A máquina

35ºC. Beja. Final da manhã. Tempo seco. Aterro o Alouette III no heliporto e já anseio por aquela cerveja gelada no bar na esquadra. Como era natural no período de verão, um Kamov da proteção civil garantia o alerta aos incêndios na base de Beja. A minha aterragem é literalmente à frente do hangar onde este se encontra. Ali estava ele, adormecido.

Alouette3

Já no bar da Esquadra encontro o comandante do mesmo. Piloto experiente, formado naquela escola: Força Aérea. Com muitas horas de Alouette III tinha sido piloto durante o conflito do Ultramar. E, como manda a tradição aeronáutica, começamos a trocar “estórias”. Ou melhor… eu, maçarico dos maçaricos, apenas oiço, de boca aberta. De entre várias peripécias uma captou-me a atenção: uma recolha de Comandos do mato, na véspera de um dia importante (Natal seria?) em que, ao por do sol, e na última leva de recolha, depararam-se com um problema grave. Aterraram – em território hostil – resolveram o mesmo, descolaram e lá recuperaram os últimos homens no terreno. In extremis.

Porra”. Pensava eu. “Que estória!”

Lembro-me que num dos eventos que a Esquadra 552 organizava anualmente, aberto ao público e especialmente aos ex-militares, falava com um veterano do tempo do Ultramar. Se a memória não me falha teria sido mecânico… operador de helicanhão talvez. Ao aproximar-se de um helicóptero, de uma forma tão gentil como quem acaricia uma mulher, coloca a mão na cauda de um dos helicópteros e começa a chorar. Um choro genuíno. De memória. De emoção. Um choro de quem encontra um velho amigo que o safou de muitas situações há muito tempo atrás.

Não existe provavelmente nenhuma aeronave na Força Aérea Portuguesa com tanta história, “estórias” e poder no imaginário das pessoas como o Alouette III. O pessoal da asa fixa irá sempre refutar esta afirmação (como é apanágio da rivalidade vivida no seio do ambiente militar) mas lá no fundo sabem que é verdade.

Mais de cinquenta anos de história. Combate em três teatros de operação diferentes. Centenas, ou milhares, de pilotos por “ele formado”. Uma máquina infernal, fiável como um carro japonês. Divertida de voar como um kart. Estimada e respeitada por todos aqueles que nela voaram. Máquina de salvação para centenas de militares e civis. Voada por camaradas de outros tempos e deste. O Alouette III é um marco aviação portuguesa.

Mas voltemos aquela “estória” no bar de Esquadra. Perante a minha cara de fascínio, diz-me o comandante de Kamov:

“Mas sabes porque é que te estou a contar esta estória?”
“Não faço ideia!”
“É que o helicóptero com que voei nesse dia foi o helicóptero com que tu voaste hoje.”

E aí senti todo o peso daquela imensa história sobre os meus ombros. O número de cauda estava lá de facto, seria aquele, com um número a mais. O helicóptero, fisicamente, já não seria o mesmo. Já seria quase completamente "novo" com alterações, revisões e peças novas ao longo de décadas. Mas isso não interessa. Era “aquele”. “Aquele” Alouette.

Fiquei sem palavras.

Não é por acaso que o brinde típico na 552 seja “À máquina!”.

E que máquina!

Força Aérea, Pilotos e a política que nunca muda

(Escrito a 12 Outubro 2014)

Dou por mim a olhar para a parede do quarto de forma filosófica. Será que a consigo deitar abaixo com a cabeça? É o que me apetece. É o que me apetece- genuinamente – depois de ler os comentários às notícias sobre a “reunião” dos pilotos militares. 
 

Foto: (c) António Catroga CAVFAP

Foto: (c) António Catroga CAVFAP


Faço desde já a minha declaração de interesses. Fui piloto militar por mais de 8 anos. Foi o meu sonho de criança. Vestir pela última vez o fato de voo foi dos piores momentos da minha existência. E agora vamos ao que interessa. 

O problema? A saída de pilotos militares para o mundo civil. A minha indignação? A atitude – tipicamente portuguesa é certo – de quem critica tudo e todos sem, de facto, criticar o que merece ser criticado. 

Este é um problema que existe há décadas. Como é normal em Portugal, o conceito de “décadas” não é suficiente para resolver um problema. Precisamos, provavelmente, de séculos. A inexistência de pragmatismo surpreende-me. 

Continuamos a pensar – como país, como povo, como grupo – a curto prazo. O país investe milhões na formação de um indivíduo com uma formação muito específica, longa e exigente. Esse indivíduo, ao longo da sua carreira, irá passar por diversas situações de perigo iminente, de exigência extrema, de “stress” levado ao limite da compreensão. Irá passar por períodos longos de ausência familiar, em missão fora do seu país ou da sua zona e, tudo isto, importante não esquecer, após jurar defender o seu país “mesmo com o sacrifício da própria vida”.
Repito. “Mesmo com o sacrifício da própria vida”.
Nunca, pelo menos no tempo em que eu lá estive, nenhuma missão ficou por cumprir. Estivesse chuva, estivesse sol. Em Portugal ou no Afeganistão. Ou como hoje. No Mali ou na Lituânia. E nunca, nunca, ninguém ouvirá esses pilotos dizer que não gostam do que fazem. Pelo contrário. Todos sentem como um privilégio voar como só um aviador militar voa.

E é contra estes indivíduos que a rapaziada se indigna? Contra os pilotos que defendem o espaço aéreo europeu na Lituânia, contra os pilotos que combatem o extremismo islâmico no Mali, contra os pilotos que descolam às três da manhã no meio de um dia de trovoada para resgatar alguém que não conhecem? E tudo isto, convém realçar, ganhando menos que um condutor de um ministro? 

