Rosa Brava

Os chaparros passavam-me pelo canto do olho. Em “Flash”. “Que dia do caraças”, pensava para mim. A pouco mais de quinze pés – cinco metros – voamos entre a vegetação. O meu olhar divide-se entre o outro Alouette III à minha frente, ligeiramente à esquerda, e o chão que teima, por minha vontade, em estar tão perto. À nossa frente a brigada mecanizada do Exército. Dezenas de blindados e toda a poeira que eles produzem nesta manhã seca. Inconfundíveis

Há dias em que é difícil um tipo não pensar que este é um trabalho com uma grande pinta. Hoje é um deles. 

Decorria o ano de 2009. Como é tradição na Esquadra 552, apoiávamos ao longo do ano vários exercícios e acções do Exército. Sendo nós um grupo de ávidos pilotos militares – malta relativamente nova – procurávamos estes exercícios como pão para a boca. Vintes cães a um osso, se preferirem. E como tal tínhamos um sistema de escala na Esquadra que tentava fazer uma distribuição justa destas missões pelos diferentes operacionais. 

“Ah ah!” Exclamava eu com peito inchado. Rosa Brava 2009. O exercício anual do Exército, que decorreria em Santa Margarida, tinha-me calhado a mim.

Nesta primeira semana iria acompanhar um dos pilotos do exército que connosco voava na 552 – na altura tínhamos três – seria o seu número dois. Não lhes invejava a posição. Presos entre uma instituição ao qual não pertenciam, por vezes com um modo de actuação diferente – a Força Aérea – e o seu próprio ramo que, curiosamente, tinha pilotos... mas não tinha aeronaves para eles voarem. Ingrato. 

Santa Margarida é o enorme complexo militar do Exército português. Situa-se a Sul do rio Tejo, directamente na margem oposta a Tancos, antiga base da Força Aérea, agora base do Exército, e base mãe dos Paraquedistas portuguesas. A enorme área de Santa Margarida, com as suas carreiras de tiro, edifícios, obstáculos naturais e artificiais, representava o local ideal para o treino das diversas unidades do exército. Para nós, gajos dos helicópteros, não seria diferente. Um enorme e extenso “Playground”. 

Essa semana foi rica em missões. Largadas de tropas, operações especiais, muito voo táctico e calibração e avaliação dos radares, e respectivos operadores, do Exército (basicamente voar o mais baixo possível e ver quando seríamos detectados).

Mas uma foi especial. Iríamos “atacar” a Brigada Mecanizada. Nós, dois Alouette III, contra várias dezenas de blindados, uns quantos milhares de homens e, já agora, dois F-16 que nos tentariam abater. “Que raio”, pensava, “Que desperdício de recursos militares! Bastava um Alouette para essa gente toda!”. 

Um gajo não retira, dá meia volta e investe! 

No briefing dessa manhã,  sala cheia, denoto que sou o único oficial presente que não é do Exército (o outro piloto mantinha-se o oficial daquele ramo). Parte do “briefing” é dedicado à apresentação da fita de tempo e de toda a actividade planeada para aquele dia. Nessa manhã em concreto toda a brigada mecanizada iria deixar as suas posições (entre M-60, M-113 e outros veículos de apoio) e efectuar uma progressão para Sul. Aí iriam encontrar diversos problemas, entre eles, claro, o nosso ataque. 

Eu, Alferes no meio de oficiais superiores, lá levanto a mão timidamente.

“Diga meu Alferes”.

“Meu Coronel, qual é o perfil de ataque que quer que nós tenhamos?” 

Vejo pelo canto do olho o meu camarada do Exército a virar muito lentamente a cabeça na minha direcção como quem diz “Nunes, que merda é que tu vais dizer agora?” 

“Como assim?” 

“Que perfil devemos simular? Se simularmos um Apache ficaremos a 6km a simular o lançamento de um Hellfire. Se simularmos Heli-canhão o nosso perfil de ataque será diferente...”

“Caro Alferes, o grande objectivo aqui é a coluna perceber que está a ser atacada e tomar as devidas acções evasivas. O perfil é vosso. Eles têm é de perceber que estão sobre ataque. O treino é para eles”. 

