combate a incêndios, e disponíveis a fazê-lo, é tão significativa que obriga a “importar” pilotos estrangeiros, como é exemplo os elementos de nacionalidade espanhola e brasileira que neste momento voam em Portugal.

Porque é remunerado? Voar um helicóptero, com um balde cheio de água em carga suspensa, durante dez horas diárias num dos ambientes mais hostis em termos aeronáuticos, com orografia do terreno acidentada, obstáculos artificiais como postes de alta tensão, e turbulência extrema causada pelo incêndio é digno de quê? Uma palmada nas costas e um copo de água? Um “gosto” no Facebook? Uma corrente de amizade online? E, já agora convém lembrar, numa função que representa a defesa do património de todos os portugueses.

Confesso… às vezes não compreendo o que se passa na mente colectiva de quem habita este pequeno país. A Força Aérea Portuguesa não é um a prisão. Os seus militares – e neste caso concreto os seus pilotos – são elementos altamente treinados, profissionais e com valências distintas. Mas têm vidas para além da tropa. Têm famílias. Têm férias como todos nós. E sim, a sua formação é paga pelo erário público, tal como qualquer elemento da função pública ou formado pelo estado. Vamos portanto, pela mesma ordem de ideias, proibir os médicos formados em faculdades públicas portuguesas de exercer no privado? Vamos impedir um funcionário das finanças de abrir o seu negócio? Vamos impedir um bombeiro sapador de, nas suas férias, trabalhar como vigilante florestal para uma entidade privada? Vamos impedir um agente da PSP de ter um part-time se ele quiser providenciar melhores condições financeiras para a sua família?

Que diferença esta… da nossa mentalidade latina para a mentalidade anglo-saxónica onde ter vários empregos, onde trabalhar mais para “subir na vida”, é visto com admiração. E não com o escárnio e mal dizer que caracteriza a nossa reacção.

E faço aqui a minha declaração de interesses: fui piloto da Força Aérea. Fui piloto de helicópteros. Não fui piloto de combate a incêndios. E só tenho a agradecer a todos aqueles que todos os dias entram num helicóptero ou avião para combater um incêndio no meu país. E é justo o que ganham para o fazer? Claro que não. Deveriam ganhar o triplo.  

O Oficial Piloto Aviador que perdeu a vida foi Socorrista. Era Bombeiro. Era Piloto de Busca e Salvamento. Era Piloto de Combate a Incêndios. Porra, até os dois cães que tinha foram treinados pelo próprio, no seu tempo livre, para serem cães de busca e salvamento. Dedicou, literalmente, toda a sua existência à salvaguarda da vida dos seus compatriotas.

 Merecia mais de nós.

 Muito mais.

 

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Foto de capa: autor desconhecido

Dever e sacrifício

O jornal Expresso publica hoje uma entrevista ao militar Comando Aliu Camará. Hoje com vinte e três anos, Aliu chegou a Portugal com doze. Ingressou nos Comandos em 2016. Na sua segunda missão na República Centro-Africana sofreu um acidente que lhe retirou a mobilidade: as duas pernas de Aliu foram amputadas devido a ferimentos. 

O caso de Aliu está a provocar uma reacção por parte chefias militares. Pretende-se que todos os militares que fiquem feridos durante o decorrer da sua actividade, e que daí resulte incapacidade física, sejam integrados nos quadros permanentes das Forças Armadas. Aliu, que é militar em regime de contrato, veria assim a possibilidade de continuar nos quadros e de ter garantido trabalho para o resto da sua vida. 

Aliu, hoje, na capa do Expresso.

Aliu, hoje, na capa do Expresso.

Só peca por tardia esta medida. 

E esse é, ainda, um problema: é apenas uma intenção. E Portugal, tal como o Inferno, está cheio de boas intenções. A tradicional burocracia portuguesa, acompanhada de uma tão comum e disseminada indiferença, tende a fazer cair no esquecimento medidas semelhantes. Aliu é um. Um entre vários portugueses que juraram com o sacrifício da própria vida defender a bandeira nacional. E fizeram-no, dando tudo aquilo que tinham. E a palavra “tudo” é bastante bem medida aqui. Deveria envergonhar-nos como Nação só agora estar a ser ponderado algo deste género.

