Descolagem incerta

"Causarei o maior dano possível para que a TAP mude de opinião”

"Temos de desprezar quem nos despreza"

Estes são alguns exemplos de afirmações públicas que têm surgido recentemente sobre a TAP Portugal

É fatalista. É extremamente fatalista. A TAP existe, como sempre existiu nos últimos anos, não para ser transportadora aérea. Existe para ser alvo de críticas. De chacota. Um saco de boxe intelectual nos dias que correm. 

Estamos mal habituados neste cantinho à beira-mar. Queremos tudo. Queremos o impossível. Queremos o compromisso supremo. Exigimos.

O corolário de toda essa situação são os indivíduos que faz um ano defendiam, convictos e certos da sua posição, a privatização da transportadora aérea nacional. Um buraco negro de dinheiros públicos, disse-se. Agora, quando a sua gestão é finalmente privada, invocam o chamado interesse nacional (na prática interesse regional, grande diferença) quando a decisão não lhes convém ou agrada. 

Algo claro e simples: uma empresa quando é privada (e, até ver, a TAP é de gestão privada segundo o governo em funções) tem total liberdade na escolha da sua estratégia interna e de expansão. Seja ela boa ou má. Seja ela óptima ou péssima. Aos olhos de quem quer que seja. 

O mercado da aviação comercial é tão competitivo, mutável e exigente que uma adaptação constante é uma obrigatoriedade. É portanto normal que uma empresa queira usar os seus recursos finitos – as aeronaves – nas rotas mais rentáveis e menos dispendiosas em termos de operação. Ganhar dinheiro no fundo. Aumentar as receitas. Diminuir as despesas. Lucro. Aquele que, dizem, fugiu durante tanto tempo. 

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Toda esta indignação, e surpreendente apelo ao boicote, espanta ainda mais quando vem de quem apoia, e apoiou, concorrentes directas da TAP com subsídios que a transportadora aérea nacional nunca teve. Paradoxalmente um organismo do Estado financiou empresas concorrentes de uma empresa que pertenceu ao... Estado! 

Por cá queremos sempre que algo seja “carne e peixe”. 

É impossível. 

Não podemos exigir que uma empresa seja privada (e que portanto zele maioritariamente pelos seus próprios interesses de crescimento e lucro) e ao mesmo tempo cumpra os nosso propósitos. As nossas ambições ou estratégias pessoais. 

E não podemos querer que uma empresa seja pública (e consequentemente amarrada à incerta definição política do que é útil e aceitável) e ao mesmo tempo obtenha o lucro e optimização de uma empresa privada. E que não utilize dinheiro público, já agora.

Definamos de uma vez por todas aquilo que queremos. E aceitemos as consequências dessa decisão.

Mas não vamos exigir o impossível.

Quem sofre com isso não é só o Porto. Não é a TAP. 

Somos todo nós. 

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Fate is the hunter

Existem livros sobre aviação. Existem livros que são obras-primas. E de vez em quando existem livros que são ambos. 

Fate is the hunter é um deles. 

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Baseado na vida e carreira do autor - Ernest Gann - esta pequena amostra de génio literário vicia-nos a partir da primeira página. Não gosto de ficar "agarrado" a nada, mas este livro tinha a tendência de me obrigar a folhear mais e mais e mais. Cocaína literária. E Ernest era Pablo Escobar. 

Imperial. E obrigatório. 

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Os quatro magníficos

Vinte e um.

“Que bando de gajos que para aqui vai”. 

Éramos vinte e um no meu curso da Força Aérea e quem olhasse para nós naquele tempo com certeza que teria dúvidas que aquele ajuntamento de gajos, de cabelo rapado e olhar incerto, daria origem a punhado de competentes pilotos militares. 

Foto: J. Parracho (Marinha Portuguesa)

Foto: J. Parracho (Marinha Portuguesa)

Após a aquisição dos helicópteros LYNX pela Marinha (e façamos um aparte para fazer uma vénia a essa grande máquina) esse ramo viu-se obrigado a formar os seus próprios pilotos. A opção lógica, claro, passava pela formação na Força Aérea Portuguesa. 

É assim que, após a nossa recruta na OTA, conhecemos pela primeira vez os quatro oficiais da Marinha que vão integrar o nosso curso. Afinal éramos vinte e um... mais quatro.

Oficiais de carreira provenientes da Escola Naval, foram que como atirados aos lobos para um grupo de “putos” sem qualquer experiência militar.  Imagino o que não lhes deverá ter passado pela cabeça. Certamente um expressivo “fodass”! Não é por acaso que o nome do meu curso é "Infernais". Podia muito bem ter sido "Bandidos" ou "Índios" tal era a quantidade de... chamemos-lhe irreverência, que demonstrávamos. 

Ao longo de mais dois anos aqueles quatro elementos foram o nosso enquadramento. Pela Ota, pelos “horrores” da Esquadra 101 e mais tarde pela Esquadra 552, todos nós ficámos com a sensação que aqueles quatro marmotas – e sim, podem ser porreiros mas continuam marmotas! – eram umas máquinas do caraças. E como tal todos lhe temos uma dívida de gratidão. 

Pelo enquadramento. Pela paciência. Pelos raspanetes. Pela camaradagem. Pela ajuda. Pela ponte que foram com os oficiais mais antigos. Pela... amizade. Essa que ainda dura e durará para sempre.

