Deve ser Photoshop

"Deve ser Photoshop". Deve deve. Era isso que eu pensava sempre que via imagens das Maldivas. Que rica forma de promover um local, "falseando" as fotografias. 

Demasiado azul. Demasiado bela. Demasiado... perfeita. Um sítio assim não pode, não deve certamente, ser real. 

Mas é. E não é Photoshop. 

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(Para os puristas... há para aqui um toquezinho de snapseed!)

O meu amigo buraco

Ó velho amigo que regressas com saudade... gosto em ver-te! Tal como todos os bons amigos, regressas sem avisar, ano após ano, para me fazer uma surpresa. Estás sempre ali no mesmo sítio, no cruzamento à saída da minha casa.

Avenida Duque de Ávila com a estação da Carris, Arco do Cego, 1940.Eduardo Portugal, in Arquivo Fotográfico da C.M.L

Avenida Duque de Ávila com a estação da Carris, Arco do Cego, 1940.
Eduardo Portugal, in Arquivo Fotográfico da C.M.L

Os meus pneus tratam-te por “tu”. E iria jurar que já te vi com uma das minhas jantes a beber uma mini enquanto passava o Nacional-Benfica na Sport TV.

Impressionante esse teu ritual, digno do mundo animal – tal e qual hibernação – em que todos os anos, todos, teimas em aparecer sempre que caem as primeiras chuvas.

Penso que saibas que não sou engenheiro civil, muito menos engenheiro de estruturas. Não tenho experiência em planeamento urbanístico... e nunca trabalhei em construção civil. Mas arriscarei afirmar que voltas sempre, saudoso e contente, porque alguém não está a fazer o trabalho que devia.

Não me leves a mal. Gosto da tua companhia. Gosto de te apresentar com pompa e surpresa aos meus amigos. “Olha... ali está ele!”, digo com expressão efusiva no rosto. Admiro igualmente a forma como treinas as minhas aptidões automobilísticas, apanhando-me de surpresa naqueles finais de tarde em que regresso, cansado, ao meu pouso.

Mas como qualquer bom amigo, também tu meu caro buraco, por vezes me deixas zangado. Incapaz de conter um expressivo “Fodass” ou um surpreso “Mas que caralh....” que é seguido atentamente por aquele senhor de setenta e poucos, que da passadeira olha para dentro da minha viatura como quem olha para a jaula dos tigres. “Gente mal educada” pensará certamente.

Sim meu companheiro! A partir de hoje estamos de relações cortadas! E até que tu tenhas um entendimento com os teus amigos da Câmara Municipal de Lisboa, passarei a chamar-te, com a dignidade que a ocasião impõe, de “cabrão”.

Cabrão do buraco! 

ALEX

Os Açorianos encaram o mau tempo como um piloto encara a turbulência. Inevitável. Algo chato mas inerente à vida insular. Sem fuga possível. Habituados a ter as quatro estações do ano num só dia, o de hoje não havia de ser diferente. 

Alex. Que porra de nome para um furacão. 

Foto (c) Força Aérea Portuguesa

Foto (c) Força Aérea Portuguesa

Todos nós – pelo menos deste lado de cá da “banheira” – reagimos com, no mínimo, alguma indiferença. Mais uma tempestade. Certamente comum para o Atlântico central. Só as ocasionais reportagens televisivas nos fazem reflectir um pouco mais.

Quando servi na Esquadra 751 dizíamos entre nós, com orgulho e típico peito inflamado de aviador militar, que “quando mais ninguém voava nós íamos lá”. Rodas no ar. A enfrentar cruelmente os elementos com uma máquina que a cada rotação do rotor nos pedia furiosamente ar mais calmo. 

E no presente não haveria de ser diferente. Com orgulho, não, com muito orgulho, vejo que hoje, nos Açores, quando mais ninguém voa, eles estão lá. A voar. De ilha para ilha. Sem questionar. Sem hesitar. Sem por em causa que aquela, a mais nobre das missões, merece o melhor que cada um deles tem para dar. 

Gajos que, no preciso momento em que escrevo estas linhas, estão na ilha das Flores a aguardar a ordem para regressar com a mais preciosa das cargas: uma vida humana. 

É bom que não esqueçam isso. Quando um dia, por qualquer razão que seja, se lembrarem de os criticar – por serem militares, por serem os “chulos”, por serem uns “inúteis” – lembrem-se que quando um furacão chega, quando as barras marítimas fecham, quando os aviões ficam no chão, quando tudo está mesmo na merda... eles estão lá... 

...Eles estão lá.

E não pedem nada em troca. Não pedem, mas merecem

Nem que seja o nosso mais profundo respeito

Bom voo camaradas. 

(c) Esquadra 751

(c) Esquadra 751

(c) António Tavares

(c) António Tavares

Pilotos mimados

(Escrito a 28 Dezembro de 2014)

“Privilegiados! Nem mais um tostão para a TAP.” É engraçado como a história nos persegue. Na minha (curta) carreira de aviador passei de, passo a citar, “militar chulo do estado” para “piloto mimado da TAP”. Começo a pensar que, aos olhos dos meus compatriotas, escolhi a profissão errada. Ou então tenho mau carácter. Por mais dedicados que sejamos. Por mais sacrifícios que façamos. Por mais exigentes nos tornemos ou por mais profissionais que ambicionemos ser, seremos sempre um “chulo” ou um “privilegiado”. 

Fantástica foto de Carlos Seabra. Todos os direitos reservados. 

