"Ninguém sai do helicóptero" e uma lição de respeito institucional

Um azul claro cobria todo o céu. Estava completamente limpo e uma brisa fresca, tão típica das manhãs desta altura do ano, resfriava-nos o corpo. Um bom dia para voar. Decorria o exercício anual da Força Aérea Portuguesa – o REAL THAW – na Base Aérea de Monte Real. Era comum a Esquadra 751 participar neste exercício com um ou dois helicópteros, maioritariamente em funções de Busca e Salvamento em Combate (CSAR) ou Transporte Aéreo Táctico. Embora tenha participado em algumas edições deste exercício, esse não seria o caso neste ano. Tinha, no entanto, sido nomeado para uma missão de apoio.  

É comum em exercícios militares existir aquilo a que se chama VIP day; é um dia em que diversas altas individualidades, tanto civis como militares, visitam o exercício e se inteiram das acções e objectivos do mesmo. E eu tinha sido nomeado para transportar desde os arredores de Lisboa até à Base Aérea de Monte Real várias individualidades para assistirem ao VIP day do REAL THAW. Para isso foi configurado um dos nossos helicópteros EH-101 “Merlin” com um kit VIP. Este kit consistia num conjunto de cadeiras, muito semelhantes aquelas que podemos encontrar em qualquer companhia aérea, que são montadas na cabine do helicóptero, limpo de qualquer equipamento específico para a sua função militar.  

Não me recordo exactamente de todas as individualidades a bordo, mas estavam presentes altas chefias militares e algumas entidades políticas (inclusive membros do executivo) com elementos das suas comitivas. Descolamos sem qualquer incidente e iniciamos o voo em direcção a Monte Real, nos arredores de Leiria. O voo seria relativamente curto, mas mesmo assim alguns dos passageiros não perdem tempo e estão a ler jornais. Algumas altas patentes da Força Aérea dirigem-se ao cockpit para nos cumprimentar e trocar dois dedos de conversa – tudo normal.

EH-101 Merlin (onde é claramente visível a rampa traseira)

O sistema de comunicações do EH-101 está equipado com uma rede interna de interfonia com diversos canais que permite que os tripulantes falem entre si. Essencial numa operação de Busca e Salvamento, a normal missão da esquadra, esta rede permitia que os pilotos, os operadores de sistemas (guincho) e recuperadores-salvadores mantivessem contacto permanente, especialmente tendo em conta o ambiente saturado em ruído que é um helicóptero. Neste tipo de voos apenas a tripulação se encontra a este sistema de comunicação interna. Já próximos de aterrar em Monte Real, lembro-me do nosso Sargento, um Operador de Sistemas muito experiente e com décadas de serviço na Força Aérea, comentar connosco “Estes tipos estão atirar os jornais todos para o chão do helicóptero”. Referia-se a alguns elementos civis com responsabilidades políticas. No cockpit trocámos algumas palavras e olhámos para a cabine, claramente resignados e desiludidos com a situação. “Boa educação fica bem a todos”, comentou um de nós. Mas estando já perto do nosso destino concentrámo-nos na aproximação e aterragem.  

Aterrámos e parqueámos o helicóptero. De seguida demos autorização para abrir a rampa – no EH-101 os passageiros desembarcam pela rampa do helicóptero, localizada na traseira do mesmo. Pouco depois dissemos ao nosso Operador de Sistemas:

“Podes desembarcar os passageiros quando quiseres.”

“Combinado.”

E foi nesta altura que nós, pilotos isolados no cockpit, ouvimos algo de que não estávamos à espera. Abafado, como uma voz ao fundo do túnel e como quem fala para tentar sobrepor a sua voz a todos os sons de um helicóptero com um motor auxiliar a funcionar, ouvimos a voz assertiva do nosso Sargento, através da interfonia, a dirigir-se a alguns dos passageiros na cabine. Não me recordo das palavras exactas, mas algo do género:

“Isto não é a vossa casa. É uma aeronave da Força Aérea Portuguesa. Os jornais não ficam no chão”.

De imediato abrimos os dois os olhos, olhámos um para o outro no cockpit com uma expressão de surpresa e, instintivamente e em perfeita sincronia, olhámos ambos para a cabine atrás de nós. Dois pilotos a olhar do cockpit para a cabine de capacete na cabeça, mas de olhos esbugalhados debaixo daquela viseira negra. E, com espanto, alguns daqueles passageiros de fato e gravata, provavelmente surpreendidos com o comentário do nosso Sargento ou meramente com peso na consciência, encontravam-se inclinados para frente a apanhar folhas de jornal do chão. Ninguém naquela manhã saiu do helicóptero até a cabine estar limpa.  

Efectivamente aquele helicóptero era um helicóptero da Força Aérea Portuguesa. E como tal era um elemento representativo do Estado. Estado esse que somos todos nós. E quem elegemos tem a obrigação – o dever – institucional de respeitar os elementos, regras e instituições do Estado. Tanto na altura, como infelizmente ainda hoje, assistimos a episódios que desafiam esta regra básica.