É estranho pensar que provavelmente o factor de maior sucesso de um curso da Força Aérea tenha sido... elementos da Marinha. Justiça seja feita: é a verdade. 

Éramos vinte e um. Acabámos quinze. Mas sem aqueles quatro, seríamos menos. 

Merecem todas as rodadas que lhes conseguirmos pagar. E eles que não me oiçam dizer isto, senão metade do meu ordenado irá acabar nos cofres da Super Bock!

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Pilecki

Fez em Janeiro setenta anos da libertação de Auschwitz. Setenta anos da libertação de um campo que representou a pior face na natureza humana. 

E mesmo assim, no Inferno, existem heróis. Um deles – pouco conhecido – chama-se Witold Pilecki.

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Capitão do exército polaco e um dos fundadores da resistência polaca, o Capitão Pilecki foi ao encontro de uma patrulha das SS em 1940 em Varsóvia, de forma intencional, e deixou-se capturar. O objectivo? Criar uma organização de resistência dentro do campo e relatar e escrever em relatório para as forças aliadas a realidade que se vivia em Auschwitz. Após a sua fuga do campo, em Abril de 1943, escreveu mais de 100 páginas sobre a crueldade vivida em Auschwitz. O primeiro relato, fidedigno, nas mãos dos aliados sobre a implementação da solução final. 

Capturado e morto pelo regime comunista polaco do pós-guerra, ignorado até à queda do muro de Berlim, o Capitão Witold Pilecki é hoje celebrado como um herói no seu país, Polónia. Mas ele não é apenas um herói polaco. É um herói de todos nós. Como Homens. Com H grande. Prova que a coragem, face ao inimaginável, existe. É palpável. E tem vários nomes.

E um deles é “Pilecki”.

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Existem dias bons

A vida operacional de um piloto militar não tem falta de aventura. Muito menos numa Esquadra de busca de salvamento. As missões reais são frequentes. As missão tácticas são uma emoção. As missões de treino são sempre – sempre! – diferentes. 

Difícil de superar. Mas às vezes acontece. Foi o caso do voo que fiz com o Ricardo. 

Foto: Força Aérea Portuguesa (c) Todos os direitos reservados

Foto: Força Aérea Portuguesa (c) Todos os direitos reservados

O Ricardo tem quase a minha idade. De facto podia ser eu. O nome até é o mesmo. Mas um dia a vida pregou-lhe uma partida: sofreu um acidente de viação grave que o deixou paraplégico. Para sempre dependente de uma fria e impessoal cadeira de rodas. No dia do seu acidente foi evacuado de helicóptero para a unidade hospitalar mais conveniente, e, provavelmente, deve a sua vida a esse voo. A sua mãe, ciente disso, contactou a Força Aérea inquirindo se seria possível o seu filho fazer um voo, talvez voltar a sentir aquela sensação de liberdade que a vida injustamente lhe roubou.  

A Força Aérea Portuguesa tem muitas maneiras de deixar um tipo fulo. Frustrado. Fora de si com a pesada máquina burocrática que por vezes existe. Mas também nos é capaz de encher de orgulho como instituição. E este foi um dos casos. A Força Aérea disse que sim.

E tenho o Ricardo à minha frente. 

Falamos todos. Eu, ele, a mãe e toda a tripulação. Aprendemos um pouco sobre a sua vida e sua luta herculeana. Quem me dera a mim ter um décimo da coragem e força de vontade que o Ricardo tem. Qual um décimo! Quem me ter um centésimo da sua força de viver!

É apresentado um pequeno briefing com a história da Esquadra e procedimentos de segurança. Discutimos um pouco sobre voo. Aproveitando um voo de treino regular da Esquadra, iremos levar o Ricardo por algumas manobras de contacto à vertical da Base Aérea do Montijo. Voo baixo, voltas apertadas, rotações, um pouco de “táctico” enfim... tudo aquilo que um helicóptero pode fazer e que é invejado por todas as outras máquinas voadoras. E sempre de porta aberta. Sempre. Para sentir o vento como só os pássaros sentem. O pináculo da sensação de voar. 

E assim foi. Descolamos e iniciamos o nosso perfil. Sempre com o cuidado de saber se o Ricardo está a gostar. Após o voo convivemos no bar da Esquadra. A nossa “toca” que tem mais história – e estórias! – naquelas paredes que todos os livros de Saramago e Lobo Antunes juntos. 

Aquele foi um dia especial. Não só porque o Ricardo voou connosco. Mas porque tive a honra de, naquele voo, fazer a minha milionésima hora de voo em helicópteros. Mil horas porra! As primeira mil. Não me consigo lembrar de um melhor voo para celebrar este marco. Até tenho uma pequena garrafa de champanhe, oferecida por um bom amigo, religiosamente guardada no meu gabinete para celebrar este facto. 

Ele há dias de merda. Dias em que um gajo vai para casa farto. Saturado. Cansado. Em que qualquer contacto humano é como enfrentar a inquisição espanhola. Mas ele há dias bons. 

E este é um dia bom. 

O Ricardo pode ir para casa com um sorriso nos lábios. Eu também. Mas o meu? O meu é bem maior…

Obrigado Ricardo. 

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Au revoir 747!

A homenagem perfeita para o primeiro gigante dos ares. 

A fabulosa despedida da Air France e da Patrouille de France ao Boeing 747 ao serviço daquela companhia aérea. 

Au revoir!