O Coronel provavelmente lutou contra o impulso de me mandar ir massajar um cavalo aos estábulos. 

Para mim a resposta foi simples: é para rapar então. O mais baixo e rápido possível sobre a coluna. Eles vão de certeza perceber. Ai vão vão! 

Juntamo-nos todos – as duas tripulações – e “briefamos” a missão. Iríamos descolar, direcção sudoeste, e iríamos de imediato seguir um vale que seguia para Sul. Aí, no limiar da zona do exercício, iríamos manter-nos ocultos até recebermos a palavra de código para início do exercício por parte do coordenador do evento. Após recebida, voávamos o mais baixo e rápido possível em direcção à coluna, efectuando várias passagens de direcções diferentes. O meu número um ficaria a actuar numa área por nós definida mais a Oeste e eu ficaria na área Leste. A aproximação inicial seria efectuada em formação táctica. 

Descolamos finalmente. Nestas missões é impossível não sentir um pouco de adrenalina. E eu estava a senti-la. Chegamos ao nosso ponto de espera e ali ficamos os dois, em estacionário, por detrás de uns eucaliptos, lado a lado. Comigo tinha um dos nossos mecânicos de voo, curiosamente também do exército. 

Chega a ordem para avançar. 

Colectivo para cima, passo metido, cíclico para a frente. Número um à vista. Mantemos o que seria pouco mais de quinze ou vinte pés. 

Fazia sete anos andava eu a jogar jogos de computador e agora parecia que estava dentro de um. Baixo e rápido. Como eu gostava na altura (caraças, ainda é como gosto!). Entre chaparros, oliveiras e uns impressionados corvos que pensaram certamente “Que raio?” à nossa passagem. 

(C) Pedro Monteiro 

(C) Pedro Monteiro 

À nossa frente, a pouco mais de quinhentos metros, a Brigada. O nosso alvo. Seguiam para Sul, em três colunas paralelas se bem me recordo (não quero ofender nenhum táctico terrestre mas confesso que a memória já me falha). Na sua senda uma enorme coluna de poeira criada pelas dezenas de veículos que avançavam confiantes na nossa direcção. A pouco mais de trezentos metros (?) uma imagem que nunca mais esquecerei: dezenas de blindados, em coordenação, a dispersarem em todos os sentidos. Aquilo que outrora fora uma coluna organizada era neste momento um movimento de dezenas de carros em formação defensiva, sincronizado, tomando posições. Aquilo que era um alvo definido e simples transformou-se em dezenas de pequenos alvos todos, estou certo, com dedo leve no gatilho. Isto tudo em segundos. “Estes gajos são umas máquinas, bons profissionais” pensava.

Se fosse a “sério” não duraria mais de dez segundos no ar. Mas se fosse a sério também não teríamos este perfil de ataque. 

Assim que chego à vertical do primeiro veículo o meu número um executa o seu “break” para oeste. Eu mantenho-me a Leste. Baixo, sempre baixo, e desconfortável com a visão que tinha à minha frente. As torres dos carro de combate M-60 a seguirem a minha trajectória de voo. Pode ser um exercício mas é sempre desconcertante sentir-mos que todo aquele poder de fogo ganhou um novo foco nos últimos segundos: o filho da minha mãe! Eu! Era até possível sentir a onda de choque dos tiros de salva de todos aqueles soldados que lá em baixo me tornaram a mim – pobre Alferes – o seu alvo preferido para o dia. 

Entretanto nos rádios ouve-se a voz do controlador aéreo avançado da Força Aérea, incluído na coluna, que tentava desesperadamente dar a nossa posição aos dois F-16 que andavam à nossa caça. Estes, “lá do alto”, tentavam apanhar-nos antes que infligíssemos mais dano à coluna. 

Este jogo do rato e do gato durou, talvez, uns trinta minutos. A cada passagem, mantinha-me baixo e procurava a cobertura de um vale, de uma abertura no arvoredo ou de algo que me camuflasse do olhar de um piloto de F-16, que me tentaria encontrar com o seu “targeting pod”. Esperava dois minutos e lá saía novamente, coordenado com o número um, para mais uma passagem. 

