Ou chumbas ou desistes

As paredes eram brancas. Aquele branco sujo, tão típico de edifícios militares. Um cheiro familiar mas que não conseguia identificar pairava no ar. Pó, mofo, algo do género. 

À minha frente uma mesa, castanha, antiga e em mau estado. Uma câmara de filmar, com aquela luz vermelha insistente e irritante, e o seu operador militar,  não me recordo do posto. À minha frente, sentado na mesa, um Major do Centro de Psicologia da Força Aérea. Um Major que era temido por todos nós: cabia-lhe a ele a decisão final sobre se continuaríamos ou não a lutar pelo nosso sonho. 

À sua frente duas folhas de papel. 

“Sente-se Sr. Nunes.”

Era quarta-feira. O dia estava solarengo. Uma brisa fria, tão típica daquela zona, soprava do lado do mar. Encontrava-me na Base Aérea nº1, arredores de Sintra, em pleno estágio de voo para o curso de Oficial Piloto. O estágio de voo tem a duração de uma semana e é desenhado para testar a capacidade do candidato (vá, mancebo!) na sua adaptação à vida militar, ao stress, pressão e claro à fisiologia de voo: para isso iríamos efectuar vários voos em DHC-1 Chipmunk. Comigo outros dezasseis candidatos. Muitos deles tornar-se-iam meus camaradas de curso e, também, meus melhores amigos. Nessa altura ainda não o sabia. 

Já tinha concorrido à Força Aérea dois anos antes. Na altura consequência de uma nota em um exame nacional do ensino secundário – fruto da minha estupidez de adolescente – viria a abandonar esse concurso para a Academia da Força Aérea, já no último dia do estágio de voo, tendo efectuado seis voos porreiros (por porreiros quero mesmo dizer penosos!). Mais tarde concorreria novamente, mas durante a fase de admissão – e ouvindo o conselhos de alguns amigos – alteraria a minha candidatura de PILAV (Oficial de Academia) para PIL (Oficial em regime de contrato, os antigos milicianos). E aqui estava eu. Sentado naquela mesa. 

“Então Sr. Nunes... temos aqui um problema”. 

As palavras daquele Major atingiram-me como um raio. Lembro-me bem do sentimento de medo instantâneo que me percorreu a espinha. Dali não vinha coisa boa. 

“Tem duas opções” dizia o Major enquanto deslizava as duas folhas de papel para a minha frente “Ou chumba, ou desiste. Agora escolha.”

Eu, perplexo, não conseguia proferir nem uma sílaba. Tinham apenas passado dois dias, não tinha metido as patas em nada, pensava eu. Nem sequer tinha voado, aí não meti de certeza. Não percebia o porquê daquela situação. 

“Oiça lá. Você não ouviu o que eu lhe disse? O seu caminho acabou aqui, ou chumba ou desiste. Agora escolha”. 

“Mas... Sr. Major, fiz algo de errado?”

“Mau. Leia os papéis e escolha. Assine e vá à sua vida que não tenho tempo para isto.”

Naquela altura – agora também provavelmente – existia uma significativa diferença entre as duas situações. Se um candidato desistisse este poderia concorrer novamente no próximo concurso. Se chumbasse a situação era outra: como o candidato tinha sido considerado inapto para a função teria de suportar um longo período de carência até puder voltar a concorrer. O que no meu caso, com vinte anos, era o mesmo que dizer que acabava ali o sonho. Desistir era, à primeira vista, a melhor solução. 

“Sr. Major peço desculpa, mas pode-me dizer o que fiz?”

“Mas você é surdo? Escolha. Ou chumba ou desiste. Eu não tenho tempo para isto...”

Esta discussão semi-amigável durou talvez uns quinze minutos. Ou vinte. Ou cinco. Não sei. O meu espanto e nervosismo provavelmente influenciaram a minha percepção do tempo. Comecei a responder de forma mais acesa, até que já resignado e claramente farto disse: 

Alturas houve em que o autor tinha pinta!

Alturas houve em que o autor tinha pinta!

“Você chumbe-me. Chumbe! Eu desistir não desisto. Daqui não saio por minha vontade. É o meu sonho. Agora chumbe-me!”

Esticou-me a mão.

“Parabéns. Bem vindo à Força Aérea”. 

Devo ter ficado uns bons trinta segundos a digerir aquelas palavras. 

Ali, naquele momento, com vinte anos, aprendi uma das maiores lições da minha vida. Não. Vivia-a: nunca desistir. 

Nunca. 

Passados anos tornei-me amigo desse Major, então Tenente-Coronel. E ele bem que se lembrava do episódio. Soube então que perante as minhas alterações de curso enquanto concorria e a minha anterior desistência eles não estavam certos da minha vontade e resiliência em ser piloto. A adaptação ao voo já a tinha feito dois anos antes. Se eu, naquele dia, naquela sala tivesse dito “Desisto” era exactamente isso que tinha acontecido. Tinha saído por aquela porta e voltado a casa. E hipotecava certamente as as minhas hipóteses de ser piloto militar de forma permanente. 