Le 27 janvier au dessus de la Camargue, douze avions, fleurons de l'aéronautique française, se donnaient rendez-vous : onze Alphajet de la Patrouille de France et le dernier Boeing 747 d'Air France. Crédits : Airborne Films pour Air France et l'Armée de l'Air et la Patrouille de France http://www.airfrance.com/ #AF747

E o carro?

Segunda-feira é sempre aquele dia cruel. “A pior invenção da humanidade”, dizem os olhos de todos aqueles com quem me cruzo. Lá fora a chuva cai de forma intensa, e mais intensamente caiu durante o fim de semana. Noé estaria como peixe na água. Está montado o cenário. Segunda-feira. Dia 01 de Abril de 2013. Mais um dia das mentiras. Mais um dia alerta. 

Ribeira? Isto é um rio!

Ribeira? Isto é um rio!

A rotina é a mesma de um dia normal. Com aquela pequena – grande! – diferença de sentir uma ligeira ansiedade sempre que o telefone toca. E claro, ele tocou. 

ALERTAAAAA”, alguém berra pelos corredores da Esquadra. É pavloviano. Eu, e o meu co-piloto, estamos nas operações em dois segundos. Um vai anotando as coordenadas num papel e outro abre o Google Earth para uma confirmação muito rápida da zona de operação aproximada. 

“Epah, esta merda não deve estar bem”, digo. 

A porra da coordenada não estava no Atlântico. Nem mesmo ali numa escarpa, fosse onde fosse na costa portuguesa. Estava no meio do Alentejo. Sim. No meio do Alentejo. 

“Que raio?” 

Telefone na mão e chamada directa para o Comando Aéreo (CA).

“Podem-me confirmar as coordenadas por favor?”

Bastaram trinta segundas para ficarmos a saber que as coordenadas estavam correctas. Durante as chuvadas do fim de semana várias ribeiras e ribeiros transbordaram por completo, um pouco por todo o país. Ali, para os lados do Torrão, um condutor distraído (lá no fundo eu quero mesmo dizer negligente) ignorou a barreira montada pela Protecção Civil e decidiu tentar atravessar aquela estrada que, na prática, era agora um rio. Resultado lógico. Foi arrastado. 

“Esta vai ser uma estreia!”

A partir daí tudo corre em automático.
Coordenadas no bolso. Capacete e equipamento de emergência na mão. Helicóptero em marcha. Descolagem. Tudo isto em pouco mais de dez minutos. Já no ar, velocidade máxima, direcção sul. Entramos em contacto com o Comando Aéreo para obter actualizações. Não há novidades. Já se encontram no local algumas unidades dos bombeiros. 

O local exacto chama-se Ribeira de São Romão.  

“Ribeira o caraças!”, voicero quando chegamos às coordenadas. O que temos à nossa frente é um caudal de água quase tão largo como o rio Sado. Damos uma primeira volta e tentamos encontrar o tal carro arrastado. Nada. Só água. Tanto de um lado da margem como do outro são visíveis unidades dos bombeiros com as quais entramos em contacto. Ao iniciar a segunda volta alguém da tripulação expressa um decisivo “Está ali, às duas horas”. 

“Epah não vejo carro nenhum!”

“Carro? É uma cabeça!” 

O veículo estava completamente submerso. Ali, quase à nossa frente, estava uma cabeça, quase invisível, oculta pelo constante movimento da água ao seu redor. Era ele, o “nosso” condutor desesperado que se agarrava a algo como uma lapa se agarra a uma rocha. 

Volta rápida, pás a "bater", posicionamo-nos face ao vento e em trinta segundos estamos com os procedimentos feitos, porta aberta e o Recuperador Salvador pronto a descer. 

“Trinta em frente, dois à direita” .

O operador de guincho começa a guiar-me para o objectivo. Ao mesmo tempo o recuperador inicia a descida e o co-piloto mantém um olho à nossa altitude. Já o disse várias vezes. Digo-o mais uma: o trabalho de equipa aqui não é boa prática. É obrigatório. E que grande equipa tenho eu hoje. 

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O recuperador toca na água a menos de um metro do objectivo. 

“Contacto!”

Em menos de dois minutos o recuperador está novamente suspenso no cabo, desta vez com um muito valioso passageiro nos braços. Hesito em usar a palavra “náufrago” neste caso... será “arrastado” melhor? 

Recuperação feita e o enfermeiro da tripulação inicia o seu trabalho. Coordenamos com os bombeiros e aterramos ali mesmo, na margem, para deixar o nosso recente passageiro. Entrega feita e descolamos em direcção ao Montijo. 

Como é hábito, nesta altura iniciamos uma espécie de de-briefing informal. Todos os membros da tripulação falam entre si sobre o que acharam da operação, o que correu mal, o que correu bem, como podemos melhorar. E claro, curiosidades. E aí, o nosso recuperador salvador (militar experiente, instrutor, com um físico de fazer inveja ao Hulk) partilha connosco o breve diálogo que teve com o senhor: 

“Estava a ver que tinha de usar da força física...”

“Então?”

“Ele não se queria vir embora sem o carro!”

“Desculpa?”

“Não queria lá deixar o carro! Ainda perguntou se não o podíamos içar!”

Como a natureza humana é engraçada. Estamos à beira da morte. Exaustos. Em estado de Hipotermia. Mas o cabrão do carro é que não pode ficar ali. Não, o importante é o cabrão do carro!