Está na natureza humana procurar uma vida melhor. Em todos nós. Que atire a primeira pedra o primeiro indivíduo que não ponderaria seriamente abandonar o seu emprego por outro que oferece um ordenado quatro vezes superior, mais tempo em casa e melhores condições gerais. Venha o primeiro. E com os pilotos militares teria de ser diferente? Qualquer piloto militar, ou qualquer outra especialidade é certo, cumpre o tempo mínimo que lhe é exigido. oito ou doze anos. Após isso alguns procuram – e bem – uma vida melhor para si e para a sua família. Uns dão o “extra-mile”. Outros não. E que nunca ninguém duvide da sua dedicação e amor à sua Pátria. Dos que ficam ou dos que vão.

Quem eu critico? Eu critico quem deixa esta situação chegar onde chegou. Quem prefere perder vinte pilotos todos os anos e gastar mais a formar outros vinte. Quem prefere encostar pilotos a secretárias por serem milicianos, a deixá-los sair ou voar nas esquadras - trabalho para o qual foram efectivamente contratados. 

Formamos profissionais de milhões, e depois não lhes damos as condições necessárias para que quem quiser continuar continue. A Força Aérea não é uma prisão. É uma instituição constituída por pessoas. Pessoas com um exigente grau de responsabilidade. E como qualquer outra pessoa, também estas têm um limite. 

 

Está na altura de garantirmos que esse limite não é ultrapassado. Está na altura de darmos condições a quem as merece. Não é só moralmente correcto. É economicamente eficiente.

Dia da criança

Sou um tipo novo. Vá. Semi-novo. E às vezes apercebo-me que já tenho umas quantas “estórias” no baú. E daquelas de que quando me lembro me evoca um sorriso de orelha a orelha. Aturai-me.:

acoreseh101

01 de Junho, dia da criança estávamos em 2011.

Era mais uma daquelas noites de alerta nos Açores em que só pensamos para nós mesmos: “hoje espero não voar”. E claro, o telefone toca.

Fato de voo, botas, água pela cara abaixo, tudo em menos de vinte segundos. Descolamos logo que possível. A missão: um recém-nascido, de sete meses, em estado grave para ser transportado do Faial para Ponta Delgada. Pelo meio iríamos aterrar no heliporto de Angra do Heroísmo para recolher uma incubadora essencial para a sobrevivência do nosso mais pequeno companheiro.
Tempo? Típico dos Açores. Tectos baixos, ventos fortes, chove, não chove, chove, não chove. Radar sempre ligado. Aterramos em Angra do Heroísmo recolhemos a incubadora e a equipa médica. Seguimos para o Faial e por lá ficamos cerca de uma hora, à espera que estabilizem a criança. Descolamos em direção a Ponta Delgada – mais tempo horrível – onde deixamos finalmente o pequeno e a mãe. Regressamos às Lajes com o sol a nascer e com uma camada de nuvens simplesmente fantástica por debaixo de nós. Uma daquelas noites em que os astros se alinharam e o efeito das luzes do helicóptero nos cristais de água fazia as nuvens, ali aos nossos pés, brilhar com as cores do arco-íris. Isto numa noite escura como breu. Foi a noite inteira a voar. Mas nenhum de nós tinha sono. Nenhum de nós estava cansado. Estávamos apenas… com um orgulhoso sorriso.


Orgulho-me de viver numa época, numa sociedade, num país, em que numa noite, em 3 pedaços de terra diferentes perdidos no meio do oceano atlântico dezenas de pessoas se juntaram para ajudar aquela criança. Todos acordaram de madrugada e trabalharam em conjunto – Tripulação do helicóptero, Controladores Aéreos, Médicos, Enfermeiros, Bombeiros, Pessoal do Aeroporto, Combustível, Condutores, pessoal dos hospitais, pessoal de serviço da proteção civil – para que aquele bebé frágil sobrevivesse. Infelizmente, não me lembro do nome dele.

Nunca mais encarei o dia da criança da mesma maneira. Foi, para mim, o dia em que dezenas de estranhos, incógnitos, se juntaram para ajudar um pequeno compatriota a viver mais um dia, mais uma semana, meses, anos… E é essa a memória que vai comigo. Para sempre.


Quem sabe, talvez um dia ele leia este texto.

www.merlin37.com/diadacrianca

Rays of Hope

"Fodass, mas quem é este gajo?" Se há algo que uma tripulação tem de sobra quando está destacada nos Açores são tempos mortos. Pacientemente a aguardar que o telefone toque com notícias de um qualquer naufrágio. E portanto ali estava eu, sentado, no clube de oficiais, a explorar vídeos no Vimeo, quando me cruzei com um nome que nunca mais esqueceria: Paul Wex.

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Vídeo atrás de vídeo devorei-os a todos. Headsets na cabeça, o mundo que me rodeava era-me indiferente. Passava-me, literalmente, ao lado. "Este gajo é um génio". E é quando se dá aquele  momento "Eureka" (eu também os tenho, quem diria!). "E se este tipo produzisse um filme sobre a Esquadra?" 

"Ele nunca vai aceitar". "É difícil". "É estrangeiro". "Um gajo tão bom nunca virá, e certamente nunca a custo zero". Todos estes pensamentos me amaldiçoaram o julgamento. Mas se há algo que aprendi com os meus ingénuos dezassete anos e saídas nocturnas foi "que o não é garantido o sim é bem vindo".