A bola, agora e como se costuma dizer, está do lado do campo político. E também do lado das chefias militares, convém não esquecer. Que, se fizerem o que lhes compete, se forem minimamente competentes, se forem Homens de carácter, com coragem, e se forem independentes, farão tudo para que a medida avance. E que avance rápido. 

Aliu é Português. Aliu é militar. Aliu é Comando. E sempre será. E sem as duas pernas diz que sairá do Hospital Militar de pé. Disso não há nenhuma dúvida. Porque ali, naquele rapaz nascido na Guiné, está a verdadeira definição de garra e perseverança. Não só sairá de pé como sairá muito mais elevado que tantos outros que o deveriam defender. 

É que Aliu cumpriu, com brio, o seu dever. 

E nós Nação, vamos cumprir o nosso? 

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Foto de capa: Exército Português

Desilusão

Desilusão porque quase 70% de abstenção é um recorde histórico (negativo).  

Desilusão porque 70% deixaram na mão de 30% a decisão de quem nos representará na Europa nos próximos cinco anos. 

Desilusão porque hoje em dia grande parte da legislação posta em prática em Portugal é definida em Bruxelas. E com esta abstenção estamos a mostrar indiferença por algo que nos afecta directamente. 

Desilusão porque amanhã de manhã irão continuar a existir as conversas de café e o queixume do costume quando, na realidade, 70% deixaram de ter legitimidade para tal. 

Desilusão porque, independentemente da orientação política, o que não faltava nestas eleições era alternativas. Da chamada Esquerda à Direita, a quantidade de partidos (e programas) cobria quase todo o espectro de opinião.

Desilusão porque, mesmo assim, não era preciso votar em nenhum. Podia ser em branco. Podia até ser um “viva o Benfica” escrito no boletim de voto. Ou mesmo um vernáculo mais violento para com alguém. Mas aparecia-se. Estava-se lá e respeitava-se o processo democrático, demonstrando que a preocupação, e o respeito, de estar presente existia. 

Desilusão porque por mais que a campanha eleitoral tenha sido desastrosa e focada em tudo menos no que era importante - a Europa - era no boletim de voto que se deveria demonstrar o nosso protesto.

Desilusão porque, por mais zangados, frustrados ou desiludidos que estejamos, este ainda é o melhor sistema político existente. E é votando que o valorizamos e lhe damos força.

Desilusão porque muitos lutaram, sofreram e perderam a vida para que as gerações futuras pudessem, simplesmente, colocar uma cruz num boletim de voto - de anos a anos. 

Desilusão porque é assim que se fomenta, e incentiva, o surgimento da incompetência, do conformismo e dos “profissionais da política” que, percebendo a inacção da base do sistema democrático, se instalam calmamente nas cadeiras do poder.

Desilusão, e já agora vergonha, porque 70% dos meus compatriotas acharam que não era importante.

Mas era. Muito.

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Os Fascistas, os Comunistas e os outros...

Estamos encurralados. Presos entre duas enormes paredes sem aparente fuga possível: Esquerda e Direita.

Confesso que sempre estranhei quem afirma com convicção que é de Esquerda ou de Direita. Falamos de opções políticas como se de futebol se tratasse. E embora compreenda a razão histórica para o uso desses termos, assumo sempre que existirá senso comum na compreensão da sua “volatilidade”. É que Esquerda nos Estados Unidos e Direita na América no Sul, por exemplo, não são o mesmo que na Europa. Votamos, e discutimos, como se existisse alguma vergonha em admitirmos que, por vezes e como é natural, escolhemos a opção errada. Votar num partido não nos escraviza a uma ideologia.

E o Presente demonstra-nos isso tão bem. Hoje parece ser impossível ser-se moderado. Parece impossível ser-se ponderado. Parece impossível ser-se de Centro - para usar a mesma analogia.

Mas porquê?

Pode defender-se uma política de defesa nacional forte e ao mesmo tempo defender a imigração como uma possibilidade viável para equilibrar a demografia nacional. Pode ser-se liberal, defendendo uma muito menor intervenção do Estado na economia, e ao mesmo tempo defender-se um Serviço Nacional de Saúde público forte. Pode defender-se o direito ao aborto e ao mesmo tempo defender-se o serviço militar obrigatório. Nenhum partido, nenhuma ideologia política ou nenhuma personalidade tem o direito de se apropriar de uma causa, qualquer que ela seja. Essa causa será sempre, em última instância, propriedade de apenas uma entidade: a consciência de cada um.