“Pena não teres trazido a matrícula. Dava uma bela recordação!”

E se dava!  E se dava!

Deve ser Photoshop

"Deve ser Photoshop". Deve deve. Era isso que eu pensava sempre que via imagens das Maldivas. Que rica forma de promover um local, "falseando" as fotografias. 

Demasiado azul. Demasiado bela. Demasiado... perfeita. Um sítio assim não pode, não deve certamente, ser real. 

Mas é. E não é Photoshop. 

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(Para os puristas... há para aqui um toquezinho de snapseed!)

O meu amigo buraco

Ó velho amigo que regressas com saudade... gosto em ver-te! Tal como todos os bons amigos, regressas sem avisar, ano após ano, para me fazer uma surpresa. Estás sempre ali no mesmo sítio, no cruzamento à saída da minha casa.

Avenida Duque de Ávila com a estação da Carris, Arco do Cego, 1940.Eduardo Portugal, in Arquivo Fotográfico da C.M.L

Avenida Duque de Ávila com a estação da Carris, Arco do Cego, 1940.
Eduardo Portugal, in Arquivo Fotográfico da C.M.L

Os meus pneus tratam-te por “tu”. E iria jurar que já te vi com uma das minhas jantes a beber uma mini enquanto passava o Nacional-Benfica na Sport TV.

Impressionante esse teu ritual, digno do mundo animal – tal e qual hibernação – em que todos os anos, todos, teimas em aparecer sempre que caem as primeiras chuvas.

Penso que saibas que não sou engenheiro civil, muito menos engenheiro de estruturas. Não tenho experiência em planeamento urbanístico... e nunca trabalhei em construção civil. Mas arriscarei afirmar que voltas sempre, saudoso e contente, porque alguém não está a fazer o trabalho que devia.

Não me leves a mal. Gosto da tua companhia. Gosto de te apresentar com pompa e surpresa aos meus amigos. “Olha... ali está ele!”, digo com expressão efusiva no rosto. Admiro igualmente a forma como treinas as minhas aptidões automobilísticas, apanhando-me de surpresa naqueles finais de tarde em que regresso, cansado, ao meu pouso.

Mas como qualquer bom amigo, também tu meu caro buraco, por vezes me deixas zangado. Incapaz de conter um expressivo “Fodass” ou um surpreso “Mas que caralh....” que é seguido atentamente por aquele senhor de setenta e poucos, que da passadeira olha para dentro da minha viatura como quem olha para a jaula dos tigres. “Gente mal educada” pensará certamente.

Sim meu companheiro! A partir de hoje estamos de relações cortadas! E até que tu tenhas um entendimento com os teus amigos da Câmara Municipal de Lisboa, passarei a chamar-te, com a dignidade que a ocasião impõe, de “cabrão”.

Cabrão do buraco! 

ALEX

Os Açorianos encaram o mau tempo como um piloto encara a turbulência. Inevitável. Algo chato mas inerente à vida insular. Sem fuga possível. Habituados a ter as quatro estações do ano num só dia, o de hoje não havia de ser diferente. 

Alex. Que porra de nome para um furacão. 

Foto (c) Força Aérea Portuguesa

Foto (c) Força Aérea Portuguesa

Todos nós – pelo menos deste lado de cá da “banheira” – reagimos com, no mínimo, alguma indiferença. Mais uma tempestade. Certamente comum para o Atlântico central. Só as ocasionais reportagens televisivas nos fazem reflectir um pouco mais.

Quando servi na Esquadra 751 dizíamos entre nós, com orgulho e típico peito inflamado de aviador militar, que “quando mais ninguém voava nós íamos lá”. Rodas no ar. A enfrentar cruelmente os elementos com uma máquina que a cada rotação do rotor nos pedia furiosamente ar mais calmo. 

E no presente não haveria de ser diferente. Com orgulho, não, com muito orgulho, vejo que hoje, nos Açores, quando mais ninguém voa, eles estão lá. A voar. De ilha para ilha. Sem questionar. Sem hesitar. Sem por em causa que aquela, a mais nobre das missões, merece o melhor que cada um deles tem para dar. 

Gajos que, no preciso momento em que escrevo estas linhas, estão na ilha das Flores a aguardar a ordem para regressar com a mais preciosa das cargas: uma vida humana. 

É bom que não esqueçam isso. Quando um dia, por qualquer razão que seja, se lembrarem de os criticar – por serem militares, por serem os “chulos”, por serem uns “inúteis” – lembrem-se que quando um furacão chega, quando as barras marítimas fecham, quando os aviões ficam no chão, quando tudo está mesmo na merda... eles estão lá... 

...Eles estão lá.

E não pedem nada em troca. Não pedem, mas merecem

Nem que seja o nosso mais profundo respeito

Bom voo camaradas. 

(c) Esquadra 751

(c) Esquadra 751

(c) António Tavares

(c) António Tavares

Pilotos mimados

(Escrito a 28 Dezembro de 2014)

“Privilegiados! Nem mais um tostão para a TAP.” É engraçado como a história nos persegue. Na minha (curta) carreira de aviador passei de, passo a citar, “militar chulo do estado” para “piloto mimado da TAP”. Começo a pensar que, aos olhos dos meus compatriotas, escolhi a profissão errada. Ou então tenho mau carácter. Por mais dedicados que sejamos. Por mais sacrifícios que façamos. Por mais exigentes nos tornemos ou por mais profissionais que ambicionemos ser, seremos sempre um “chulo” ou um “privilegiado”. 