Ali, naquele momento, escrevi-lhe um e-mail. Peguei no telefone e liguei a um pobre Major oficial de relações públicas a explicar-lhe a ideia (digo pobre porque para me aturar ele tinha - e tem! - uma paciência do outro mundo. De espírito era exactamente o oposto: dos melhores, mais fantásticos e pró-activos militares com quem tive o prazer de me cruzar). 

E o homem sonha. E a obra nasce. 

Paul Wegschaider. Austríaco de Graz, a segunda maior cidade daquela nação. E-mail após e-mail, chamada após chamada, foi combinada e coordenada a vinda do próprio. Uma semana com a Esquadra 751, a voar e a conviver connosco. E a filmar. Por vezes de uma forma que nos punha a pensar: "Mas que é que este gajo está a filmar daquela maneira?". Mas é essa a marca dos gajos bons. Eu, parte integrante da classe dos gajos normais, não entendia ao princípio. Quando vi o resultado final não evitei uma gargalhada de felicidade pura. 

Orgulho-me de ter servido naquela esquadra numa altura em que ela se viu munida de uma quantidade de indivíduos excepcionais. Não só como pilotos, recuperadores-salvadores, operadores de sistemas ou mecânicos. Mas como profissionais e pessoas que queriam fazer mais, criar, andar para a frente. Muitas vezes contra a infernal máquina burocráticas das grandes instituições. E isso respirava-se no ar. Sentia-se. Foi, sem dúvida, uma "época de ouro". E eu tinha naquele gabinete de relações públicas da Esquadra 751 dois dos mais fantásticos oficiais com quem trabalhei na Força Aérea. Na altura Tenentes, agora Capitães. E que ainda hoje lá estão. Umas máquinas. E sem eles este pequeno pedaço de gelado santini cinéfilo também não seria possível. 

Mas chega de conversa fiada. Disso estão vocês fartos.

Vale sempre a pena relembrar o que é bom. E este filme é muito bom. Senhores e senhoras, do génio de  Paul Wegschaider, Rays of Hope


It´s not over until it´s over!

Se perguntarem a qualquer piloto militar português qual a situação que mais stress lhes incutia durante o curso estou certo que a resposta será unânime. Clara como água. “Emergência da manhã”.


A “emergência da manhã”, cruelmente presente ao longo da instrução de um aluno piloto, consiste na resolução simulada de uma situação de emergência hipotética apresentada ao aluno durante o briefing de esquadra. Significa isto que todos os pilotos instrutores e alunos estarão presentes, e que o “feliz” contemplado terá de resolver, de pé, à frente de todos os presentes a referida situação. É geralmente o pico de tensão do dia e todos têm uma forma muito peculiar de lidar com isso. Fosse silêncio. Fosse um tremor que não teimava em parar. Fosse mesmo um ocasional vómito.

Durante toda a minha permanência na Esquadra 101 “Roncos”, fui chamado um total de quatro vezes. No meu último dia na Esquadra, tendo já terminado o meu curso, aguardando apenas a transferência para a Esquadra 552 “Zangões” onde iria aprender a arte de voar helicópteros, dirigi-me para o briefing de esquadra com uma descontracção pouco comum. Encarava – erradamente – a minha presença no briefing apenas como uma situação passageira, uma mera acção protocolar.Terça-feira. Meio de Outubro. Dia fabuloso lá fora. Oiço aquela som típico de aviso de início de briefing. Aquele som que tanto “terror” me tinha inspirado, que tanto suor me tinha feito derramar e que tanta ansiedade provocava. Mas não. Hoje não…
Sento-me no meu lugar habitual. Dá-se início ao briefing. Este conta com um resumo da actividade aérea diária planeada, da contabilização de presenças dos instrutores e alunos tal como diversas outros aspectos operacionais. Calmo, lá permanecia no meu lugar a,confesso, pensar no que me esperava nos helicópteros.
Aproxima-se a altura da emergência e um instrutor da Secção de Uniformização e Avaliação (SUA) sobe ao palanque e inicia a exposição da emergência.

“Estamos a Flight Level 070, a aproximarmo-nos do GAIOS, em
contacto com Lisboa TMA…” e… bem, o resto nem ouvi.

Eu, calmo, de cabeça baixa pensava em rotores. Por mais alheados que estejamos do mundo exterior, existem palavras, sons ou músicas, que, ao ouvirmos, mesmo inconscientemente, nos despertam a atenção. Uma dessas – e isso aprende-se rápido na Esquadra 101 – é o nosso nome.

“Aspirante Nunes”.

Congelo. Conseguia ouvir uma mosca bater as asas.
Movo ligeiramente cabeça à minha volta e noto que todos olham para mim. Silêncio aterrador. Olho para o instrutor no palanque.

“A aeronave é do Aspirante Nunes.”

Sai-me, baixinho:

“Como, desculpe?”
“A aeronave é sua…”

Ali, naquele momento, foi como se tivesse sido atingido pelo Alfa- Pendular (comboio que liga as principais cidades em Portugal)
Escapa-me um sincero:

“Porra… mas eu já acabei isto!” -Felizmente só ouvido por aqueles que estavam ao meu lado.

“Bem. Ou vai ou racha”, penso.
Levanto-me, e com a típica descontracção de quem sabia que daqui a três horas estaria noutra Esquadra, faço o melhor que posso. E, curiosamente, foi a melhor resolução que tive durante toda a minha permanência na Esquadra 101. Coisas do destino. Lição de vida.

A aviação militar é feita destas pequenas lições. Nunca baixar os
braços, nunca descontrair, nunca facilitar. É-nos incutido na alma, gravado na nossa personalidade de aviador. Para nunca esquecer. Mais tarde, como comandante de EH-101 “Merlin” vim a dar muito valor a esta (e outras) lição(ões).