Fantástica foto de Carlos Seabra. Todos os direitos reservados. 

Em Portugal vivemos um determinado complexo de “(in)felicidade”. Se somos felizes naquilo que fazemos então não devemos estar a fazer o nosso trabalho. É, aliás, como se a palavra “infelicidade” fosse sinónimo de “trabalho” num qualquer dicionário de língua portuguesa. E se não formos infelizes algo está muito mal. 
Perdi conta às vezes que me disseram “pagam-te para te divertires”. “Efectivamente”, retorquia eu, “que culpa tenho eu de gostar do que faço?”. Ambicionei isso. Procurei-o. Era o meu sonho de criança. E lutei por ele. É, penso eu, aquilo que qualquer um de nós procura fazer.
Mas, como em tudo na vida, as pessoas esquecem-se sempre de todos os aspectos menos positivos. As madrugadas. A falta de rotina. O não ter horários. O treino constante. A avaliação permanente. A pressão subjacente. O requisito físico, e mental, obrigatório. E acima de tudo, a responsabilidade. Essa que é enorme. Seja ela a de ser a última esperança de sobrevivência de alguém, do meio do oceano, no meio de uma tempestade às três da manhã ou a de levar 150 almas em segurança ao seu destino. Mas tudo isso, pelos vistos, não interessa. Só interessa aquele fato de voo ou aquela farda tão elegante. 

A aviação ensina-nos e molda-nos um espírito de muitas formas. E uma das grande lições que nos transmite, que nos incute desde cedo, que nos fica gravado na alma é que devemos sempre nivelar por cima. Nunca por baixo. Devemos sempre procurar a excelência. Porque se não o fizermos, os resultados, nesta profissão, poderão ser desastrosos. E muita dessa mentalidade, desse espírito, se pode aplicar à Vida em geral. 

Não me identifico com esta tendência tão recente de alguns meus compatriotas de quererem nivelar por baixo. E de assumirem que, como profissional, não mereço mais do que “mimado” como adjectivo. 

Desculpem-me se sou feliz com o que faço. Mas isso não vai mudar. Nunca

Ceuta

(Escrito a 21 de Agosto de 2015)

Faz hoje - 21 de Agosto - 600 anos que um pequeno reino europeu encheu o peito de ar, vestiu uma armadura e com um punhado de tomates considerável atravessou o mar e foi conquistar Ceuta.

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Esta data não é importante apenas porque representa o início daquilo a que nós designamos de Descobrimentos. E muito menos por ter sido uma conquista pelas armas. 

É importante porque nos relembra algo com 600 anos. E ter 600 anos de história é obra! E antes desses 600 ainda existiram quase outros 300. Já andamos por cá faz um tempo

É importante porque nos galvaniza com o facto de que uma pequena nação entalada entre o mar e um reino de onde nem sequer aparecem bons casamentos ser capaz de fazer coisas grandiosas. 

É importante porque nos recorda que um dia, nós, “nação valente e imortal”, fomos donos disto “tudo”, fruto apenas da coragem, inteligência e visão demonstrada na altura.

É importante porque nos deveria elucidar para o facto de Portugal ser mais que os últimos 30 anos. São quase 900! 900 anos em que sempre que foi preciso levantámos a voz e dissemos a quem quer que viesse para aqui arranjar confusão que a coisa ía dar para o torto!

É importante porque nos deveria motivar ao saber que somos feitos do mesmo material, do mesmo sangue, da mesma fibra dos gajos que há 600 anos se meteram nuns barcos e foram ali para sul dos Algarves fazer das suas e dar novos mundos aos mundos.

E se eles o conseguiram... nós, à nossa maneira, também o podemos fazer. 

Um pouco de orgulho nacional não fica mal a ninguém. E não, hoje não joga a selecção.

www.merlin37.com/ceuta

Defesa aérea

(Escrito a 31 de Outubro 2014)

“Mas o que é que vocês fazem na tropa?”. Perdi a conta às vezes que ouvi esta pergunta. 

E, como eu, estou certo que todos aqueles que lá Serviram se viram deparados numa altura ou outra, com comentários semelhantes. Pacientemente – coisa às vezes rara na minha pessoa – lá tentava explicar tudo aquilo que fazíamos. Ou parte. Ou nada . Às vezes limitava-me a beber mais um golo naquele Gin fresquinho. Não valia a pena. 

Foto: Força Aérea Portuguesa

Foto: Força Aérea Portuguesa

E estando na Força Aérea surgia, mais tarde ou mais cedo, um “porque é que Portugal precisa de F-16? É para vocês brincarem?”. 

Bem. Parece que esta semana já ninguém pergunta se querem brincar. 

Acordei com a música “Russians” de Sting na cabeça. As (muito) recentes notícias da presença de aeronaves russas nas zonas de responsabilidade portuguesa – e consequente intercepção pela Força Aérea Portuguesa das mesmas – veio como que acordar alguns compatriotas. Pondo de parte o excessivo mediatismo e alarmismo de algumas notícias, a utilidade de ter um sistema efectivo de defesa aérea deixou de estar em causa. Afinal não estamos naquele canto seguro da Europa. Afinal é possível entrar em espaço aéreo de responsabilidade nacional. Afinal convém ter malta treinada para isto. Daquela que custa muitos milhares a treinar. 