Fantástica foto de Carlos Seabra. Todos os direitos reservados. 

Fantástica foto de Carlos Seabra. Todos os direitos reservados. 

Em Portugal vivemos um determinado complexo de “(in)felicidade”. Se somos felizes naquilo que fazemos então não devemos estar a fazer o nosso trabalho. É, aliás, como se a palavra “infelicidade” fosse sinónimo de “trabalho” num qualquer dicionário de língua portuguesa. E se não formos infelizes algo está muito mal. 
Perdi conta às vezes que me disseram “pagam-te para te divertires”. “Efectivamente”, retorquia eu, “que culpa tenho eu de gostar do que faço?”. Ambicionei isso. Procurei-o. Era o meu sonho de criança. E lutei por ele. É, penso eu, aquilo que qualquer um de nós procura fazer.
Mas, como em tudo na vida, as pessoas esquecem-se sempre de todos os aspectos menos positivos. As madrugadas. A falta de rotina. O não ter horários. O treino constante. A avaliação permanente. A pressão subjacente. O requisito físico, e mental, obrigatório. E acima de tudo, a responsabilidade. Essa que é enorme. Seja ela a de ser a última esperança de sobrevivência de alguém, do meio do oceano, no meio de uma tempestade às três da manhã ou a de levar 150 almas em segurança ao seu destino. Mas tudo isso, pelos vistos, não interessa. Só interessa aquele fato de voo ou aquela farda tão elegante. 

A aviação ensina-nos e molda-nos um espírito de muitas formas. E uma das grande lições que nos transmite, que nos incute desde cedo, que nos fica gravado na alma é que devemos sempre nivelar por cima. Nunca por baixo. Devemos sempre procurar a excelência. Porque se não o fizermos, os resultados, nesta profissão, poderão ser desastrosos. E muita dessa mentalidade, desse espírito, se pode aplicar à Vida em geral. 

Não me identifico com esta tendência tão recente de alguns meus compatriotas de quererem nivelar por baixo. E de assumirem que, como profissional, não mereço mais do que “mimado” como adjectivo. 

Desculpem-me se sou feliz com o que faço. Mas isso não vai mudar. Nunca

Ceuta

(Escrito a 21 de Agosto de 2015)

Faz hoje - 21 de Agosto - 600 anos que um pequeno reino europeu encheu o peito de ar, vestiu uma armadura e com um punhado de tomates considerável atravessou o mar e foi conquistar Ceuta.

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Esta data não é importante apenas porque representa o início daquilo a que nós designamos de Descobrimentos. E muito menos por ter sido uma conquista pelas armas. 

É importante porque nos relembra algo com 600 anos. E ter 600 anos de história é obra! E antes desses 600 ainda existiram quase outros 300. Já andamos por cá faz um tempo

É importante porque nos galvaniza com o facto de que uma pequena nação entalada entre o mar e um reino de onde nem sequer aparecem bons casamentos ser capaz de fazer coisas grandiosas. 

É importante porque nos recorda que um dia, nós, “nação valente e imortal”, fomos donos disto “tudo”, fruto apenas da coragem, inteligência e visão demonstrada na altura.

É importante porque nos deveria elucidar para o facto de Portugal ser mais que os últimos 30 anos. São quase 900! 900 anos em que sempre que foi preciso levantámos a voz e dissemos a quem quer que viesse para aqui arranjar confusão que a coisa ía dar para o torto!

É importante porque nos deveria motivar ao saber que somos feitos do mesmo material, do mesmo sangue, da mesma fibra dos gajos que há 600 anos se meteram nuns barcos e foram ali para sul dos Algarves fazer das suas e dar novos mundos aos mundos.

E se eles o conseguiram... nós, à nossa maneira, também o podemos fazer. 

Um pouco de orgulho nacional não fica mal a ninguém. E não, hoje não joga a selecção.

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Defesa aérea

(Escrito a 31 de Outubro 2014)

“Mas o que é que vocês fazem na tropa?”. Perdi a conta às vezes que ouvi esta pergunta. 

E, como eu, estou certo que todos aqueles que lá Serviram se viram deparados numa altura ou outra, com comentários semelhantes. Pacientemente – coisa às vezes rara na minha pessoa – lá tentava explicar tudo aquilo que fazíamos. Ou parte. Ou nada . Às vezes limitava-me a beber mais um golo naquele Gin fresquinho. Não valia a pena. 

Foto: Força Aérea Portuguesa

Foto: Força Aérea Portuguesa

E estando na Força Aérea surgia, mais tarde ou mais cedo, um “porque é que Portugal precisa de F-16? É para vocês brincarem?”. 

Bem. Parece que esta semana já ninguém pergunta se querem brincar. 

Acordei com a música “Russians” de Sting na cabeça. As (muito) recentes notícias da presença de aeronaves russas nas zonas de responsabilidade portuguesa – e consequente intercepção pela Força Aérea Portuguesa das mesmas – veio como que acordar alguns compatriotas. Pondo de parte o excessivo mediatismo e alarmismo de algumas notícias, a utilidade de ter um sistema efectivo de defesa aérea deixou de estar em causa. Afinal não estamos naquele canto seguro da Europa. Afinal é possível entrar em espaço aéreo de responsabilidade nacional. Afinal convém ter malta treinada para isto. Daquela que custa muitos milhares a treinar. 