Aquele sargento, naquele final de manhã, não deu só uma lição de boa educação a algumas pessoas. Deu uma lição de respeito institucional.

“Não pagas mais cervejas esta semana”, disse-lhe eu após o incidente, “quem as paga sou eu”.

E paguei mesmo. Com um orgulho enorme e um sorriso. Daqueles de orelha a orelha.

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Competência

Portugal tem tido nas últimas décadas uma relação de indiferença (para não dizer outra palavra mais ofensiva) com as suas Forças Armadas. Era comum – fosse no mundo real, fosse no digital – a existência de comentários incompreensivelmente jocosos. Mas mais impressionante que esse facto, é a resposta que sempre foi dada pela instituição castrense: cumprir a missão com brio.

O Diário de Notícias publicou ontem, dia 09 de Maio, uma interessantíssima reportagem sobre o Vice-Almirante Gouveia e Melo e a task-force de vacinação que comanda. Nela é acompanhado o dia-a-dia da task-force e do seu comandante, coincidindo com o exacto momento em que é atingido um marco histórico: as cem mil inoculações diárias. É importante não relativizar a imensidão da tarefa logística que isto representa. Da coordenação necessária, do planeamento obrigatório e da incessante avaliação do progresso.

Foi notório que assim que o Vice-Almirante Gouveia e Melo ficou responsável pelo programa de vacinação à COVID-19 em Portugal, terminou o uso do mesmo como arma política – que era a mais abjecta forma de lidar com este problema. E embora a excelente capacidade operacional dos militares possa doer a algumas franjas da sociedade (e é importante lembrar que o Vice-Almirante até foi criticado por usar farda camuflada, como se esta não fosse a sua farda de trabalho ou como se não estivesse no seu direito como militar) a verdade é que passámos a ter frontalidade nas declarações e eficiência no processo. Só espanta é como é que não foi assim desde início. Pode ser que o poder política tenha tirado – mais uma vez – as ilações necessárias.

Ainda se vive neste país com um qualquer complexo, que admito, não sei explicar, com as Forças Armadas. Está na altura de, finalmente, terminar com ele. Pois mais uma vez elas responderam como melhor sabem: com competência.

E essa é uma qualidade que faz desesperadamente falta a este país. Cada vez mais.

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(Foto de capa: Global Imagens)


Homenagem

(Escrito em Janeiro de 2015)

Acabo de ver o filme “American Sniper”. Pondo de parte o presente “americanismo” a parte final do filme (início dos créditos) fez-me fazer um paralelismo com a realidade nacional. Na forma como nós, portugueses, honramos quem serviu o seu país. 
 

americansniper


Faz um anos, ainda era eu oficial da Força Aérea, fui nomeado para comandar um pelotão na guarda de honra em um funeral de um General que tinha falecido. Verdade seja dita, para nós, pilotos, este género de serviço eram tudo menos desejado. Queríamos voar, voar e voar. Os nossos treinos de ordem unida era tudo menos frequentes. Mas antes de pilotos éramos militares. E ainda bem que assim o é. 


No dia estabelecido lá estávamos. Dois pelotões, impecavelmente formados, à entrada do cemitério do Alto de São João. Na hora estabelecida – e estando a urna a escassos metros da entrada do cemitério – a polícia parou o trânsito e formámos na estrada para prestar a devida homenagem com três salvas de G-3. 
Qual não é o meu espanto quando um popular, sentado na paragem de autocarro mesmo ao lado da formatura, começa a vociferar a plenos pulmões a sua indignação. “É uma vergonha” dizia. “o que é que aquela pessoa tinha a mais que ele para estar aquilo ali montado”. “Estou à espera do autocarro e quero ir para casa”. Entre outros comentários bem menos agradáveis. 
É-me impossível de descrever a raiva que me invadiu naquele momento. Vinda do mais fundo do meu ser. Daquela que nos consome. Que nos faz morder o lábio. Mas a disciplina e a rigidez militar fez que não me mexesse. Que não abrisse a boca. Nem eu nem nenhum dos militares ao meu lado. E prestámos a nossa homenagem. Não demorou mais do que três minutos. Três minutos que alguém não estava disposto a abrir mão como sinal de respeito a alguém que serviu o seu país durante mais de 40 anos. Alguém que lutou pela sua Pátria. Alguém que viveu em combate em meu nome, em nome de todos nós, em nome da nação. 

A forma como tratamos quem nos serve a todos, como país, adefine-nos como povo. Militares, polícias, bombeiros, são tantas vezes injustamente acusados em praça pública. São os chulos. Os que nos “roubam o dinheiro dos impostos”. Quando na realidade estão lá, no duro, todos os dias, dispostos a dar o melhor de si por todos nós. E mesmo que esse respeito não existisse em vida, ao menos que existisse na hora da partida...

Vejo o final do filme. Aquela homenagem nunca seria possível no meu país. E relembro aquele momento de há anos. Baixo a cara. Desta vez não de raiva. Mas de vergonha.