Esta tendência e necessidade de catalogar tudo, de nos colarmos a uma causa por tudo e por nada e de projectarmos uma atitude politicamente correcta exagerada levará à queda da nossa sociedade tal como a conhecemos.

 Parecemos por vezes incapazes de discutir calmamente, ponderadamente e racionalmente assuntos que nos afectam a todos, porque estamos “presos” a ideologias, ou, não estando, somos julgados como se estivéssemos.

Na minha vida de eleitor já votei em quase tudo. Já li vários programas de governo (só por isso já mereço uma medalha). Já interroguei governantes.

E desilude-me esta superioridade moral de quem pensa que ele/a e só ele/a tem o direito de assumir um assunto como causa. Não quero gente de Esquerda. Nem quero gente de Direita. Quero indivíduos competentes, inteligentes e íntegros, que deêm o seu melhor. Porque pessoas com opiniões válidas e pessoas com opiniões idiotas existem… tanto de um lado como do outro.

Solte-mo-nos das correntes da ideologia. Ou em breve iremos cair nas garras de uma, enquanto alegremente nos acusamos uns aos outros de “fascista” ou “comunista” sem sequer sabermos realmente o que isso significa.

E será uma queda e tanto.

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Bem vindos de volta

622 980 km²

Esta é a área da República Centro Africana. Isolada no meio do continente africano este país é de uma dimensão quase idêntica à da França. Nele, e ao longo dos últimos meses, vários militares portugueses assumiram a função de Força de Reacção Rápida da missão das Nações Unidas.

Ontem, a 11 de Março, chegaram a Portugal os cercas de cento e oitenta elementos da nossa quarta força destacada, constituída maioritariamente por Paraquedistas do Exército e alguns (essenciais) elementos da Força Aérea Portuguesa.

 Aqui, a mais de quatro mil quilómetros de distância, é-nos difícil entender a enormidade da responsabilidade, da missão e do perigo por eles enfrentado. Numa imensidão de país, em terreno extremamente difícil e em condições atmosféricas infernais, aqueles pouco menos de duzentos portugueses fizeram efectivamente a diferença. Estiveram em combate por diversas vezes. Libertaram cidades e aldeias. Resgataram civis e repuseram a ordem. E fizeram-no sempre com um profissionalismo e dedicação que devia encher o peito de cada português de orgulho.

Paraquedistas portugueses em combate na cidade de Bambari. Foto via Diário de Notícias.

Paraquedistas portugueses em combate na cidade de Bambari. Foto via Diário de Notícias.

 Nós, por cá, com o bom tempo a chegar, céu limpo e uma vida tranquila, discutimos futebol, uma música do festival da canção ou novos programas de televisão. Gastam-se rios de tinta e horas de emissão com temas que, tenho de admitir, são no mínimo superficiais. Andamos hipnotizados numa espécie de ilusão colectiva que nos impede de ver – e reconhecer – aquilo que é importante e aqueles que entre nós merecem a nossa admiração.

E aqueles cento e oitenta portugueses mais do que merecem a nossa.

Haverá sempre quem critique. Quem mande abaixo. E quem interrogará sobre o porquê. Porque independentemente da razão e da legitimidade – e sim, estamos integrados numa força das Nações Unidas a cumprir um mandato internacional para protecção da integridade física de uma Nação e dos seus cidadãos – viverá sempre no meio dos portugueses um vil e ignorante “velho do Restelo”.

Mas os actos ecoam mais alto que as palavras. E, volto a repetir, num país várias vezes superior a Portugal aqueles militares fizeram a diferença. Tomara eu que muitos compatriotas meus os tomassem como exemplo. Pela garra, pelo profissionalismo e pelo orgulho de servirem Portugal. Porque é preciso alguém especial para arriscar a vida ao serviço da Nação em prol dos outros.

E vocês são-no.

Bem-vindos de volta.