A efectiva ameaça militar destas incursões é baixa. Mas é representativa de como em geopolítica se joga um bom poker. Ou xadrez no caso russo, como dizia Kissinger. Portugal tem de definir politicamente – de uma vez por todas – qual a posição e qual a capacidade que queremos ter no mundo presente. Se queremos ser jogadores de xadrez, ou se queremos estar na plateia a contar os minutos. Em geopolítica não existem espaços vazios. Não existe o zero. O vazio. Se não formos nós a ocupar – e a defender – o nosso espaço alguém o fará por nós. Se não forem os nossos F-16 serão os F/A-18 espanhóis. Ou os EF2000 ingleses. E aí não faltariam aqueles que criticariam a nossa falta de capacidade. Os mesmos que provavelmente agora criticam o facto de ela existir. Paradoxo nacional.

Temos a maior zona de responsabilidade aérea – e naval – de toda a Europa. A nossa plataforma continental está prestes a tornar-se gigantesca. A nossa ZEE é imensa. E o que é nosso deverá ser defendido por nós. Com Homens. Com treino. Com equipamento. Esse que dizem que sai caro. No mar, no ar, ou em terra. 

Quando alguém me pergunta, indignado, “porque raio temos 2 submarinos?” eu geralmente respondo “Epah, também não entendo, devíamos ter quatro!”. 

E quatro era pouco. 

Auschwitz

“HALT/STOJ”. 


É isto que podemos encontrar cravado em diversos sinais espalhados por Auschwitz. Ironia. Ironia das mais puras. Como é que um campo desenhado com “exterminação” em mente se pode ver envolto em tanta regra comum. Em tanto formalismo. Em tanta ordem. Até quem pela morte espera o tem de fazer mediante um certo conjunto de regras sem sentido. A humilhação final. 

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Sempre quis visitar Auschwitz. Não por uma espécie de curiosidade mórbida mas por achar que é uma obrigação moral. Obrigação de não esquecer o pior que a nossa natureza (sub)humana produz. 

E Auschwitz 1, Auschwitz Birkenau ou qualquer outro campo semelhante tem locais, espaços e atitudes que nos fazem reflectir. 
Uma câmara de gás temporária, pouco maior que o meu apartamento onde 17.000 pessoas foram assassinadas. Como se um local assim se pudesse chamar de “temporário”. Facto que atesta à dimensão da demência.
Paredes repletas com fotografias das caras daqueles que um dia lá entraram mas de lá não saíram. Faces receosas, consumidas pelo medo. Mas também faces desafiantes como quem perante a barbárie a encara com coragem. Com verdadeiros tomates. 

Campos em que mais de 400.000 pessoas foram “sepultadas” como cinza ao vento. Ali, naquele chão, debaixo dos nossos pés, o maior cemitério do mundo. Sem campas, mas profundamente mais impactante do que qualquer catedral. Profundamente mais chocante. Profundamente mais memorável. 
Visitantes que, por vezes, não se apercebem que este não é um local turístico. Mas um local de memória. Daquela que é digna do nosso mais profundo e sentido respeito. 

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Mas não. Não é nada disto que mais choca em Auschewitz. Não mesmo a industrialização da Morte que aqui existiu. Elevada ao seu expoente máximo. A forma cruel, fria e metódica como era encarada a solução final. 

O que mais choca em Auschwitz é a sua actualidade. 

Rússia. China. Cambodja. Ex-Jugoslávia. Ruanda. Darfur e Sudão do Sul. Síria e Iraque. Tudo no espaço de uma geração.

Fodass”, é o que penso enquanto abandono o campo ao fim do dia, com o sol no horizonte. “Não aprendemos nada nestes últimos 70 anos.”

 

Merlin por uma última vez

O último voo numa aeronave é sempre marcante. Se esse voo for igualmente o último numa esquadra passa a memorável. Se for, também, o último numa instituição torna-se inesquecível. 

Comigo não seria diferente. EH-101. Esquadra 751. Força Aérea Portuguesa. 

A juntar a isso tudo, se alguém registar esse momento de forma fantástica, melhor ainda! 

Todos os direitos reservados a (c) Luís Maia.

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Homenagem

(Escrito em Janeiro de 2015)

Acabo de ver o filme “American Sniper”. Pondo de parte o presente “americanismo” a parte final do filme (início dos créditos) fez-me fazer um paralelismo com a realidade nacional. Na forma como nós, portugueses, honramos quem serviu o seu país. 
 

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Faz um anos, ainda era eu oficial da Força Aérea, fui nomeado para comandar um pelotão na guarda de honra em um funeral de um General que tinha falecido. Verdade seja dita, para nós, pilotos, este género de serviço eram tudo menos desejado. Queríamos voar, voar e voar. Os nossos treinos de ordem unida era tudo menos frequentes. Mas antes de pilotos éramos militares. E ainda bem que assim o é. 