A efectiva ameaça militar destas incursões é baixa. Mas é representativa de como em geopolítica se joga um bom poker. Ou xadrez no caso russo, como dizia Kissinger. Portugal tem de definir politicamente – de uma vez por todas – qual a posição e qual a capacidade que queremos ter no mundo presente. Se queremos ser jogadores de xadrez, ou se queremos estar na plateia a contar os minutos. Em geopolítica não existem espaços vazios. Não existe o zero. O vazio. Se não formos nós a ocupar – e a defender – o nosso espaço alguém o fará por nós. Se não forem os nossos F-16 serão os F/A-18 espanhóis. Ou os EF2000 ingleses. E aí não faltariam aqueles que criticariam a nossa falta de capacidade. Os mesmos que provavelmente agora criticam o facto de ela existir. Paradoxo nacional.

Temos a maior zona de responsabilidade aérea – e naval – de toda a Europa. A nossa plataforma continental está prestes a tornar-se gigantesca. A nossa ZEE é imensa. E o que é nosso deverá ser defendido por nós. Com Homens. Com treino. Com equipamento. Esse que dizem que sai caro. No mar, no ar, ou em terra. 

Quando alguém me pergunta, indignado, “porque raio temos 2 submarinos?” eu geralmente respondo “Epah, também não entendo, devíamos ter quatro!”. 

E quatro era pouco. 

Auschwitz

“HALT/STOJ”. 


É isto que podemos encontrar cravado em diversos sinais espalhados por Auschwitz. Ironia. Ironia das mais puras. Como é que um campo desenhado com “exterminação” em mente se pode ver envolto em tanta regra comum. Em tanto formalismo. Em tanta ordem. Até quem pela morte espera o tem de fazer mediante um certo conjunto de regras sem sentido. A humilhação final. 

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Sempre quis visitar Auschwitz. Não por uma espécie de curiosidade mórbida mas por achar que é uma obrigação moral. Obrigação de não esquecer o pior que a nossa natureza (sub)humana produz. 

E Auschwitz 1, Auschwitz Birkenau ou qualquer outro campo semelhante tem locais, espaços e atitudes que nos fazem reflectir. 
Uma câmara de gás temporária, pouco maior que o meu apartamento onde 17.000 pessoas foram assassinadas. Como se um local assim se pudesse chamar de “temporário”. Facto que atesta à dimensão da demência.
Paredes repletas com fotografias das caras daqueles que um dia lá entraram mas de lá não saíram. Faces receosas, consumidas pelo medo. Mas também faces desafiantes como quem perante a barbárie a encara com coragem. Com verdadeiros tomates. 

Campos em que mais de 400.000 pessoas foram “sepultadas” como cinza ao vento. Ali, naquele chão, debaixo dos nossos pés, o maior cemitério do mundo. Sem campas, mas profundamente mais impactante do que qualquer catedral. Profundamente mais chocante. Profundamente mais memorável. 
Visitantes que, por vezes, não se apercebem que este não é um local turístico. Mas um local de memória. Daquela que é digna do nosso mais profundo e sentido respeito. 

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Mas não. Não é nada disto que mais choca em Auschewitz. Não mesmo a industrialização da Morte que aqui existiu. Elevada ao seu expoente máximo. A forma cruel, fria e metódica como era encarada a solução final. 

O que mais choca em Auschwitz é a sua actualidade. 

Rússia. China. Cambodja. Ex-Jugoslávia. Ruanda. Darfur e Sudão do Sul. Síria e Iraque. Tudo no espaço de uma geração.

Fodass”, é o que penso enquanto abandono o campo ao fim do dia, com o sol no horizonte. “Não aprendemos nada nestes últimos 70 anos.”

 

Merlin por uma última vez

O último voo numa aeronave é sempre marcante. Se esse voo for igualmente o último numa esquadra passa a memorável. Se for, também, o último numa instituição torna-se inesquecível. 

Comigo não seria diferente. EH-101. Esquadra 751. Força Aérea Portuguesa. 

A juntar a isso tudo, se alguém registar esse momento de forma fantástica, melhor ainda! 

Todos os direitos reservados a (c) Luís Maia.

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Homenagem

(Escrito em Janeiro de 2015)

Acabo de ver o filme “American Sniper”. Pondo de parte o presente “americanismo” a parte final do filme (início dos créditos) fez-me fazer um paralelismo com a realidade nacional. Na forma como nós, portugueses, honramos quem serviu o seu país. 
 

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Faz um anos, ainda era eu oficial da Força Aérea, fui nomeado para comandar um pelotão na guarda de honra em um funeral de um General que tinha falecido. Verdade seja dita, para nós, pilotos, este género de serviço eram tudo menos desejado. Queríamos voar, voar e voar. Os nossos treinos de ordem unida era tudo menos frequentes. Mas antes de pilotos éramos militares. E ainda bem que assim o é. 


No dia estabelecido lá estávamos. Dois pelotões, impecavelmente formados, à entrada do cemitério do Alto de São João. Na hora estabelecida – e estando a urna a escassos metros da entrada do cemitério – a polícia parou o trânsito e formámos na estrada para prestar a devida homenagem com três salvas de G-3. 
Qual não é o meu espanto quando um popular, sentado na paragem de autocarro mesmo ao lado da formatura, começa a vociferar a plenos pulmões a sua indignação. “É uma vergonha” dizia. “o que é que aquela pessoa tinha a mais que ele para estar aquilo ali montado”. “Estou à espera do autocarro e quero ir para casa”. Entre outros comentários bem menos agradáveis. 
É-me impossível de descrever a raiva que me invadiu naquele momento. Vinda do mais fundo do meu ser. Daquela que nos consome. Que nos faz morder o lábio. Mas a disciplina e a rigidez militar fez que não me mexesse. Que não abrisse a boca. Nem eu nem nenhum dos militares ao meu lado. E prestámos a nossa homenagem. Não demorou mais do que três minutos. Três minutos que alguém não estava disposto a abrir mão como sinal de respeito a alguém que serviu o seu país durante mais de 40 anos. Alguém que lutou pela sua Pátria. Alguém que viveu em combate em meu nome, em nome de todos nós, em nome da nação. 