“It´s not over until it´s over”!

Quando a coragem se senta ao nosso lado

“Foi o dia mais feliz da minha vida”. Uma frase que todos nós dizemos com a leviandade típica do momento presente. Mas às vezes é muito mais profundo do que isso.

Foto: Menso Van Westrhenen (todos os direitos reservados)

Foto: Menso Van Westrhenen (todos os direitos reservados)

Cruzei-me ao longo da vida, como todos nós, com pessoas que são para nós exemplos… e outras que representam exactamente o contrário.Há os indivíduos que nos fazem pensar “eu quero ser como este tipo um dia” e aqueles que nos fazem perder a fé na raça humana. Mas são raros os casos de genuína admiração. Especialmente se tivermos a falar de um grupo inteiro de rapaziada.

Nos últimos anos ganhei a mais profunda admiração e respeito por um desses grupos. Chamam-se Recuperadores Salvadores.

Homens como eu, tu ou você que, do nada, se penduram num cabo de aço, deixando a segurança de um helicóptero perfeitamente voável, para retirar das garras da morte alguém que não conhecem. Homens que descem para vagas de 10 metros, para navios que teimam em não ficar quietos, para escarpas maiores que o maior prédio existente em Portugal sem nunca hesitar. Sem nunca dizer “não”. Sem nunca por em causa que aquela vida, lá em baixo, é sagrada, e que para salvá-la vale a pena por em risco a sua própria. Literalmente, a vida presa por um cabo.

Dentro de um helicóptero de busca e salvamento a coordenação, o trabalho de equipa, o profissionalismo e a calma de todos é essencial. A missão só é cumprida, aquele filho, pai ou irmão de alguém só chegará a casa se todos trabalharem em conjunto na mais suave das harmonias. É, e tem de ser, a mais perfeita equipa, composta por pilotos, operadores de sistemas, recuperadores e enfermeiros. Mas a Coragem destes Homens (recuperadores) nunca deixou de me surpreender. É merecedora do meu mais profundo respeito. Daquele que vem de dentro.

Um dia, numa reportagem para uma das televisões nacionais, a jornalista perguntou a um ex-recuperador salvador como é que ele se sentia no dia em que resgatou vários náufragos de um navio que afundou ao largo da costa portuguesa e que lhe tinha valido lesões que o deixaram paraplégico para todo o sempre. Agarrado e submisso a uma cadeira de rodas. Ao que ele respondeu, com a típica bravura que os caracteriza “foi o dia mais feliz da minha vida”.

“Porra” pensei “que orgulho em saber que ainda existem Homens destes”.

Vikings em Portugal

Fui invadido por aquela sensação de quem vê um velho amigo. Ali estava ele. Aliás, eles, numa placa no centro da Base Aérea do Montijo. Dois EH-101 “Merlin” silenciosamente prontos, um ao lado do outro. Mas estes tinham uma cor diferente aos que eu estava habituado. Não enganavam. Eram dinamarqueses. Esquadra 722. 

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Chegamos a meio da manhã ao edifício onde o destacamento dinamarquês está instalado na Base Aérea nº 6. Antigo edifício do despacho e último reduto da Esquadra 401 nesta unidade. Lembro-me bem de passar por aqui algum tempo. 

Somos imediatamente recebidos pelo Capitão “VAN” (callsign táctico, todos os nomes foram omitidos nesta reportagem). Na Força Aérea Dinamarquesa desde o ano 2000, piloto de EH-101 Merlin e de Fennec e com três destacamentos operacionais no Iraque e no Afeganistão, “VAN” encaminha-nos para o briefing geral da missão. 

Missão para hoje: treino de procedimentos operacionais e formação até Santa Margarida, voo táctico na área, e regresso ao Montijo. 

“Tinha saudades disto”, confesso. A malta dos helicópteros será sempre a malta dos helicópteros. Uma maneira de estar diferente e de bem receber. E isso nota-se. 

A Força Aérea Dinamarquesa (RDAF) adquiriu catorze EH-101 Merlin em duas versões distintas: oito em versão SAR (Search and Rescue/Busca e Salvamento) e seis em versão táctica, especialmente equipados para ambientes não permissivos com equipamento de guerra electrónica, contra-medidas e armamento. Embora todas as aeronaves possam – e executam – a missão SAR, apenas estas seis aeronaves se encontram configuradas para missões tácticas. No entanto, toda a frota está preparada para ser reconfigurada, se assim for necessário, para a configuração táctica. Em tudo semelhante à frota portuguesa de EH-101. 

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Callsign para a missão: “Viking 72” e “Viking 73”. Pomos em marcha na placa e descolamos da pista 01. A nossa boleia para hoje é o “Viking 73”, descolamos a número dois, na asa. O som do Merlin é, para mim, inconfundível e a rampa e portas abertas tiram-me qualquer dúvida que estou de volta a um ambiente de voo militar. “Espectáculo!” 

O voo para a área de trabalho é efectuado sempre em formação “low level”, alternando a posição e o tipo de formação utilizada, para benefício de todas as tripulações envolvidas. O tempo está excelente. Céu azul e óptima visibilidade. CAVOK nacional.

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“Porquê Portugal?” pergunto ao “VAN” mais tarde. A razão é simples: pela possibilidade de treino de “dust landings” (aterragens com muito baixo nível de visibilidade devido ao pó e poeira que o efeito “downwash” do helicóptero invariavelmente levanta)  e pela presença da Esquadra 751 e dos Merlins portugueses, o que facilita a troca de experiências com os operadores portugueses. 