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A vós

Aos médicos, enfermeiros e auxiliares de saúde. Aos polícias e aos seguranças. Aos voluntários. Aos militares em missão longe da família. Aos pilotos, aos tripulantes, aos controladores aéreos e ao pessoal de apoio. Aos bombeiros, à malta do INEM e às equipas de busca e salvamento.

A todos aqueles que hoje trabalham para que todos os outros estejam, em paz, em casa.

Feliz Natal

www.merlin37.com/natal (foto capa: Paul Wex)

Cidadania

Hoje foi dia de “coletes amarelos”. Tentou-se por cá emular o protesto que marcou o país dos gauleses nas últimas semanas. Diz-se que em França não se protesta, fazem-se revoluções. Após a intensidade daqueles protestos – que levaram Macron a dar o dito por não dito – torna-se difícil de não acreditar nisso. 

Por cá, o movimento dos “coletes amarelos” ficou bem longe das expectativas. Poucos foram os que saíram à rua, não existiu qualquer transtorno significativo e para quem vê as imagens transmitidas na comunicação social fica-se com a ideia que existiam mais coletes azuis (polícias) que amarelos (manifestantes). 

Mesmo assim, foi um dia impressionante. Mas não pelo fracasso do protesto. Este falhou por razões óbvias: faltava-lhe motivo concreto e claro (era demasiado vago, em França a razão do protesto era clara e compreendida por todos: o aumento do imposto sobre os combustíveis e a diminuição da carga fiscal sobre o lucro de grandes empresas),  foi organizado a um dia de semana (em França, o pico alto do protesto dava-se durante o fim de semana, altura em que a maior parte dos franceses poderia protestar sem por em causa o seu ganha-pão) e com ideias incompreensíveis para gerar o caos durante esta sexta-feira (como a sugestão da utilização de drones para fechar o espaço aéreo do aeroporto de Lisboa). 

Foto: LUSA / Rodrigo Antunes (C)

Foto: LUSA / Rodrigo Antunes (C)

Não. O dia foi impressionante por outra razão: pela forma como outros cidadãos, deste mesmo país, trataram os que decidiram protestar. 


Uma breve passagem pelas redes sociais, comunicação social ou mesmo por qualquer café, e apercebemo-nos da forma jocosa (e por vezes insultuosa) como alguns cidadãos se referem aos “coletes amarelos”. Parecemos crianças no recreio a gozar com os colegas. Parecemos putos com instintos primais.

Podemos não concordar com as razões concretas do protesto (como eu não concordo) e podemos não concordar com a forma como foi organizado e executado (como eu não concordo) mas daí a rebaixar aqueles que exerceram o seu direito de protesto vai um longo caminho. Não deixa de ser curioso que muitos de nós olhem com admiração para a sagacidade da sociedade francesa aquando do acto de protesto, para depois desprezar quando a mesma surge por cá. 

Já provámos, como no caso da TSU durante o anterior governo, que somos capazes de nos unir de forma espontânea. De defender um ideal e uma ideia. De lutar contra outras. E isso deveria ser acarinhado. É, porventura, de salutar (e incentivar!) o surgimento de manifestações e protestos sem o crivo de qualquer cor política e sem o crivo de qualquer central sindical (atenção: a tentativa de aproveitamento deste protesto por parte de algumas forças políticas é vergonhosa). O acto espontâneo de protesto é parte integrante (ou deveria ser) de qualquer Democracia. 

Não deixa, portanto, de ser curioso que num país onde mais de metade da população não vota e outra metade elege políticos condenados por corrupção activa, se fale de forma jocosa daqueles que tiveram coragem de vestir um colete e foram para a rua protestar em defesa dos seus ideais e convicções. Mesmo que não concordemos com eles.

 Até parece que tudo está bem neste pequeno pedaço de terra com vista para o mar. Não está.

Só prova que como povo, e em termos de cidadania, temos que evoluir. 

E muito.

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O dever de memória

Celebra-se hoje um pouco por toda a Europa os cem anos do fim da Primeira Grande Guerra. Em vários países organizam-se paradas militares que têm como objectivo homenagear aqueles que tombaram em tão longínquo conflito. 

E ainda bem que por cá fazemos o mesmo. 