A forma como tratamos quem nos serve a todos, como país, adefine-nos como povo. Militares, polícias, bombeiros, são tantas vezes injustamente acusados em praça pública. São os chulos. Os que nos “roubam o dinheiro dos impostos”. Quando na realidade estão lá, no duro, todos os dias, dispostos a dar o melhor de si por todos nós. E mesmo que esse respeito não existisse em vida, ao menos que existisse na hora da partida...

Vejo o final do filme. Aquela homenagem nunca seria possível no meu país. E relembro aquele momento de há anos. Baixo a cara. Desta vez não de raiva. Mas de vergonha.

Estou sim? Feliz Natal!

O telefone toca persistente e imune ao dia sinistro que reina lá fora. “Porra”, penso, “se fosse o alerta ligavam-me para o telemóvel, não?”. Activar o alerta por linha fixa é pouco comum fora de horas, especialmente em dias como este: feriado.

“Estou sim?” 

(c) Paul Wex

(c) Paul Wex

Durante a minha passagem pela Força Aérea Portuguesa, e enquanto operacional, passei apenas um Natal completo em casa. E passei-o, provavelmente, porque coincidiu com a minha mudança de frota, do Alouette 3 para o EH-101 “Merlin”. Ano interessante esse. Bacalhau, azeite e manuais de voo na mesa. 

Enquanto estive colocado na base aérea de Beja, por mera casualidade, azar ou outra qualquer razão que me é alheia, fiquei sempre escalado no período natalício. Já na Esquadra 751, fruto do pequeno grupo que éramos e do enorme empenho operacional que tínhamos, o Natal ou Ano novo “calhava a todos”.  Três destacamentos permanentes, quatro tripulações de alerta. Ninguém escapava.  

E foi num desses alertas, dia 24 de Dezembro, que o telefone toca naquele final de tarde fria na Base Aérea do Montijo. 

Do outro lado uma voz cansada, mas firme, testemunha provavelmente de uma longa vida: “Boa noite caro Tenente, gostaria de lhe desejar um Feliz Natal a si e à sua tripulação”

É das coisas que mais me arrependo, mas devo confessar que não me recordo do nome, do posto, ou das datas em que serviu. Do outro lado da linha encontrava-se um ex-militar que naquela Esquadra tinha servido. Fazia anos. Décadas. E, vim a saber mais tarde, que todos os anos ligava pessoalmente para a Esquadra para desejar um feliz Natal a todos os que estivessem de alerta naquele dia. Todo o santo ano.  

Décadas separavam-nos. A mim e a ele. Mas a camaradagem, o espírito de corpo, esse, pelos vistos, mantinham-se inalterado. 

Nos diversos Natais em que passei a trabalhar na Esquadra 751 sempre recebi aquela chamada. E ela produzia em mim sempre o mesmo efeito: enchia-me de orgulho. De felicidade. Felicidade em ver que ali estava alguém que - como eu - se sentiu marcado por aquela casa e que fazia questão de ligar, de perder um pouco do tempo do seu Natal, para desejar Boas Festas aos seus camaradas que não podiam estar em casa, com a família. Uma atitude que, confesso, nunca vi reproduzida pela cadeia de comando a nível superior, fora das esquadras de voo..

Algo tão simples, tão inócuo, tão vulgar mas que naquele instante, naquele dia, fazia todo o sentido no Universo. 

A melhor prenda de Natal que alguém de alerta, longe de casa, poderia receber. 

Onde quer que ele esteja agora... Feliz Natal camarada. 

www.merlin37.com/feliznatal751

Spotter

Faça chuva, faça sol. Faça vento, frio ou um calor infernal. Ele estará sempre por lá. O “Spotter”. O entusiasta da aviação. Aquele colete amarelo fluorescente do lado de lá da vedação que cumprimento sempre que posso.

Foto (c) André Nobre

Foto (c) André Nobre

A minha paixão pela aviação é tão antiga como eu. Está lá desde que me lembro. Vibrava quando via um A-7 a cruzar os céus da Beira Interior. Saltava de gozo quando um Lynx da aviação naval teimava em “surfar” as ondas da Caparica. Desesperava por um festival aéreo. O cheiro. O som. O espírito. Tudo naquilo mexia comigo.
E tive o privilégio de passar para o “lado de lá da barricada”. Força Aérea, TAP, mas sempre o mesmo espírito. Aquele de miúdo, de entusiasta.

Muitas vezes ignorados, gozados até, os “spotters” e os entusiastas fizeram mais pela aviação, e pela divulgação da mesma, como ninguém. Por vezes incompreendidos, a paixão que demonstram, que os leva a acordar às quatro da manhã para irem ver uns malucos das máquinas voadoras a 600km de distância devia ser um exemplo para todos, inclusive para quem trabalha “de dentro”. Eles fotografam, eles escrevem, eles divulgam e fazem-no apenas por gosto. Por amor. Sem esperar nada em troca.