No dia estabelecido lá estávamos. Dois pelotões, impecavelmente formados, à entrada do cemitério do Alto de São João. Na hora estabelecida – e estando a urna a escassos metros da entrada do cemitério – a polícia parou o trânsito e formámos na estrada para prestar a devida homenagem com três salvas de G-3. 
Qual não é o meu espanto quando um popular, sentado na paragem de autocarro mesmo ao lado da formatura, começa a vociferar a plenos pulmões a sua indignação. “É uma vergonha” dizia. “o que é que aquela pessoa tinha a mais que ele para estar aquilo ali montado”. “Estou à espera do autocarro e quero ir para casa”. Entre outros comentários bem menos agradáveis. 
É-me impossível de descrever a raiva que me invadiu naquele momento. Vinda do mais fundo do meu ser. Daquela que nos consome. Que nos faz morder o lábio. Mas a disciplina e a rigidez militar fez que não me mexesse. Que não abrisse a boca. Nem eu nem nenhum dos militares ao meu lado. E prestámos a nossa homenagem. Não demorou mais do que três minutos. Três minutos que alguém não estava disposto a abrir mão como sinal de respeito a alguém que serviu o seu país durante mais de 40 anos. Alguém que lutou pela sua Pátria. Alguém que viveu em combate em meu nome, em nome de todos nós, em nome da nação. 

A forma como tratamos quem nos serve a todos, como país, adefine-nos como povo. Militares, polícias, bombeiros, são tantas vezes injustamente acusados em praça pública. São os chulos. Os que nos “roubam o dinheiro dos impostos”. Quando na realidade estão lá, no duro, todos os dias, dispostos a dar o melhor de si por todos nós. E mesmo que esse respeito não existisse em vida, ao menos que existisse na hora da partida...

Vejo o final do filme. Aquela homenagem nunca seria possível no meu país. E relembro aquele momento de há anos. Baixo a cara. Desta vez não de raiva. Mas de vergonha.

Estou sim? Feliz Natal!

O telefone toca persistente e imune ao dia sinistro que reina lá fora. “Porra”, penso, “se fosse o alerta ligavam-me para o telemóvel, não?”. Activar o alerta por linha fixa é pouco comum fora de horas, especialmente em dias como este: feriado.

“Estou sim?” 

(c) Paul Wex

(c) Paul Wex

Durante a minha passagem pela Força Aérea Portuguesa, e enquanto operacional, passei apenas um Natal completo em casa. E passei-o, provavelmente, porque coincidiu com a minha mudança de frota, do Alouette 3 para o EH-101 “Merlin”. Ano interessante esse. Bacalhau, azeite e manuais de voo na mesa. 

Enquanto estive colocado na base aérea de Beja, por mera casualidade, azar ou outra qualquer razão que me é alheia, fiquei sempre escalado no período natalício. Já na Esquadra 751, fruto do pequeno grupo que éramos e do enorme empenho operacional que tínhamos, o Natal ou Ano novo “calhava a todos”.  Três destacamentos permanentes, quatro tripulações de alerta. Ninguém escapava.  

E foi num desses alertas, dia 24 de Dezembro, que o telefone toca naquele final de tarde fria na Base Aérea do Montijo. 

Do outro lado uma voz cansada, mas firme, testemunha provavelmente de uma longa vida: “Boa noite caro Tenente, gostaria de lhe desejar um Feliz Natal a si e à sua tripulação”

É das coisas que mais me arrependo, mas devo confessar que não me recordo do nome, do posto, ou das datas em que serviu. Do outro lado da linha encontrava-se um ex-militar que naquela Esquadra tinha servido. Fazia anos. Décadas. E, vim a saber mais tarde, que todos os anos ligava pessoalmente para a Esquadra para desejar um feliz Natal a todos os que estivessem de alerta naquele dia. Todo o santo ano.  

Décadas separavam-nos. A mim e a ele. Mas a camaradagem, o espírito de corpo, esse, pelos vistos, mantinham-se inalterado. 

Nos diversos Natais em que passei a trabalhar na Esquadra 751 sempre recebi aquela chamada. E ela produzia em mim sempre o mesmo efeito: enchia-me de orgulho. De felicidade. Felicidade em ver que ali estava alguém que - como eu - se sentiu marcado por aquela casa e que fazia questão de ligar, de perder um pouco do tempo do seu Natal, para desejar Boas Festas aos seus camaradas que não podiam estar em casa, com a família. Uma atitude que, confesso, nunca vi reproduzida pela cadeia de comando a nível superior, fora das esquadras de voo..

Algo tão simples, tão inócuo, tão vulgar mas que naquele instante, naquele dia, fazia todo o sentido no Universo. 

A melhor prenda de Natal que alguém de alerta, longe de casa, poderia receber. 

Onde quer que ele esteja agora... Feliz Natal camarada. 

www.merlin37.com/feliznatal751

Spotter

Faça chuva, faça sol. Faça vento, frio ou um calor infernal. Ele estará sempre por lá. O “Spotter”. O entusiasta da aviação. Aquele colete amarelo fluorescente do lado de lá da vedação que cumprimento sempre que posso.

Foto (c) André Nobre

Foto (c) André Nobre

A minha paixão pela aviação é tão antiga como eu. Está lá desde que me lembro. Vibrava quando via um A-7 a cruzar os céus da Beira Interior. Saltava de gozo quando um Lynx da aviação naval teimava em “surfar” as ondas da Caparica. Desesperava por um festival aéreo. O cheiro. O som. O espírito. Tudo naquilo mexia comigo.
E tive o privilégio de passar para o “lado de lá da barricada”. Força Aérea, TAP, mas sempre o mesmo espírito. Aquele de miúdo, de entusiasta.