O destacamento dinamarquês iniciou-se a 3 de Novembro e está previsto terminar a 6 de Dezembro. A primeira parte do destacamento decorreu na Base Aérea nº 11, Beja, e a segunda – e maior – na Base Aérea nº 6 Montijo. As duas aeronaves aqui presentes voaram directamente do seu destacamento no Afeganistão, parando em Portugal antes do seu regresso final à Dinamarca. Foi o último destacamento para os Merlins dinamarqueses naquele teatro de operações. Por agora.  

“VAN” recorda-se de algumas das missões mais marcantes no Afeganistão. “As inserções de operações especiais e sem dúvida a operação de apoio às eleições afegãs”. Nesta operação dezenas de meios aéreos da NATO foram empenhados, de forma coordenada e simultaneamente, de modo a garantir a segurança e o transporte dos boletins de voto por todo o país. Logisticamente e operacionalmente um feito épico. 

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Chegamos à zona de operações – o campo militar de Santa Margarida - e iniciamos o treino táctico já apenas com uma aeronave. Quando alguém me pergunta do que sinto mais falta dos meus tempos de voo militar a minha resposta é imutável: voar formação e voar baixo. E aqui estou, de volta às origens. Ele há dias assim!

Sempre em “low level” executamos um sem número de circuitos para aterragem em locais não preparados. Seja numa clareira que deixa pouco mais que uns metros de espaçamento entre o rotor e as árvores, seja em locais com declive assinalável, a coordenação entre toda a tripulação é evidente. Afinal de contas todos eles têm pelo menos um destacamento operacional num teatro de guerra fora da Dinamarca. E todos fazem parte da mesma esquadra: a 722. 

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A Esquadra 722, baseada na base aérea de Karup, no norte da Dinamarca, possui um total de oito tripulações tácticas embora apenas seis se encontrem qualificadas de momento. Estas tripulações são normalmente constituídas por dois pilotos, um mecânico de voo e um “loadmaster”, sendo que em missões tácticas reais a tripulação é reforçada por mais um elemento de modo a que o armamento do Merlin tenha todo ele um operador – duas armas laterais e uma na rampa. A juntar a isto a Esquadra 722 garante igualmente o alerta SAR na Dinamarca com três aeronaves e três tripulações em alerta 24 horas em três diferentes bases permanentes espalhadas pelo país. A 722 tem à sua disposição dezanove tripulações SAR. As tripulações tácticas apenas voam, e treinam, táctico. O mesmo se aplica às tripulações SAR: apenas voam, e treinam, busca e salvamento. 

O destacamento operacional da 722 no Afeganistão durou sensivelmente ano e meio, com um sistema rotacional de tripulações a sensivelmente cada dois meses. Num destes destacamento um EH-101 despenhou-se durante uma aterragem táctica, estando a ser avaliada a possibilidade de reparar a célula para retorno ao serviço. Felizmente não houve fatalidades registadas.  

As tripulações da Esquadra 722 participam igualmente, e de forma regular, em treinos e destacamentos em países aliados como os Estados Unidos, Reino Unido (País de Gales) ou os vizinhos nórdicos. A razão? “Aproveitar todas as potencialidades do terreno montanhoso ali existente e as enormes áreas de treino” refere “VAN”. 

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Após várias aterragens por Santa Margarida, seguimos para algo que me é bastante familiar: operação de guincho em terra. Efectuamos dois circuitos e são efecutados um total de quatro guinchos para um terreno previamente reconhecido. Descolagem à vertical (ah, que vontade estar aos comandos!) e vamos embora. Ou então não. “Exercise, Exercise, Exercise...” ecoa nos rádios. De surpresa é simulada a necessidade de uma evacuação urgente de um soldado aliado em estado crítico (CASEVAC). São introduzidas as coordenadas e prosseguimos low-level até ao local, aterragem táctica, e simula-se a evacuação. Tudo em poucos minutos. Descolagem num piscar de olhos e... “SAM, SAM, SAM”. Numa série de manobras evasivas evitamos a ameaça terra-ar simulada. E aqui (re)vivi a verdadeira capacidade de manobra do Merlin! 

“Bem, desta não estava à espera” comento. 

É tempo de regressar ao Montijo. Regressamos efectuando uma navegação visual baixa via Montargil, Benavente e Alcochete. 

 

De volta a terra firme converso um pouco mais com o “VAN”. Fica registado a excelente imagem de profissionalismo e colaboração que várias unidades nacionais deixaram no destacamento dinamarquês. A UPF (Unidade de Protecção de Força da Força Aérea), o DAE (Destacamento de Acções Especiais) da Marinha e a Esquadra 751 destacam-se, de entre outras.  

O feedback finaldo destacamento é positivo, não tendo uma única missão sido cancelada por meteorologia, mas existem algumas arestas por limar, especialmente nas regras de utilização e nas reservas das áreas de trabalho a nível nacional. 

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Para terminar, pergunto-lhe para me descrever em uma ou duas palavras algumas características nacionais: 

“Comida portuguesa”? “Autêntica. Fresca!”

“O tempo”? “Espectacular!”

“E as mulheres portuguesas?” “Absolutamente lindas!” 

A isto se chama diplomacia! Tak! 

 


Fotos: André Garcez(c)

Callsign Mocho: A largada de helicóptero.

Existem marcos na vida de um piloto. Momentos em que as suas dúvidas, força, medos e confiança se encontram num único período temporal. As largadas são invariavelmente um desses momentos.

Queija de Serpa, um bom vinho tinto e voar de Alouette 3. Prazeres que só o Alentejo proporciona...

Queija de Serpa, um bom vinho tinto e voar de Alouette 3. Prazeres que só o Alentejo proporciona...