A “malta” da minha geração que, como eu, se juntava para ir ver uns aviões são hoje fotógrafos de renome. Jornalistas e escritores para publicações internacionais. Escrevem livros e editam vídeos com centenas de milhares de visualizações. Criam fóruns e blogs que se tornam referência. Levam o nome, ou devo dizer “elevam” o nome, da indústria, das esquadras de voo, das empresas cada vez mais alto.

Em Beja ou em Pedras Rubras. Em Monte Real ou no Faial. De marmita numa mão e máquina na outra. Com a cara vermelha queimada de tanto sol, de fazer inveja a qualquer inglês que passe dois dias no Algarve. Eles estão lá. É raro encontrar uma dedicação assim.

Pela vossa paixão….

… Obrigado “spotters”!

Chickenhawk

Conto pelos dedos de uma mão os livros que li e voltei a ler, em parte, mais tarde. Mas até hoje apenas um me cativou, por completo, duas vezes: Chickenhawk.

chickenhawk

"Lá está este gajo outra vez com helicópteros" dirá o leitor. Pelo contrário. Não me interpretem mal... Chickenhawk é sem dúvida a bíblia para qualquer piloto de helicópteros e é sem dúvida obrigatório para qualquer piloto. Mas é muito mais do que isso. É um excelente livro, e repito, excelente, mesmo para quem não tenha qualquer relação com o mundo da aviação. 

Robert Mason, ex piloto de UH-1 Huey, deixa-nos um relato nu e cru da realidade da guerra. Como costumamos dizer, "sem espinhas". Sem vergonha. Sem pudor. Sem patriotismos. Uma das mais frontais perspectivas do que foi a guerra do Vietname e o seu impacto em quem ela lutou. 

Não sabem o que ler este Natal? Acabaram-se as dúvidas.

Chickenhawk.

A máquina

35ºC. Beja. Final da manhã. Tempo seco. Aterro o Alouette III no heliporto e já anseio por aquela cerveja gelada no bar na esquadra. Como era natural no período de verão, um Kamov da proteção civil garantia o alerta aos incêndios na base de Beja. A minha aterragem é literalmente à frente do hangar onde este se encontra. Ali estava ele, adormecido.

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Já no bar da Esquadra encontro o comandante do mesmo. Piloto experiente, formado naquela escola: Força Aérea. Com muitas horas de Alouette III tinha sido piloto durante o conflito do Ultramar. E, como manda a tradição aeronáutica, começamos a trocar “estórias”. Ou melhor… eu, maçarico dos maçaricos, apenas oiço, de boca aberta. De entre várias peripécias uma captou-me a atenção: uma recolha de Comandos do mato, na véspera de um dia importante (Natal seria?) em que, ao por do sol, e na última leva de recolha, depararam-se com um problema grave. Aterraram – em território hostil – resolveram o mesmo, descolaram e lá recuperaram os últimos homens no terreno. In extremis.

Porra”. Pensava eu. “Que estória!”

Lembro-me que num dos eventos que a Esquadra 552 organizava anualmente, aberto ao público e especialmente aos ex-militares, falava com um veterano do tempo do Ultramar. Se a memória não me falha teria sido mecânico… operador de helicanhão talvez. Ao aproximar-se de um helicóptero, de uma forma tão gentil como quem acaricia uma mulher, coloca a mão na cauda de um dos helicópteros e começa a chorar. Um choro genuíno. De memória. De emoção. Um choro de quem encontra um velho amigo que o safou de muitas situações há muito tempo atrás.

Não existe provavelmente nenhuma aeronave na Força Aérea Portuguesa com tanta história, “estórias” e poder no imaginário das pessoas como o Alouette III. O pessoal da asa fixa irá sempre refutar esta afirmação (como é apanágio da rivalidade vivida no seio do ambiente militar) mas lá no fundo sabem que é verdade.

Mais de cinquenta anos de história. Combate em três teatros de operação diferentes. Centenas, ou milhares, de pilotos por “ele formado”. Uma máquina infernal, fiável como um carro japonês. Divertida de voar como um kart. Estimada e respeitada por todos aqueles que nela voaram. Máquina de salvação para centenas de militares e civis. Voada por camaradas de outros tempos e deste. O Alouette III é um marco aviação portuguesa.

Mas voltemos aquela “estória” no bar de Esquadra. Perante a minha cara de fascínio, diz-me o comandante de Kamov:

“Mas sabes porque é que te estou a contar esta estória?”
“Não faço ideia!”
“É que o helicóptero com que voei nesse dia foi o helicóptero com que tu voaste hoje.”

E aí senti todo o peso daquela imensa história sobre os meus ombros. O número de cauda estava lá de facto, seria aquele, com um número a mais. O helicóptero, fisicamente, já não seria o mesmo. Já seria quase completamente "novo" com alterações, revisões e peças novas ao longo de décadas. Mas isso não interessa. Era “aquele”. “Aquele” Alouette.

Fiquei sem palavras.

Não é por acaso que o brinde típico na 552 seja “À máquina!”.

E que máquina!

Força Aérea, Pilotos e a política que nunca muda

(Escrito a 12 Outubro 2014)

Dou por mim a olhar para a parede do quarto de forma filosófica. Será que a consigo deitar abaixo com a cabeça? É o que me apetece. É o que me apetece- genuinamente – depois de ler os comentários às notícias sobre a “reunião” dos pilotos militares. 
 