Muitas vezes ignorados, gozados até, os “spotters” e os entusiastas fizeram mais pela aviação, e pela divulgação da mesma, como ninguém. Por vezes incompreendidos, a paixão que demonstram, que os leva a acordar às quatro da manhã para irem ver uns malucos das máquinas voadoras a 600km de distância devia ser um exemplo para todos, inclusive para quem trabalha “de dentro”. Eles fotografam, eles escrevem, eles divulgam e fazem-no apenas por gosto. Por amor. Sem esperar nada em troca.

A “malta” da minha geração que, como eu, se juntava para ir ver uns aviões são hoje fotógrafos de renome. Jornalistas e escritores para publicações internacionais. Escrevem livros e editam vídeos com centenas de milhares de visualizações. Criam fóruns e blogs que se tornam referência. Levam o nome, ou devo dizer “elevam” o nome, da indústria, das esquadras de voo, das empresas cada vez mais alto.

Em Beja ou em Pedras Rubras. Em Monte Real ou no Faial. De marmita numa mão e máquina na outra. Com a cara vermelha queimada de tanto sol, de fazer inveja a qualquer inglês que passe dois dias no Algarve. Eles estão lá. É raro encontrar uma dedicação assim.

Pela vossa paixão….

… Obrigado “spotters”!

Chickenhawk

Conto pelos dedos de uma mão os livros que li e voltei a ler, em parte, mais tarde. Mas até hoje apenas um me cativou, por completo, duas vezes: Chickenhawk.

chickenhawk

"Lá está este gajo outra vez com helicópteros" dirá o leitor. Pelo contrário. Não me interpretem mal... Chickenhawk é sem dúvida a bíblia para qualquer piloto de helicópteros e é sem dúvida obrigatório para qualquer piloto. Mas é muito mais do que isso. É um excelente livro, e repito, excelente, mesmo para quem não tenha qualquer relação com o mundo da aviação. 

Robert Mason, ex piloto de UH-1 Huey, deixa-nos um relato nu e cru da realidade da guerra. Como costumamos dizer, "sem espinhas". Sem vergonha. Sem pudor. Sem patriotismos. Uma das mais frontais perspectivas do que foi a guerra do Vietname e o seu impacto em quem ela lutou. 

Não sabem o que ler este Natal? Acabaram-se as dúvidas.

Chickenhawk.

A máquina

35ºC. Beja. Final da manhã. Tempo seco. Aterro o Alouette III no heliporto e já anseio por aquela cerveja gelada no bar na esquadra. Como era natural no período de verão, um Kamov da proteção civil garantia o alerta aos incêndios na base de Beja. A minha aterragem é literalmente à frente do hangar onde este se encontra. Ali estava ele, adormecido.

Alouette3

Já no bar da Esquadra encontro o comandante do mesmo. Piloto experiente, formado naquela escola: Força Aérea. Com muitas horas de Alouette III tinha sido piloto durante o conflito do Ultramar. E, como manda a tradição aeronáutica, começamos a trocar “estórias”. Ou melhor… eu, maçarico dos maçaricos, apenas oiço, de boca aberta. De entre várias peripécias uma captou-me a atenção: uma recolha de Comandos do mato, na véspera de um dia importante (Natal seria?) em que, ao por do sol, e na última leva de recolha, depararam-se com um problema grave. Aterraram – em território hostil – resolveram o mesmo, descolaram e lá recuperaram os últimos homens no terreno. In extremis.

Porra”. Pensava eu. “Que estória!”

Lembro-me que num dos eventos que a Esquadra 552 organizava anualmente, aberto ao público e especialmente aos ex-militares, falava com um veterano do tempo do Ultramar. Se a memória não me falha teria sido mecânico… operador de helicanhão talvez. Ao aproximar-se de um helicóptero, de uma forma tão gentil como quem acaricia uma mulher, coloca a mão na cauda de um dos helicópteros e começa a chorar. Um choro genuíno. De memória. De emoção. Um choro de quem encontra um velho amigo que o safou de muitas situações há muito tempo atrás.

Não existe provavelmente nenhuma aeronave na Força Aérea Portuguesa com tanta história, “estórias” e poder no imaginário das pessoas como o Alouette III. O pessoal da asa fixa irá sempre refutar esta afirmação (como é apanágio da rivalidade vivida no seio do ambiente militar) mas lá no fundo sabem que é verdade.

Mais de cinquenta anos de história. Combate em três teatros de operação diferentes. Centenas, ou milhares, de pilotos por “ele formado”. Uma máquina infernal, fiável como um carro japonês. Divertida de voar como um kart. Estimada e respeitada por todos aqueles que nela voaram. Máquina de salvação para centenas de militares e civis. Voada por camaradas de outros tempos e deste. O Alouette III é um marco aviação portuguesa.

Mas voltemos aquela “estória” no bar de Esquadra. Perante a minha cara de fascínio, diz-me o comandante de Kamov:

“Mas sabes porque é que te estou a contar esta estória?”
“Não faço ideia!”
“É que o helicóptero com que voei nesse dia foi o helicóptero com que tu voaste hoje.”

E aí senti todo o peso daquela imensa história sobre os meus ombros. O número de cauda estava lá de facto, seria aquele, com um número a mais. O helicóptero, fisicamente, já não seria o mesmo. Já seria quase completamente "novo" com alterações, revisões e peças novas ao longo de décadas. Mas isso não interessa. Era “aquele”. “Aquele” Alouette.

Fiquei sem palavras.

Não é por acaso que o brinde típico na 552 seja “À máquina!”.

E que máquina!