07H35. Toca o despertador do telemóvel. Almejo o dia que o vou poder atirar contra a parede. Toca contínua e cruelmente. Mas hoje saio da cama com um sorriso. Era o dia da minha largada em Alouette 3. O meu voo de largada tinha vindo a ser adiado constantemente ao longo da semana por meteorologia. Hoje era sexta-feira. Última hipótese de regressar a casa para um fim de semana que se avizinhava de comemoração.

Abro a persiana do quarto como quem abre um presente. O sol brilha e vento… nem vê-lo! “Finalmente” – digo para mim mesmo – “É hoje! Bem dita sexta-feira”. Nos Roncos tinha-me acontecido uma situação semelhante. A minha largada foi adiada várias vezes devido a vento fora dos limites (15 kts cruzado para largada) o que levou a que fosse largado a uma segunda-feira. Frustração completa. A algazarra que se avizinhava numa sexta-feira não aconteceu e um tipo passa o fim de semana louco só a pensar na largada que se adiou. Desta vez não porra. Havia de estar no Bairro Alto aquela sexta a comemorar.

Dirigimo-nos para o briefing geral da manhã como fazemos todos os dias. Este briefing, que conta com a presença de todos os pilotos da esquadra, ocorre todos os dias à mesma hora e fornece as primeiras informações de meteorologia, tráfego aéreo e operações. Anoto a pista em uso, tenho atenção aos NOTAMs confirmo que a meteo para o dia de hoje irá estar impecável.

Espero impacientemente na esquadra até que o meu instrutor me chama para iniciar o briefing do voo. Agarro o meu checklist e a pasta de aluno.

“Boa sorte pah”, dizem os meus camaradas de curso. Quatro aspirantes da Força Aérea e quatro distintos oficiais da Armada. Umas máquinas diga-se de passagem.

Briefing mais informal do que o normal. O meu instrutor, comandante de esquadra e, ao mesmo tempo, comandante dos Rotores de Portugal, era (e é!) um piloto com uma enorme experiência. Sabia muito bem como lidar com a ansiedade de um aluno nesta posição. Ainda hoje é para mim uma referência.

Dirijo-me para a linha da frente. Sentia-me capaz de correr e caçar as lebres que normalmente por ali andam na primavera. Donas e senhoras da planície. Cumprimento os mecânicos e vou buscar o livro do helicóptero. Tudo OK. Vou buscar o equipamento de voo. Sento-me na máquina infernal – Alouette 3 – e faço as contas de potência. Antes de todos os voos calculamos a potência (passo) necessário para manter o helicóptero em estacionário (o chamado passo de estacionário) e a potência de subida do helicóptero (o chamado passo de subida). Estas contas têm em consideração variáveis como a pressão do ar, temperatura exterior e peso do helicóptero nesse dia. Mais tarde, no EH-101, todos os cálculos de performance seriam feitos automaticamente pelos computadores do próprio helicóptero.

Enquanto esperava pelo meu instrutor conversava com um camarada de curso que iria voar à mesma hora do que eu. “Pah, vê lá… não me montes!”, dizia eu na brincadeira.

“Tudo pronto?” pergunta o meu instrutor. Numa atitude pouco usual diz-me que hoje põe ele em marcha. As operações no solo são para os alunos das fases mais complicadas do voo. Vá-se lá saber porquê. Deve ser o medo de falhar tão cedo. Portanto, e revelando real vocação para instrução, acalma-me executando toda a fase de operações no solo. O instrutor põe em marcha, taxia e efectua todos os testes necessários no solo. Comunica com o Ground de Beja e deixa a aeronave pronta para a descolagem no heliporto. Direcção 01. “O helicóptero é teu, vamos a isso.”.

“Beja Tower, Sábio 12 ready for departure”

“Sábio 12, Beja Tower, wind calm, report airborne”

“Wilco, Sábio 12”

Via lá ao fundo os meus camaradas que entretanto se tinham reunido, armados com máquinas fotográficas. Mais pressão. “Filhas da mãe”!

Com 0.5 de passo sinto os amortecedores a esticar. Coloco o manche para compensar o movimento inicial que penso que o helicóptero irá ter de modo a que no momento de rodas livres tenha um estacionário perfeito. 0.55 e o Alouette treme, 0.6 sai do chão, oscila ligeiramente pela esquerda e roda ligeiramente nessa direcção. Meto pé direito para compensar. Subo para metro e meio do solo (estacionário standart). 0.65. As contas bateram certo. Todos os instrumentos do motor estão OK e todas as luzes estão apagadas. Ligeiro manche à frente ( mais ou menos cinco graus ) e 0.7 de passo. O helicóptero afunda ligeiramente mas recupera num instante e começa a ganhar velocidade. Passo de subida e siga.

“Sábio 12 airborne”

“ Copy Sábio 12, report Downwind”

“Wilco, Sábio 12”

Agora ou brilhava ou apanhava uma das maiores humilhações da minha vida Executo o primeiro circuito nivelando a 1200 pés, 80 kts mantendo o traçado definido. Abeam (ou seja, a 90º) com o ponto de tocar inicio uma redução para 60kts . Check de aproximação ao campo. Cintos, travões e viseira. O instrutor confirma. Continuo o circuito e volto para a final já a 1000 pés. Reporto e começo a reduzir a velocidade. Reduzo passo e cabro ligeiramente o helicóptero. Verbalizo que no último terço de final tenho de ter menos de 40 kts e menos de 300 pés de velocidade vertical.

Existem dias em que tudo nos corre mal. E outros em que tudo nos corre bem.

Este, felizmente, era um dos segundos.