Foto: (c) António Catroga CAVFAP

Foto: (c) António Catroga CAVFAP


Faço desde já a minha declaração de interesses. Fui piloto militar por mais de 8 anos. Foi o meu sonho de criança. Vestir pela última vez o fato de voo foi dos piores momentos da minha existência. E agora vamos ao que interessa. 

O problema? A saída de pilotos militares para o mundo civil. A minha indignação? A atitude – tipicamente portuguesa é certo – de quem critica tudo e todos sem, de facto, criticar o que merece ser criticado. 

Este é um problema que existe há décadas. Como é normal em Portugal, o conceito de “décadas” não é suficiente para resolver um problema. Precisamos, provavelmente, de séculos. A inexistência de pragmatismo surpreende-me. 

Continuamos a pensar – como país, como povo, como grupo – a curto prazo. O país investe milhões na formação de um indivíduo com uma formação muito específica, longa e exigente. Esse indivíduo, ao longo da sua carreira, irá passar por diversas situações de perigo iminente, de exigência extrema, de “stress” levado ao limite da compreensão. Irá passar por períodos longos de ausência familiar, em missão fora do seu país ou da sua zona e, tudo isto, importante não esquecer, após jurar defender o seu país “mesmo com o sacrifício da própria vida”.
Repito. “Mesmo com o sacrifício da própria vida”.
Nunca, pelo menos no tempo em que eu lá estive, nenhuma missão ficou por cumprir. Estivesse chuva, estivesse sol. Em Portugal ou no Afeganistão. Ou como hoje. No Mali ou na Lituânia. E nunca, nunca, ninguém ouvirá esses pilotos dizer que não gostam do que fazem. Pelo contrário. Todos sentem como um privilégio voar como só um aviador militar voa.

E é contra estes indivíduos que a rapaziada se indigna? Contra os pilotos que defendem o espaço aéreo europeu na Lituânia, contra os pilotos que combatem o extremismo islâmico no Mali, contra os pilotos que descolam às três da manhã no meio de um dia de trovoada para resgatar alguém que não conhecem? E tudo isto, convém realçar, ganhando menos que um condutor de um ministro? 

Está na natureza humana procurar uma vida melhor. Em todos nós. Que atire a primeira pedra o primeiro indivíduo que não ponderaria seriamente abandonar o seu emprego por outro que oferece um ordenado quatro vezes superior, mais tempo em casa e melhores condições gerais. Venha o primeiro. E com os pilotos militares teria de ser diferente? Qualquer piloto militar, ou qualquer outra especialidade é certo, cumpre o tempo mínimo que lhe é exigido. oito ou doze anos. Após isso alguns procuram – e bem – uma vida melhor para si e para a sua família. Uns dão o “extra-mile”. Outros não. E que nunca ninguém duvide da sua dedicação e amor à sua Pátria. Dos que ficam ou dos que vão.

Quem eu critico? Eu critico quem deixa esta situação chegar onde chegou. Quem prefere perder vinte pilotos todos os anos e gastar mais a formar outros vinte. Quem prefere encostar pilotos a secretárias por serem milicianos, a deixá-los sair ou voar nas esquadras - trabalho para o qual foram efectivamente contratados. 

Formamos profissionais de milhões, e depois não lhes damos as condições necessárias para que quem quiser continuar continue. A Força Aérea não é uma prisão. É uma instituição constituída por pessoas. Pessoas com um exigente grau de responsabilidade. E como qualquer outra pessoa, também estas têm um limite. 

 

Está na altura de garantirmos que esse limite não é ultrapassado. Está na altura de darmos condições a quem as merece. Não é só moralmente correcto. É economicamente eficiente.

Days gone by

Existem discos que nos surpreendem. Não damos por eles. Que, estando perdidos numa prateleira qualquer, um dia ouvimos parte daquele som e ficamos obcecados por saber, e ouvir, mais. 

Recentemente descobri Bob Moses, e o disco "Days gone by". Álbum de 2015.  

Fabuloso. Simplesmente fabuloso. O single "Too much is never enough" é prova disso. 

Numa palavra? Se fosse puto diria "fixe!" Se estivesse nos meus gloriosos dezoito anos diria "brutal"! Como já passei a fronteira dos "intas" digo: "obrigatório"! 

Dia da criança

Sou um tipo novo. Vá. Semi-novo. E às vezes apercebo-me que já tenho umas quantas “estórias” no baú. E daquelas de que quando me lembro me evoca um sorriso de orelha a orelha. Aturai-me.:

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01 de Junho, dia da criança estávamos em 2011.

Era mais uma daquelas noites de alerta nos Açores em que só pensamos para nós mesmos: “hoje espero não voar”. E claro, o telefone toca.

Fato de voo, botas, água pela cara abaixo, tudo em menos de vinte segundos. Descolamos logo que possível. A missão: um recém-nascido, de sete meses, em estado grave para ser transportado do Faial para Ponta Delgada. Pelo meio iríamos aterrar no heliporto de Angra do Heroísmo para recolher uma incubadora essencial para a sobrevivência do nosso mais pequeno companheiro.
Tempo? Típico dos Açores. Tectos baixos, ventos fortes, chove, não chove, chove, não chove. Radar sempre ligado. Aterramos em Angra do Heroísmo recolhemos a incubadora e a equipa médica. Seguimos para o Faial e por lá ficamos cerca de uma hora, à espera que estabilizem a criança. Descolamos em direção a Ponta Delgada – mais tempo horrível – onde deixamos finalmente o pequeno e a mãe. Regressamos às Lajes com o sol a nascer e com uma camada de nuvens simplesmente fantástica por debaixo de nós. Uma daquelas noites em que os astros se alinharam e o efeito das luzes do helicóptero nos cristais de água fazia as nuvens, ali aos nossos pés, brilhar com as cores do arco-íris. Isto numa noite escura como breu. Foi a noite inteira a voar. Mas nenhum de nós tinha sono. Nenhum de nós estava cansado. Estávamos apenas… com um orgulhoso sorriso.