Soldado português parte para a frente Europeia. (C) Joshua Benoliel / Arquivo Municipal de Lisboa

Soldado português parte para a frente Europeia. (C) Joshua Benoliel / Arquivo Municipal de Lisboa

Em Portugal foram poucas as vezes que tal aconteceu. A nossa memória colectiva é claramente selectiva. Escolhemos esquecer alguns episódios da nossa história, por vezes de forma presunçosa e rancorosa, sem nos apercebermos que, com isso, estamos a ser cruelmente injustos para com os nossos compatriotas que neles participaram.

A Primeira Grande Guerra é um claro exemplo. Milhares de portugueses lutaram, perderam a vida, ficaram feridos ou foram capturados naquele conflito. Longe do seu país, fosse na Flandres ou em África. Sem o mínimo de condições e menosprezados pelo poder político, deram o melhor de si - e o melhor de uma geração - em prol do seu país. Hoje homenageamos pessoas, e não actos ou motivações políticas. E é aqui que nós, como Nação, falhamos repetidamente: avaliamos os actos passados à luz da nossa sociedade, do nosso tempo e dos nossos valores. A razão política, a legitimidade do conflito ou a forma como foi gerido não está aqui em questão. Estão sim os nossos compatriotas que nesses conflitos lutam ou lutaram. E é incompreensível este desprezo que a sociedade civil tem para com os seus veteranos e militares no activo. Seja com aqueles que combateram há cem anos atrás, com aqueles que combateram no Ultramar ou com os militares que hoje combatem sob égide das Nações Unidas, União Europeia ou NATO em teatros tão distintos como a República Centro-Africana, o Afeganistão ou o Mali.  

Hoje, como “ontem”, estão ali homens e mulheres que dão o melhor de si, com coragem e altruísmo nas mais difíceis condições em combate, pelo seu país. 

Hoje não se celebra só o fim da Primeira Grande Guerra. Celebram-se todos aqueles que lutaram, ou lutam,  pela nossa Nação. Por nós.

A eles lhe devemos grande parte daquilo que temos. 

E o mínimo que lhes podemos oferecer é Respeito


Não é só correcto. É moralmente obrigatório.


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Dia triste

Lá em baixo as cidades passavam-me rápido pelo canto do olho. Estávamos a trinta e seis mil pés, e, como em tantas outras incontáveis manhãs, falávamos os dois no cockpit sobre o estado da Nação.


Lembro-me bem de dizer que  aquilo que iria definir, do meu ponto de vista, o carácter  e dedicação deste governo constitucional não iria ser a recuperação económica. Não iria ser o défice próximo do zero. Nem tão pouco qualquer outro indicador económico. Não. Para mim o que iria defini-lo seria algo muito mais simples: a recondução da Procuradora Geral da República.

Pela primeira vez nas últimas duas décadas de democracia portuguesa, o Estado português teve à frente do Ministério Público alguém de inegável independência profissional, com um claríssimo sentido de estado e com elevado valor moral. Alguém que, sem medo, liderou e lançou alguns dos maiores e mais mediático processos na justiça portuguesa. Sempre com discrição pessoal. Foi atrás de elementos do PSD e do PS. De elementos da Esquerda ou da Direita. E fê-lo sempre como deveria ser feito: de forma profissional e independente. 

Tivemos, no fundo, alguém que dignificou o seu cargo, dignificou a justiça e dignificou a república portuguesa.

Finalmente.

Nada na lei proíbe a recondução de um Procurador Geral da República, embora esse argumento seja usado para quem defendeu a sua não recondução. “Embora não esteja explícito, é esse o espírito da lei. Que não exista recondução”, afirmam. Dizem que seria pouco ortodoxo. Dizem que ajuda a manter a independência do cargo. O que não deixa de ser irónico tendo em conta que a actual Procuradora foi, repito, inegavelmente  a mais independente das últimas décadas. É ainda mais irónico observar o actual governo usar esse mesmo argumento. Governo esse que chegou ao poder de forma tudo menos ortodoxa, tendo aberto um precedente na democracia portuguesa, ao ter sido eleito um partido não vencedor das eleições, com menos votos.

Ficamos com a ideia que para certas coisas valerá a pena quebrar o “espírito da lei”. Para outras não. 

Pessoalmente não acreditava que Joana Marques Vidal não fosse reconduzida. Pensava - erradamente pelos vistos - que não existiria descaramento (sim, descaramento) em retirar alguém tão competente do seu cargo. Que se existia alguma questão em que deveríamos ser pouco ortodoxos, tendo em conta o bem comum e a credibilização do Estado seria esta. Enganei-me. 

