Lá em baixo as cidades passavam-me rápido pelo canto do olho. Estávamos a trinta e seis mil pés, e, como em tantas outras incontáveis manhãs, falávamos os dois no cockpit sobre o estado da Nação.
Lembro-me bem de dizer que aquilo que iria definir, do meu ponto de vista, o carácter e dedicação deste governo constitucional não iria ser a recuperação económica. Não iria ser o défice próximo do zero. Nem tão pouco qualquer outro indicador económico. Não. Para mim o que iria defini-lo seria algo muito mais simples: a recondução da Procuradora Geral da República.
Pela primeira vez nas últimas duas décadas de democracia portuguesa, o Estado português teve à frente do Ministério Público alguém de inegável independência profissional, com um claríssimo sentido de estado e com elevado valor moral. Alguém que, sem medo, liderou e lançou alguns dos maiores e mais mediático processos na justiça portuguesa. Sempre com discrição pessoal. Foi atrás de elementos do PSD e do PS. De elementos da Esquerda ou da Direita. E fê-lo sempre como deveria ser feito: de forma profissional e independente.
Tivemos, no fundo, alguém que dignificou o seu cargo, dignificou a justiça e dignificou a república portuguesa.
Finalmente.
Nada na lei proíbe a recondução de um Procurador Geral da República, embora esse argumento seja usado para quem defendeu a sua não recondução. “Embora não esteja explícito, é esse o espírito da lei. Que não exista recondução”, afirmam. Dizem que seria pouco ortodoxo. Dizem que ajuda a manter a independência do cargo. O que não deixa de ser irónico tendo em conta que a actual Procuradora foi, repito, inegavelmente a mais independente das últimas décadas. É ainda mais irónico observar o actual governo usar esse mesmo argumento. Governo esse que chegou ao poder de forma tudo menos ortodoxa, tendo aberto um precedente na democracia portuguesa, ao ter sido eleito um partido não vencedor das eleições, com menos votos.
Ficamos com a ideia que para certas coisas valerá a pena quebrar o “espírito da lei”. Para outras não.
Pessoalmente não acreditava que Joana Marques Vidal não fosse reconduzida. Pensava - erradamente pelos vistos - que não existiria descaramento (sim, descaramento) em retirar alguém tão competente do seu cargo. Que se existia alguma questão em que deveríamos ser pouco ortodoxos, tendo em conta o bem comum e a credibilização do Estado seria esta. Enganei-me.
Hoje, para mim, é um dia triste. Perdeu-se alguém independente, profissional e corajoso. E mais uma vez a classe política lançou sobre si mesma um holofote de dúvidas desnecessárias. É que à mulher de César não basta ser honesta. É preciso parecê-lo. E o governo neste momento parece tudo menos honesto.
Embora não seja algo evidente, Joana Marques Vidal foi das mais importantes figuras que serviu o país nos últimos anos. Recredibilizou a Justiça portuguesa. Passámos a pensar que, afinal, a Justiça chega a todos. Seja a um ex-ministro laranja ou a um ex primeiro-ministro rosa.
A sua recondução seria a mais óbvia das opções. Qualquer pessoa com honestidade intelectual e sentido de estado não teria dúvidas. Para o bem de todos. Do país. da classe política e da justiça. Mas não foi isso que aconteceu.
Hoje foi um dia triste.
Mas não o foi só para mim.
Foi-o para a Justiça. Para o país. Para a Democracia portuguesa.
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