A vida operacional de um piloto militar não tem falta de aventura. Muito menos numa Esquadra de busca de salvamento. As missões reais são frequentes. As missão tácticas são uma emoção. As missões de treino são sempre – sempre! – diferentes.
Difícil de superar. Mas às vezes acontece. Foi o caso do voo que fiz com o Ricardo.
O Ricardo tem quase a minha idade. De facto podia ser eu. O nome até é o mesmo. Mas um dia a vida pregou-lhe uma partida: sofreu um acidente de viação grave que o deixou paraplégico. Para sempre dependente de uma fria e impessoal cadeira de rodas. No dia do seu acidente foi evacuado de helicóptero para a unidade hospitalar mais conveniente, e, provavelmente, deve a sua vida a esse voo. A sua mãe, ciente disso, contactou a Força Aérea inquirindo se seria possível o seu filho fazer um voo, talvez voltar a sentir aquela sensação de liberdade que a vida injustamente lhe roubou.
A Força Aérea Portuguesa tem muitas maneiras de deixar um tipo fulo. Frustrado. Fora de si com a pesada máquina burocrática que por vezes existe. Mas também nos é capaz de encher de orgulho como instituição. E este foi um dos casos. A Força Aérea disse que sim.
E tenho o Ricardo à minha frente.
Falamos todos. Eu, ele, a mãe e toda a tripulação. Aprendemos um pouco sobre a sua vida e sua luta herculeana. Quem me dera a mim ter um décimo da coragem e força de vontade que o Ricardo tem. Qual um décimo! Quem me ter um centésimo da sua força de viver!
É apresentado um pequeno briefing com a história da Esquadra e procedimentos de segurança. Discutimos um pouco sobre voo. Aproveitando um voo de treino regular da Esquadra, iremos levar o Ricardo por algumas manobras de contacto à vertical da Base Aérea do Montijo. Voo baixo, voltas apertadas, rotações, um pouco de “táctico” enfim... tudo aquilo que um helicóptero pode fazer e que é invejado por todas as outras máquinas voadoras. E sempre de porta aberta. Sempre. Para sentir o vento como só os pássaros sentem. O pináculo da sensação de voar.
E assim foi. Descolamos e iniciamos o nosso perfil. Sempre com o cuidado de saber se o Ricardo está a gostar. Após o voo convivemos no bar da Esquadra. A nossa “toca” que tem mais história – e estórias! – naquelas paredes que todos os livros de Saramago e Lobo Antunes juntos.
Aquele foi um dia especial. Não só porque o Ricardo voou connosco. Mas porque tive a honra de, naquele voo, fazer a minha milionésima hora de voo em helicópteros. Mil horas porra! As primeira mil. Não me consigo lembrar de um melhor voo para celebrar este marco. Até tenho uma pequena garrafa de champanhe, oferecida por um bom amigo, religiosamente guardada no meu gabinete para celebrar este facto.
Ele há dias de merda. Dias em que um gajo vai para casa farto. Saturado. Cansado. Em que qualquer contacto humano é como enfrentar a inquisição espanhola. Mas ele há dias bons.
E este é um dia bom.
O Ricardo pode ir para casa com um sorriso nos lábios. Eu também. Mas o meu? O meu é bem maior…
Obrigado Ricardo.
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