Hoje, para mim, é um dia triste. Perdeu-se alguém independente, profissional e corajoso. E mais uma vez a classe política lançou sobre si mesma um holofote de dúvidas desnecessárias. É que à mulher de César não basta ser honesta. É preciso parecê-lo. E o governo neste momento parece tudo menos honesto. 

Embora não seja algo evidente, Joana Marques Vidal foi das mais importantes figuras que serviu o país nos últimos anos. Recredibilizou a Justiça portuguesa. Passámos a pensar que, afinal, a Justiça chega a todos. Seja a um ex-ministro laranja ou a um ex primeiro-ministro rosa. 

A sua recondução seria a mais óbvia das opções. Qualquer pessoa com honestidade intelectual e sentido de estado não teria dúvidas. Para o bem de todos. Do país. da classe política e da justiça. Mas não foi isso que aconteceu. 

Hoje foi um dia triste.

Mas não o foi só para mim. 

Foi-o para a Justiça. Para o país. Para a Democracia portuguesa.  

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Virtude

Dizia um Furriel na reportagem emitida ontem pela SIC, sobre o curso 127 dos Comandos, durante a recruta do mesmo (anterior ao envio de alguns homens para a República Centro Africana): 

Aqui o objectivo é espírito de corpo. Que eles percebam que, aqui, o individualismo não os leva a lado nenhum.  Logo no primeiro dia em que vestem o uniforme eles entendem que basta um não estar bem e já estão todos mal. Um dia mais tarde, numa situação de combate, também não vão querer deixar um homem para trás.

Curto, claro e conciso. 

Porque é que a sociedade civil tem tanta dificuldade em entender isto? Pior: porque é que hoje em dia glorifica exactamente o oposto: o individualismo, o egoísmo, o ganhar a qualquer custo e, no processo, sacrificar terceiros. É a elevação do “Eu” face ao “Nós”. 

Não me interpretem mal: a competição, o lutar para ser melhor (e o melhor) e para se ser o “primeiro” é de salutar. Ser empreendedor e ambicionar superar os nossos pares é intrínseco à natureza humana. Somos competitivos e não existe volta a dar. Mas sê-lo esquecendo os valores da lealdade, da camaradagem, da entre-ajuda e de sentido de responsabilidade para com o próximo é malicioso e, a longo prazo, perigoso. 

Se não assimilarmos como sociedade o mais básico - este mesmo instinto de lutar por algo superior a nós, de serviço, de ajudar o próximo e fazer algo em prol de todos, nunca deixando o nosso “camarada para trás” - estaremos mais tarde ou mais cedo condenados à extinção como grupo. 

Militares portugueses na República Centro Africana // Foto de artigo: TACP da Força Aérea Portuguesa // (c) EMGFA

Militares portugueses na República Centro Africana // Foto de artigo: TACP da Força Aérea Portuguesa // (c) EMGFA

Costumava pensar, ingenuamente admito, que não entendia o desprezo revelado por parte da sociedade civil à instituição militar. Não entendia o que (n)os poderia irritar num bando de gajos que juraram com a própria vida fazer tudo por tudo para (n)os defender. Agora entendo que em vez de estar a tentar perceber a causa desse facto, o deveria ter encarado como sintoma. 

Sintoma de como todos nós estamos aos poucos e poucos a ficar podres

E têm de ser uns “putos” de 18 anos de boina na cabeça a provar que afinal ainda há muita virtude por aí. Ainda há muita coragem por aí. Ainda há verticalidade e integridade por aí. A instituição castrense pode ter muitos defeitos… mas tem com certeza inúmeras virtudes. Daquelas que nos fazem imensa falta.  

Cento e sessenta homens podem não conseguir salvar um país. Podem até não conseguir ter um impacto significativo naquela nação no centro de África. Mas relembram certamente dez milhões de portugueses de algo que parece perdido em nove séculos de Portugal: 

Camaradagem. União. Espírito de corpo. 

E se todos nós, como povo, pensássemos assim, em equipa, viveríamos certamente num sítio melhor. 

Muito melhor. 