Orgulho-me de viver numa época, numa sociedade, num país, em que numa noite, em 3 pedaços de terra diferentes perdidos no meio do oceano atlântico dezenas de pessoas se juntaram para ajudar aquela criança. Todos acordaram de madrugada e trabalharam em conjunto – Tripulação do helicóptero, Controladores Aéreos, Médicos, Enfermeiros, Bombeiros, Pessoal do Aeroporto, Combustível, Condutores, pessoal dos hospitais, pessoal de serviço da proteção civil – para que aquele bebé frágil sobrevivesse. Infelizmente, não me lembro do nome dele.

Nunca mais encarei o dia da criança da mesma maneira. Foi, para mim, o dia em que dezenas de estranhos, incógnitos, se juntaram para ajudar um pequeno compatriota a viver mais um dia, mais uma semana, meses, anos… E é essa a memória que vai comigo. Para sempre.


Quem sabe, talvez um dia ele leia este texto.

www.merlin37.com/diadacrianca

Rays of Hope

"Fodass, mas quem é este gajo?" Se há algo que uma tripulação tem de sobra quando está destacada nos Açores são tempos mortos. Pacientemente a aguardar que o telefone toque com notícias de um qualquer naufrágio. E portanto ali estava eu, sentado, no clube de oficiais, a explorar vídeos no Vimeo, quando me cruzei com um nome que nunca mais esqueceria: Paul Wex.

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Vídeo atrás de vídeo devorei-os a todos. Headsets na cabeça, o mundo que me rodeava era-me indiferente. Passava-me, literalmente, ao lado. "Este gajo é um génio". E é quando se dá aquele  momento "Eureka" (eu também os tenho, quem diria!). "E se este tipo produzisse um filme sobre a Esquadra?" 

"Ele nunca vai aceitar". "É difícil". "É estrangeiro". "Um gajo tão bom nunca virá, e certamente nunca a custo zero". Todos estes pensamentos me amaldiçoaram o julgamento. Mas se há algo que aprendi com os meus ingénuos dezassete anos e saídas nocturnas foi "que o não é garantido o sim é bem vindo".

Ali, naquele momento, escrevi-lhe um e-mail. Peguei no telefone e liguei a um pobre Major oficial de relações públicas a explicar-lhe a ideia (digo pobre porque para me aturar ele tinha - e tem! - uma paciência do outro mundo. De espírito era exactamente o oposto: dos melhores, mais fantásticos e pró-activos militares com quem tive o prazer de me cruzar). 

E o homem sonha. E a obra nasce. 

Paul Wegschaider. Austríaco de Graz, a segunda maior cidade daquela nação. E-mail após e-mail, chamada após chamada, foi combinada e coordenada a vinda do próprio. Uma semana com a Esquadra 751, a voar e a conviver connosco. E a filmar. Por vezes de uma forma que nos punha a pensar: "Mas que é que este gajo está a filmar daquela maneira?". Mas é essa a marca dos gajos bons. Eu, parte integrante da classe dos gajos normais, não entendia ao princípio. Quando vi o resultado final não evitei uma gargalhada de felicidade pura. 

Orgulho-me de ter servido naquela esquadra numa altura em que ela se viu munida de uma quantidade de indivíduos excepcionais. Não só como pilotos, recuperadores-salvadores, operadores de sistemas ou mecânicos. Mas como profissionais e pessoas que queriam fazer mais, criar, andar para a frente. Muitas vezes contra a infernal máquina burocráticas das grandes instituições. E isso respirava-se no ar. Sentia-se. Foi, sem dúvida, uma "época de ouro". E eu tinha naquele gabinete de relações públicas da Esquadra 751 dois dos mais fantásticos oficiais com quem trabalhei na Força Aérea. Na altura Tenentes, agora Capitães. E que ainda hoje lá estão. Umas máquinas. E sem eles este pequeno pedaço de gelado santini cinéfilo também não seria possível. 

Mas chega de conversa fiada. Disso estão vocês fartos.

Vale sempre a pena relembrar o que é bom. E este filme é muito bom. Senhores e senhoras, do génio de  Paul Wegschaider, Rays of Hope


It´s not over until it´s over!

Se perguntarem a qualquer piloto militar português qual a situação que mais stress lhes incutia durante o curso estou certo que a resposta será unânime. Clara como água. “Emergência da manhã”.


A “emergência da manhã”, cruelmente presente ao longo da instrução de um aluno piloto, consiste na resolução simulada de uma situação de emergência hipotética apresentada ao aluno durante o briefing de esquadra. Significa isto que todos os pilotos instrutores e alunos estarão presentes, e que o “feliz” contemplado terá de resolver, de pé, à frente de todos os presentes a referida situação. É geralmente o pico de tensão do dia e todos têm uma forma muito peculiar de lidar com isso. Fosse silêncio. Fosse um tremor que não teimava em parar. Fosse mesmo um ocasional vómito.

