Existem marcos na vida de um piloto. Momentos em que as suas dúvidas, força, medos e confiança se encontram num único período temporal. As largadas são invariavelmente um desses momentos.
07H35. Toca o despertador do telemóvel. Almejo o dia que o vou poder atirar contra a parede. Toca contínua e cruelmente. Mas hoje saio da cama com um sorriso. Era o dia da minha largada em Alouette 3. O meu voo de largada tinha vindo a ser adiado constantemente ao longo da semana por meteorologia. Hoje era sexta-feira. Última hipótese de regressar a casa para um fim de semana que se avizinhava de comemoração.
Abro a persiana do quarto como quem abre um presente. O sol brilha e vento… nem vê-lo! “Finalmente” – digo para mim mesmo – “É hoje! Bem dita sexta-feira”. Nos Roncos tinha-me acontecido uma situação semelhante. A minha largada foi adiada várias vezes devido a vento fora dos limites (15 kts cruzado para largada) o que levou a que fosse largado a uma segunda-feira. Frustração completa. A algazarra que se avizinhava numa sexta-feira não aconteceu e um tipo passa o fim de semana louco só a pensar na largada que se adiou. Desta vez não porra. Havia de estar no Bairro Alto aquela sexta a comemorar.
Dirigimo-nos para o briefing geral da manhã como fazemos todos os dias. Este briefing, que conta com a presença de todos os pilotos da esquadra, ocorre todos os dias à mesma hora e fornece as primeiras informações de meteorologia, tráfego aéreo e operações. Anoto a pista em uso, tenho atenção aos NOTAMs confirmo que a meteo para o dia de hoje irá estar impecável.
Espero impacientemente na esquadra até que o meu instrutor me chama para iniciar o briefing do voo. Agarro o meu checklist e a pasta de aluno.
“Boa sorte pah”, dizem os meus camaradas de curso. Quatro aspirantes da Força Aérea e quatro distintos oficiais da Armada. Umas máquinas diga-se de passagem.
Briefing mais informal do que o normal. O meu instrutor, comandante de esquadra e, ao mesmo tempo, comandante dos Rotores de Portugal, era (e é!) um piloto com uma enorme experiência. Sabia muito bem como lidar com a ansiedade de um aluno nesta posição. Ainda hoje é para mim uma referência.
Dirijo-me para a linha da frente. Sentia-me capaz de correr e caçar as lebres que normalmente por ali andam na primavera. Donas e senhoras da planície. Cumprimento os mecânicos e vou buscar o livro do helicóptero. Tudo OK. Vou buscar o equipamento de voo. Sento-me na máquina infernal – Alouette 3 – e faço as contas de potência. Antes de todos os voos calculamos a potência (passo) necessário para manter o helicóptero em estacionário (o chamado passo de estacionário) e a potência de subida do helicóptero (o chamado passo de subida). Estas contas têm em consideração variáveis como a pressão do ar, temperatura exterior e peso do helicóptero nesse dia. Mais tarde, no EH-101, todos os cálculos de performance seriam feitos automaticamente pelos computadores do próprio helicóptero.
Enquanto esperava pelo meu instrutor conversava com um camarada de curso que iria voar à mesma hora do que eu. “Pah, vê lá… não me montes!”, dizia eu na brincadeira.
“Tudo pronto?” pergunta o meu instrutor. Numa atitude pouco usual diz-me que hoje põe ele em marcha. As operações no solo são para os alunos das fases mais complicadas do voo. Vá-se lá saber porquê. Deve ser o medo de falhar tão cedo. Portanto, e revelando real vocação para instrução, acalma-me executando toda a fase de operações no solo. O instrutor põe em marcha, taxia e efectua todos os testes necessários no solo. Comunica com o Ground de Beja e deixa a aeronave pronta para a descolagem no heliporto. Direcção 01. “O helicóptero é teu, vamos a isso.”.
“Beja Tower, Sábio 12 ready for departure”
“Sábio 12, Beja Tower, wind calm, report airborne”
“Wilco, Sábio 12”
Via lá ao fundo os meus camaradas que entretanto se tinham reunido, armados com máquinas fotográficas. Mais pressão. “Filhas da mãe”!