“Mais uma moeda mais uma voltinha”, como nós dizíamos. Mas voltas destas não há na feira popular! 

Aterrámos após pouco mais de uma hora de voo. Não é todos os dias que dois velhos – mas agressivos – Alouette III têm a oportunidade de "atacar" a brigada mecanizada. 

 “Este é o segredo mais bem guardado da Força Aérea”, dizíamos muitas vezes na 552. Não há aeronave que mais gozo dê em voar do que o Zingarelho. Visibilidade única. Baixo e rápido. Um carro de Rally com asas, lá no fundo. Mas poucos se apercebem disso. Então quando o Exército dá uma ajudinha melhor ainda. 

Quem tivesse voado comigo nessa manhã certamente concordaria. 

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A máquina

35ºC. Beja. Final da manhã. Tempo seco. Aterro o Alouette III no heliporto e já anseio por aquela cerveja gelada no bar na esquadra. Como era natural no período de verão, um Kamov da proteção civil garantia o alerta aos incêndios na base de Beja. A minha aterragem é literalmente à frente do hangar onde este se encontra. Ali estava ele, adormecido.

Alouette3

Já no bar da Esquadra encontro o comandante do mesmo. Piloto experiente, formado naquela escola: Força Aérea. Com muitas horas de Alouette III tinha sido piloto durante o conflito do Ultramar. E, como manda a tradição aeronáutica, começamos a trocar “estórias”. Ou melhor… eu, maçarico dos maçaricos, apenas oiço, de boca aberta. De entre várias peripécias uma captou-me a atenção: uma recolha de Comandos do mato, na véspera de um dia importante (Natal seria?) em que, ao por do sol, e na última leva de recolha, depararam-se com um problema grave. Aterraram – em território hostil – resolveram o mesmo, descolaram e lá recuperaram os últimos homens no terreno. In extremis.

Porra”. Pensava eu. “Que estória!”

Lembro-me que num dos eventos que a Esquadra 552 organizava anualmente, aberto ao público e especialmente aos ex-militares, falava com um veterano do tempo do Ultramar. Se a memória não me falha teria sido mecânico… operador de helicanhão talvez. Ao aproximar-se de um helicóptero, de uma forma tão gentil como quem acaricia uma mulher, coloca a mão na cauda de um dos helicópteros e começa a chorar. Um choro genuíno. De memória. De emoção. Um choro de quem encontra um velho amigo que o safou de muitas situações há muito tempo atrás.

Não existe provavelmente nenhuma aeronave na Força Aérea Portuguesa com tanta história, “estórias” e poder no imaginário das pessoas como o Alouette III. O pessoal da asa fixa irá sempre refutar esta afirmação (como é apanágio da rivalidade vivida no seio do ambiente militar) mas lá no fundo sabem que é verdade.

Mais de cinquenta anos de história. Combate em três teatros de operação diferentes. Centenas, ou milhares, de pilotos por “ele formado”. Uma máquina infernal, fiável como um carro japonês. Divertida de voar como um kart. Estimada e respeitada por todos aqueles que nela voaram. Máquina de salvação para centenas de militares e civis. Voada por camaradas de outros tempos e deste. O Alouette III é um marco aviação portuguesa.

Mas voltemos aquela “estória” no bar de Esquadra. Perante a minha cara de fascínio, diz-me o comandante de Kamov:

“Mas sabes porque é que te estou a contar esta estória?”
“Não faço ideia!”
“É que o helicóptero com que voei nesse dia foi o helicóptero com que tu voaste hoje.”

E aí senti todo o peso daquela imensa história sobre os meus ombros. O número de cauda estava lá de facto, seria aquele, com um número a mais. O helicóptero, fisicamente, já não seria o mesmo. Já seria quase completamente "novo" com alterações, revisões e peças novas ao longo de décadas. Mas isso não interessa. Era “aquele”. “Aquele” Alouette.

Fiquei sem palavras.

Não é por acaso que o brinde típico na 552 seja “À máquina!”.

E que máquina!