Terminei a aproximação, transitei para estacionário a metro e meio e aterrei o helicóptero.

“Siga para outro” diz o instrutor.

Passo a 0.65, estacionário, manche à frente e lá vou eu outra vez. Ao finalizar esta segunda aproximação, ainda com as rodas no ar, o instrutor já estava a tirar os cintos. Aterrei e já ele estava “solto”.

“Bem” – diz-me o meu tão paciente instrutor – “Não te posso ensinar mais nada. Juízo nessa cabeça.”. Sorri ligeiramente.  “Sim meu Major”.

A largada! Um instrutor da 552 larga um aluno no seu primeiro solo. 

A largada! Um instrutor da 552 larga um aluno no seu primeiro solo. 

O meu instrutor faz uma última incursão pelos rádios “Sábio 12, now MOCHO 12, ready for departure”. MOCHO é o callsign para voos solo dos alunos na Esquadra 552.

“Ou vai ou racha!”

Passo a subir, 0.65 e rodas no ar! Bolas… estou a subir demias! Retiro passo e lembro-me que tenho menos peso no helicóptero. Para além do instrutor já consumi uma quantidade considerável de combustível. Consigo manter estacionário com 0.62. Estou a voar um helicóptero sozinho! Um cabrão de um helicóptero!

Faço como sempre fiz. Mais 0.05, manche à frente e aí vou ao eu! Mais à frente, em subida, olho pelo meu lado esquerdo e lá estão os meus camaradas de curso. O comportamento da aeronave era realmente diferente. Mais leve, mais manobrável. E aquele manche a mexer-se sozinho ao meu lado causava-me uma impressão extremamente estranha!

A primeira aproximação era, por razões de planeamento, para borrego. Faço a aproximação normal mas borrego no último terço. Tendo um helicóptero acabado de aterrar decido fazer um “off-set”. Só por segurança. Passo de subida, desvio-me ligeiramente para a direita e lá vou eu.

“MOCHO 12, on the go, offset”

“Copy MOCHO 12, report downwind.”

A próxima seria para aterragem. O circuito corre normalmente, estupidamente mais descontraído. Voar sozinho é, e estou convicto disso, a melhor sensação do mundo. A paz e a liberdade são totais. Check de aproximação ao campo. Tudo normal, tudo apagado. Volto para a final.

“MOCHO 12, final”

“Copy MOCHO 12, proceed”

Inicio a aproximação como sempre fiz. Reduzo o passo e cabro o helicóptero consoante o necessário. Reparei que estava a abrandar bem mais devagar. Distraio-me um pouco com a situação e quando entro no último terço da aproximação noto que estou “quente” (rápido)! Cabro o helicóptero de maneira significativa, e aí estamos nós, eu e o meu companheiro Alouette 3 em estacionário sobre o heliporto! Aterro o helicóptero. Aterragem um pouco mais bruta. “Atracagem” pensava eu em honra dos meus camaradas da Marinha.

Descolo e voo mais um circuito.

“MOCHO 12, final, full stop”

“Copy MOCHO 12, report safe on the ground”

Aterro, destravo, reporto para a torre e dirijo-me para o estacionamento.

Recordo-me vagamente de ver os meus camaradas de curso à minha espera. Recordo-me mais vivamente do camião dos bombeiros que me iria dar uma molha das antigas!

E, como sou um tipo de palavra, naquela sexta-feira à noite lá estava eu. A beber uma cerveja e a comemorar!

A aviação é um bicho estranho!

A aviação é um bicho estranho. Invade-nos e jamais nos liberta. Fica connosco para todo o sempre. Alojado no mais profundo do nosso ser.

O autor até que é um tipo simpático. Faro, 2008. (Foto: (c) Luis Rosa)

O autor até que é um tipo simpático. Faro, 2008. (Foto: (c) Luis Rosa)


Lembro-me bem quando era mais novo, devia ter os meus sete ou oito anos, de receber um cumprimento, um adeus, um acenar, aquilo que lhe quiserem chamar, de um piloto de Alouette III que cruzava o céu à minha frente, bem baixo, só como um helicopterista sabe. Ali estava ele. Nuns meros cinco segundos. Aquele piloto, aquele tipo – que, quem sabe, até cheguei a conhecer mais tarde – era o meu Herói. O meu ídolo. O exemplo a seguir. Como se aquela pessoa que mais admiramos um dia decidisse aparecer à porta de nossa casa. Sem aviso. Sem telefonema prévio.

Vinte anos depois, algures pelas planícies da Beira Interior, voava aos comandos de um Alouette III em rota para a Serra da Estrela. Mais uma sessão de voo de Montanha, essencial para qualquer piloto operacional. Ao sobrevoar uma pequena estrada reparei que ali, sentado ao pé de uma típica casa de granito, estava um miúdo. Um puto! Sete, oito, talvez nove anos. E como que por reflexo automático… acenei.

E viajei no passado.
A cara daquela criança era a minha cara há duas décadas. Aquele sorriso era meu. Aquela sensação de felicidade era minha. Era como se tivesse sido transferida entre gerações, num ritual estranho mas repleto de sentido.

Um gesto tão simples… mas que significa(ou) tanto.


A aviação é um bicho estranho…
Mas é um bicho lindo!

Porque fazemos aquilo que fazemos

Não deve existir nenhum piloto militar que não recorde com nostalgia os tempos que voou ao serviço do seu país. O tipo de voo, as missões, a camaradagem.

São coisas que não se esquecem. Mas existem Esquadras – e missões – que nos tocam mais que outras.

Aquando da minha passagem pela Força Aérea Portuguesa (curta é certo) muitas vezes me vi deparado com a pergunta “porque é que fazia aquilo que fazia”. A resposta surgiu, um dia, da forma mais inesperada.