Durante toda a minha permanência na Esquadra 101 “Roncos”, fui chamado um total de quatro vezes. No meu último dia na Esquadra, tendo já terminado o meu curso, aguardando apenas a transferência para a Esquadra 552 “Zangões” onde iria aprender a arte de voar helicópteros, dirigi-me para o briefing de esquadra com uma descontracção pouco comum. Encarava – erradamente – a minha presença no briefing apenas como uma situação passageira, uma mera acção protocolar.Terça-feira. Meio de Outubro. Dia fabuloso lá fora. Oiço aquela som típico de aviso de início de briefing. Aquele som que tanto “terror” me tinha inspirado, que tanto suor me tinha feito derramar e que tanta ansiedade provocava. Mas não. Hoje não…
Sento-me no meu lugar habitual. Dá-se início ao briefing. Este conta com um resumo da actividade aérea diária planeada, da contabilização de presenças dos instrutores e alunos tal como diversas outros aspectos operacionais. Calmo, lá permanecia no meu lugar a,confesso, pensar no que me esperava nos helicópteros.
Aproxima-se a altura da emergência e um instrutor da Secção de Uniformização e Avaliação (SUA) sobe ao palanque e inicia a exposição da emergência.

“Estamos a Flight Level 070, a aproximarmo-nos do GAIOS, em
contacto com Lisboa TMA…” e… bem, o resto nem ouvi.

Eu, calmo, de cabeça baixa pensava em rotores. Por mais alheados que estejamos do mundo exterior, existem palavras, sons ou músicas, que, ao ouvirmos, mesmo inconscientemente, nos despertam a atenção. Uma dessas – e isso aprende-se rápido na Esquadra 101 – é o nosso nome.

“Aspirante Nunes”.

Congelo. Conseguia ouvir uma mosca bater as asas.
Movo ligeiramente cabeça à minha volta e noto que todos olham para mim. Silêncio aterrador. Olho para o instrutor no palanque.

“A aeronave é do Aspirante Nunes.”

Sai-me, baixinho:

“Como, desculpe?”
“A aeronave é sua…”

Ali, naquele momento, foi como se tivesse sido atingido pelo Alfa- Pendular (comboio que liga as principais cidades em Portugal)
Escapa-me um sincero:

“Porra… mas eu já acabei isto!” -Felizmente só ouvido por aqueles que estavam ao meu lado.

“Bem. Ou vai ou racha”, penso.
Levanto-me, e com a típica descontracção de quem sabia que daqui a três horas estaria noutra Esquadra, faço o melhor que posso. E, curiosamente, foi a melhor resolução que tive durante toda a minha permanência na Esquadra 101. Coisas do destino. Lição de vida.

A aviação militar é feita destas pequenas lições. Nunca baixar os
braços, nunca descontrair, nunca facilitar. É-nos incutido na alma, gravado na nossa personalidade de aviador. Para nunca esquecer. Mais tarde, como comandante de EH-101 “Merlin” vim a dar muito valor a esta (e outras) lição(ões).

“It´s not over until it´s over”!

Quando a coragem se senta ao nosso lado

“Foi o dia mais feliz da minha vida”. Uma frase que todos nós dizemos com a leviandade típica do momento presente. Mas às vezes é muito mais profundo do que isso.

Foto: Menso Van Westrhenen (todos os direitos reservados)

Foto: Menso Van Westrhenen (todos os direitos reservados)

Cruzei-me ao longo da vida, como todos nós, com pessoas que são para nós exemplos… e outras que representam exactamente o contrário.Há os indivíduos que nos fazem pensar “eu quero ser como este tipo um dia” e aqueles que nos fazem perder a fé na raça humana. Mas são raros os casos de genuína admiração. Especialmente se tivermos a falar de um grupo inteiro de rapaziada.

Nos últimos anos ganhei a mais profunda admiração e respeito por um desses grupos. Chamam-se Recuperadores Salvadores.

Homens como eu, tu ou você que, do nada, se penduram num cabo de aço, deixando a segurança de um helicóptero perfeitamente voável, para retirar das garras da morte alguém que não conhecem. Homens que descem para vagas de 10 metros, para navios que teimam em não ficar quietos, para escarpas maiores que o maior prédio existente em Portugal sem nunca hesitar. Sem nunca dizer “não”. Sem nunca por em causa que aquela vida, lá em baixo, é sagrada, e que para salvá-la vale a pena por em risco a sua própria. Literalmente, a vida presa por um cabo.

Dentro de um helicóptero de busca e salvamento a coordenação, o trabalho de equipa, o profissionalismo e a calma de todos é essencial. A missão só é cumprida, aquele filho, pai ou irmão de alguém só chegará a casa se todos trabalharem em conjunto na mais suave das harmonias. É, e tem de ser, a mais perfeita equipa, composta por pilotos, operadores de sistemas, recuperadores e enfermeiros. Mas a Coragem destes Homens (recuperadores) nunca deixou de me surpreender. É merecedora do meu mais profundo respeito. Daquele que vem de dentro.

Um dia, numa reportagem para uma das televisões nacionais, a jornalista perguntou a um ex-recuperador salvador como é que ele se sentia no dia em que resgatou vários náufragos de um navio que afundou ao largo da costa portuguesa e que lhe tinha valido lesões que o deixaram paraplégico para todo o sempre. Agarrado e submisso a uma cadeira de rodas. Ao que ele respondeu, com a típica bravura que os caracteriza “foi o dia mais feliz da minha vida”.

“Porra” pensei “que orgulho em saber que ainda existem Homens destes”.