Com 0.5 de passo sinto os amortecedores a esticar. Coloco o manche para compensar o movimento inicial que penso que o helicóptero irá ter de modo a que no momento de rodas livres tenha um estacionário perfeito. 0.55 e o Alouette treme, 0.6 sai do chão, oscila ligeiramente pela esquerda e roda ligeiramente nessa direcção. Meto pé direito para compensar. Subo para metro e meio do solo (estacionário standart). 0.65. As contas bateram certo. Todos os instrumentos do motor estão OK e todas as luzes estão apagadas. Ligeiro manche à frente ( mais ou menos cinco graus ) e 0.7 de passo. O helicóptero afunda ligeiramente mas recupera num instante e começa a ganhar velocidade. Passo de subida e siga.
“Sábio 12 airborne”
“ Copy Sábio 12, report Downwind”
“Wilco, Sábio 12”
Agora ou brilhava ou apanhava uma das maiores humilhações da minha vida Executo o primeiro circuito nivelando a 1200 pés, 80 kts mantendo o traçado definido. Abeam (ou seja, a 90º) com o ponto de tocar inicio uma redução para 60kts . Check de aproximação ao campo. Cintos, travões e viseira. O instrutor confirma. Continuo o circuito e volto para a final já a 1000 pés. Reporto e começo a reduzir a velocidade. Reduzo passo e cabro ligeiramente o helicóptero. Verbalizo que no último terço de final tenho de ter menos de 40 kts e menos de 300 pés de velocidade vertical.
Existem dias em que tudo nos corre mal. E outros em que tudo nos corre bem.
Este, felizmente, era um dos segundos.
Terminei a aproximação, transitei para estacionário a metro e meio e aterrei o helicóptero.
“Siga para outro” diz o instrutor.
Passo a 0.65, estacionário, manche à frente e lá vou eu outra vez. Ao finalizar esta segunda aproximação, ainda com as rodas no ar, o instrutor já estava a tirar os cintos. Aterrei e já ele estava “solto”.
“Bem” – diz-me o meu tão paciente instrutor – “Não te posso ensinar mais nada. Juízo nessa cabeça.”. Sorri ligeiramente. “Sim meu Major”.
O meu instrutor faz uma última incursão pelos rádios “Sábio 12, now MOCHO 12, ready for departure”. MOCHO é o callsign para voos solo dos alunos na Esquadra 552.
“Ou vai ou racha!”
Passo a subir, 0.65 e rodas no ar! Bolas… estou a subir demias! Retiro passo e lembro-me que tenho menos peso no helicóptero. Para além do instrutor já consumi uma quantidade considerável de combustível. Consigo manter estacionário com 0.62. Estou a voar um helicóptero sozinho! Um cabrão de um helicóptero!
Faço como sempre fiz. Mais 0.05, manche à frente e aí vou ao eu! Mais à frente, em subida, olho pelo meu lado esquerdo e lá estão os meus camaradas de curso. O comportamento da aeronave era realmente diferente. Mais leve, mais manobrável. E aquele manche a mexer-se sozinho ao meu lado causava-me uma impressão extremamente estranha!
A primeira aproximação era, por razões de planeamento, para borrego. Faço a aproximação normal mas borrego no último terço. Tendo um helicóptero acabado de aterrar decido fazer um “off-set”. Só por segurança. Passo de subida, desvio-me ligeiramente para a direita e lá vou eu.
“MOCHO 12, on the go, offset”
“Copy MOCHO 12, report downwind.”
A próxima seria para aterragem. O circuito corre normalmente, estupidamente mais descontraído. Voar sozinho é, e estou convicto disso, a melhor sensação do mundo. A paz e a liberdade são totais. Check de aproximação ao campo. Tudo normal, tudo apagado. Volto para a final.
“MOCHO 12, final”
“Copy MOCHO 12, proceed”
Inicio a aproximação como sempre fiz. Reduzo o passo e cabro o helicóptero consoante o necessário. Reparei que estava a abrandar bem mais devagar. Distraio-me um pouco com a situação e quando entro no último terço da aproximação noto que estou “quente” (rápido)! Cabro o helicóptero de maneira significativa, e aí estamos nós, eu e o meu companheiro Alouette 3 em estacionário sobre o heliporto! Aterro o helicóptero. Aterragem um pouco mais bruta. “Atracagem” pensava eu em honra dos meus camaradas da Marinha.
Descolo e voo mais um circuito.
“MOCHO 12, final, full stop”
“Copy MOCHO 12, report safe on the ground”
Aterro, destravo, reporto para a torre e dirijo-me para o estacionamento.
Recordo-me vagamente de ver os meus camaradas de curso à minha espera. Recordo-me mais vivamente do camião dos bombeiros que me iria dar uma molha das antigas!
E, como sou um tipo de palavra, naquela sexta-feira à noite lá estava eu. A beber uma cerveja e a comemorar!