Servi durante mais de quatro anos na Esquadra 751 a voar o magnífico EH-­‐101 “Merlin”. A nossa principal missão era a execução de missões de Busca e Salvamento. Missões essas que deixavam uma marca profunda em todos os que por lá passámos. "Posso ser um tipo novo", costumo dizer, "mas já tenho umas histórias para contar aos netos". O lema, “Para que outros vivam”, era vivido ao máximo. Era a nossa motivação, a nossa força, o nosso orgulho.

Foto: Menso Van Westrhenen (c)

Foto: Menso Van Westrhenen (c)

Em 2012, para além das funções como piloto‐comandante, era igualmente oficial de relações públicas da Esquadra. Todos os tripulantes, fossem pilotos, recuperadores salvadores ou operadores de sistemas, tinham funções complementares em terra. Aquela era a minha. E, consequência dessa atribuição, era da minha responsabilidade organizar, desenvolver e implementar a política de comunicação da Esquadra.

Um dos eventos que organizámos foi uma Grande Reportagem da TVI imediatamente após o incidente com o cruzeiro Costa Concordia. A premissa seria demonstrar os meios que Portugal teria no caso dessa catástrofe acontecer em águas nacionais. Uma das hipóteses que achámos interessante foi promover o reencontro entre um recuperador salvador (os homens que descem no cabo para irem resgatar quem deles precisa) e um náufrago por ele resgatado. E assim foi. No dia combinado o referido náufrago foi ter connosco à Esquadra e com ele trouxe o seu pequeno filho. Decidimos filmar esse reencontro à entrada do edifício da Esquadra. “Porreiro”, pensava eu, “vai dar um bom momento de televisão”.

Durante a filmagem do reencontro fiquei a fazer companhia ao filho . Ele teria quatro, cinco anos talvez. Estávamos sentados os dois à beira do passeio, a poucos metros de onde o pai estava a ser entrevistado. Então, de forma repentina, toca-me no braço, chama-me a atenção e olha-me nos olhos. E aí, nesse momento, ouvi umas palavras que ficarão comigo para todo o sempre.

Obrigado por salvarem o meu pai”.

Ali estava eu. Militar, fardado com fato de voo, com aquele ar tipicamente rígido e já com alguma experiência em missões complexas… e fui invadido por um riso incontrolável acompanhado de uma emoção que apenas posso descrever como… indescritível.

Eu nem tinha participado naquela missão específica, e ouvir aquilo foi um dos momentos mais simples, mas memoráveis da minha vida.

Ali, naquele início de tarde sentado naquele passeio, tive a certeza:

É por isto que fazemos aquilo que fazemos”.

www.merlin37.com/fazemosoquefazemos

TAP Portugal: 70 anos de história

“Devo ser eu”, penso. 

Às vezes tenho sérias dificuldades em perceber o que queremos. Nós, como povo, como Nação. O que admiramos, o que respeitamos, o que almejamos ser lá no fundo. 
A TAP Portugal volta a estar em destaque e, como é hábito, voltam a chover os comentários menos abonatórios sobre a empresa, quem por lá trabalha e pelo que representa. “Bom bom seria o fim da mesma” dizem alguns. 
Engraçado. 

Aqui temos uma empresa que: 

- Tem 70 anos de uma orgulhosa história a (e)levar o nome de Portugal pelo mundo;
- A sua operação na linha imperial originou os primeiros levantamentos topográficos aéreos da história africana;
- Foi a primeira companhia aérea da Europa a operar uma frota constituída apenas por aeronaves a jacto;
- Foi a primeira companhia aérea europeia a obter certificação para a manutenção dos motores do Boeing 747, década de 70;
- Efectuou a maior ponte aérea da história no nosso país, em 1975, durante a crise dos retornados;
- Na década de 80 foi a primeira companhia aérea a nível mundial mundial a estabelecer um sistema de comunicações via satélite;
- É altamente reconhecida pelo profissionalismo da sua manutenção, ao ponto de aeronaves de estado de outras nações efectuarem as suas revisões em solo nacional;
- É líder – e reconhecida como a melhor companhia aérea europeia – nas rotas para o a América do Sul e África;
- É a sétima mais segura companhia aérea do mundo (dados de 2014, dados JACDEC).
- É uma das poucas companhias aéreas mundiais a quem a Airbus recorre no desenvolvimento de novas aeronaves.
- É reconhecida pela elevada qualidade e profissionalismo dos seus elementos técnicos.

E, mesmo assim, é encarada com desdém. 

Airbus A330 da TAP Portugal. Lindo seria dizer pouco. (Foto: Rui Sousa)

Airbus A330 da TAP Portugal. Lindo seria dizer pouco. (Foto: Rui Sousa)


Não me interpretem mal. A TAP não é uma empresa sem defeitos. Pelo contrário. Existem e têm de ser resolvidos. O mais atempadamente e profissionalmente possível. 
Mas, factualmente, a TAP ao longo de setenta anos esteve na dianteira. Na dianteira da evolução tecnológica. Na introdução de novas aeronaves. No desenvolvimento de novos procedimentos e técnicas de manutenção e voo.

Foi, e continua a ser, um exemplo de profissionalismo e inovação nacional. Uma empresa muitas vezes à frente das suas congéneres internacionais.

Por mais polémica que a privatização traga e por mais polémica que a situação económica da empresa traga, não entendo a vontade de alguns de ver a TAP morrer.

Pelos vistos o velho do restelo está vivo e de saúde entre nós. 

Ainda bem que as Naus zarparam a tempo...