A Força Aérea não procura super homens. Procura homens e mulheres que não desistem. Que, mesmo perante o impossível, o imprevisto e o impensável continuam em frente. A missão é para se cumprir. E se não houver essa resiliência é garantido que um candidato nunca sobreviverá às incontáveis privações, exigências, stresses e pressões de um curso de pilotagem militar.  

Ainda hoje levo comigo o sentimento que vivi dentro daquelas quatro malditas paredes. E esse sentimento, para mim, tornou-se sagrado. 

Por mais difícil que seja a situação. Por mais complicada que possa parecer a solução. Por mais na merda que um tipo esteja. Por mais perdida que seja a situação... Um tipo não desiste. 

Pode falhar. Mas desistir nunca

Nunca.  

www.merlin37.com/nuncadesistir

Força Aérea, Pilotos e a política que nunca muda

(Escrito a 12 Outubro 2014)

Dou por mim a olhar para a parede do quarto de forma filosófica. Será que a consigo deitar abaixo com a cabeça? É o que me apetece. É o que me apetece- genuinamente – depois de ler os comentários às notícias sobre a “reunião” dos pilotos militares. 
 

Foto: (c) António Catroga CAVFAP

Foto: (c) António Catroga CAVFAP


Faço desde já a minha declaração de interesses. Fui piloto militar por mais de 8 anos. Foi o meu sonho de criança. Vestir pela última vez o fato de voo foi dos piores momentos da minha existência. E agora vamos ao que interessa. 

O problema? A saída de pilotos militares para o mundo civil. A minha indignação? A atitude – tipicamente portuguesa é certo – de quem critica tudo e todos sem, de facto, criticar o que merece ser criticado. 

Este é um problema que existe há décadas. Como é normal em Portugal, o conceito de “décadas” não é suficiente para resolver um problema. Precisamos, provavelmente, de séculos. A inexistência de pragmatismo surpreende-me. 

Continuamos a pensar – como país, como povo, como grupo – a curto prazo. O país investe milhões na formação de um indivíduo com uma formação muito específica, longa e exigente. Esse indivíduo, ao longo da sua carreira, irá passar por diversas situações de perigo iminente, de exigência extrema, de “stress” levado ao limite da compreensão. Irá passar por períodos longos de ausência familiar, em missão fora do seu país ou da sua zona e, tudo isto, importante não esquecer, após jurar defender o seu país “mesmo com o sacrifício da própria vida”.
Repito. “Mesmo com o sacrifício da própria vida”.
Nunca, pelo menos no tempo em que eu lá estive, nenhuma missão ficou por cumprir. Estivesse chuva, estivesse sol. Em Portugal ou no Afeganistão. Ou como hoje. No Mali ou na Lituânia. E nunca, nunca, ninguém ouvirá esses pilotos dizer que não gostam do que fazem. Pelo contrário. Todos sentem como um privilégio voar como só um aviador militar voa.

E é contra estes indivíduos que a rapaziada se indigna? Contra os pilotos que defendem o espaço aéreo europeu na Lituânia, contra os pilotos que combatem o extremismo islâmico no Mali, contra os pilotos que descolam às três da manhã no meio de um dia de trovoada para resgatar alguém que não conhecem? E tudo isto, convém realçar, ganhando menos que um condutor de um ministro? 

Está na natureza humana procurar uma vida melhor. Em todos nós. Que atire a primeira pedra o primeiro indivíduo que não ponderaria seriamente abandonar o seu emprego por outro que oferece um ordenado quatro vezes superior, mais tempo em casa e melhores condições gerais. Venha o primeiro. E com os pilotos militares teria de ser diferente? Qualquer piloto militar, ou qualquer outra especialidade é certo, cumpre o tempo mínimo que lhe é exigido. oito ou doze anos. Após isso alguns procuram – e bem – uma vida melhor para si e para a sua família. Uns dão o “extra-mile”. Outros não. E que nunca ninguém duvide da sua dedicação e amor à sua Pátria. Dos que ficam ou dos que vão.

Quem eu critico? Eu critico quem deixa esta situação chegar onde chegou. Quem prefere perder vinte pilotos todos os anos e gastar mais a formar outros vinte. Quem prefere encostar pilotos a secretárias por serem milicianos, a deixá-los sair ou voar nas esquadras - trabalho para o qual foram efectivamente contratados. 

Formamos profissionais de milhões, e depois não lhes damos as condições necessárias para que quem quiser continuar continue. A Força Aérea não é uma prisão. É uma instituição constituída por pessoas. Pessoas com um exigente grau de responsabilidade. E como qualquer outra pessoa, também estas têm um limite. 

 

Está na altura de garantirmos que esse limite não é ultrapassado. Está na altura de darmos condições a quem as merece. Não é só moralmente correcto. É economicamente eficiente.