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É assim que somos solidários?

Como povo tivemos, e temos, momentos altos. Mas por vezes conseguimos dar razão a quem nos chama de mesquinhos. 

Recentemente foi anunciado que Portugal iria contribuir para ajudar os seus parceiros europeus no combate a incêndios florestais, contribuindo com bombeiros e algumas aeronaves.

Ao ler os comentários a algumas notícias ou a assistir a uma entrevista feita na Sic Notícias onde o jornalista de forma insistente perguntava "mas quanto custa? ", confesso que fico incrédulo. Mais, confesso que sinto vergonha. O que se passa com alguns dos meus compatriotas? 

Não há nenhum país que tenha sido mais ajudado em alturas de crise de incêndios florestais como o nosso. Bombeiros, aeronaves e veículos espanhóis, franceses, italianos, gregos, croatas, marroquinos, russos, chilenos entre outros, têm combatido, suado e sofrido ao lado dos portugueses nos últimos anos em território nacional. Têm, convém lembrar, falecido ao lado dos nossos compatriotas. 

E quando os outros estão em apuros, quando os outros precisam de nós, é esta a preocupação? Quanto custa? 

É assim que somos solidários

E se os espanhóis, franceses, italianos, gregos, croatas, marroquinos, russos e chilenos pensassem igual? 

Provavelmente já não haveria fogos em Portugal. 

Tinha ardido tudo. 

Afinal não somos assim tão diferentes

Em Espanha, aqui ao lado, o governo caiu resultado de uma moção de censura sem precedentes na história do país vizinho. Itália está ainda (provavelmente sem surpresa) envolta em caos político, com a possível formação de um novo executivo em breve. E em Portugal a dívida pública atingiu os 250 mil milhões de Euros, aproximadamente 126% do produto interno bruto português, facto este que, independentemente da perspectiva, é um péssimo presságio para o futuro nacional. 

Hoje não faltam razões para ser notícia. E todas elas de importância clara para todos nós. 

Mas parece que, por aqui no nosso país, as preocupações são bem diferentes. Quem passar os olhos pela televisão ou dispensar cinco minutos para ler um jornal constata que, afinal, o único problema parece ser futebol. Não como notícia de rodapé. Não como notícia impressa a meio de um jornal. Nem sequer como notícia de secção desportiva. Mas como infindáveis horas de emissão em directo, de debates, de opinião pública. Se dúvidas persistissem que, como povo, temos as prioridades trocadas o dia de hoje esclareceu-as. 

Mas tudo isto não é grave por se tratar de futebol. Já sabemos que nos está no sangue este deporto. Que vibramos com ele e que é, para todos os efeitos, o escape de muitas frustrações nacionais. Contra mim falo. Vibro, grito e sofro como qualquer um. O grave não é o tema. 

Grave é o que isto comprova: que afinal, não somos tão diferentes dos nossos aliados norte americanos. 

Como Europeus gostamos de exibir uma espécie de superioridade moral face aos senhores que moram do outro lado do Atlântico. Populismo? Aqui? Jamais. Nunca seria possível eleger um primeiro-ministro com as características do presidente norte-americano. 

Pois bem, estamos há semanas a discutir um presidente de um clube desportivo, as suas atitudes e as suas tomadas de decisão. Baseadas, há que dizê-lo, em manipulação, ameaças, mentiras e populismo, criando o mesmo ambiente de crispação e de divisão nos seguidores desse mesmo clube que foi criado nos eleitores norte-americanas. O modus operandi é perigosamente semelhante. Quase idêntico e, curiosamente, com os mesmos resultados. E isto tudo, convém relembrar, falando apenas de futebol.

Somos mais maduros. Mais conscientes. Convencidos, dizemo-lo a nós próprios sem hesitação. Esta nossa arrogância prova-nos exactamente o contrário. Somos imaturos e irresponsáveis como povo. Cultivamos – em todos os sectores com responsabilidade de educação social – uma ignorância colectiva. 

E se futebol serve como barómetro para o resto do país, o futuro é tudo menos risonho. 

Porque se há algo que todo este “circo” prova é que o surgimento de um político populista não é uma questão de possibilidade. É uma questão de tempo. 

E aí? Aí o que está em causa já não é uma bola. 

São as nossas Vidas

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