Ora então vamos lá falar da TAP

A TAP é notícia. Outra vez. Seja pela possível intervenção estatal ou pelo plano de retoma na era pós-Covid, a companhia aérea de bandeira nacional aparenta estar a tornar-se, novamente, uma arma de arremesso político. É difícil de encontrar uma empresa em Portugal que gere tanta controvérsia. E nós, como portugueses, adoramos controvérsias. Mas não gostamos de coerência.

Vamos por pontos. Não são muitos.

A indústria do transporte aéreo é paradoxal. Embora ao longo da história tenha existido um crescimento sistemático e significativo da procura, a performance financeira das companhias aéreas tem sido marginal; seria de supor o oposto. A sua margem de lucro é, curiosamente, das mais baixas dentro do próprio sector. Analisando o ROIC (Return on Invested Capital, que não é nada mais que o lucro expresso como percentagem do capital investido e não de facturação) observamos que as companhias aéreas têm demonstrado o valor mais baixo de toda a indústria. Esta situação apenas se inverteu recentemente, onde assistimos a um período em que o ROIC cresceu significativamente (2015-2018) e superou o custo médio ponderado de capital (WACC).

Via IATA (2013)

Via IATA (2013)

IATA (2019)

IATA (2019)

Isto significa que que outras empresas tais como os “lessors”, aeroportos, companhias de handling ou mesmo as agências de viagem têm um ROIC superior às companhias aéreas, as entidades que, de facto, operam as aeronaves. Adicionalmente, o transporte aéreo tem um ROIC inferior a outras indústrias, como a do papel, restauração ou mesmo camionagem. Curioso, não é? Especialmente quando necessita de uma impressionante quantidade de capital. Em termos de EBIT (lucros antes de juros e taxas), este ronda os 5% nos últimos anos a nível global. E porque é que isto é importante? É importante para entendermos como qualquer pequena perturbação da operação normal de uma companhia aérea tem consequências significativas sobre a sua já pequena margem de lucro. Se juntarmos a isto o facto de a aviação ser uma indústria que, por natureza, opera num ambiente global, é fácil entender a importância que factores externos têm na operação. Desde conflitos militares a migrações. De eventos climáticos e crises políticas. De novas inovações tecnológicas a pandemias. O impacto que estes eventos, que não são controláveis, podem ter numa companhia aérea é impressionante. Aliás, estamos a viver um deles: a pandemia SARS-CoV-2 colocou todas as companhias aéreas de joelhos. Segundo a associação internacional de companhias aéreas (IATA), a indústria de transporte aéreo já perdeu mais de 314 mil milhões de Dollars desde o início da crise.

E este será o segundo ponto: não é apenas a TAP que está a passar por dificuldades. São todas as companhias aéreas a nível global. Empresas como o grupo Lufthansa, Vueling e Iberia (IAG), AirFrance, KLM, Delta, American Airlines, United e até Ryanair (empresas tradicionalmente com uma margem de lucro bastante acima da média) viram-se obrigadas a negociar ajuda ou apoio estatal. A TAP (que entrou o ano passado no top quinze das maiores companhias aéreas europeias) é, curiosamente, a única que ainda não sabe se terá algum tipo apoio e, se existir, em que moldes. E isso gera uma incerteza enorme para a empresa. Enquanto todas as suas concorrentes directas já sabem de alguma forma com o que podem contar, a TAP não sabe, o que a coloca numa incrível desvantagem estratégica nesta fase de retoma. Esta indefinição e esta demora por parte do Estado Português em iniciar negociações é incompreensível, especialmente tendo em conta que este detêm 50% da companhia. Ou “sim” ou “não”, mas é rapidamente necessária uma resposta, e um esclarecimento sobre as eventuais condições impostas pelo Estado (que são legítimas).

Isso leva-nos ao terceiro ponto: é a TAP essencial para o país? Sim e não. Para um conceito abstracto daquilo que é um país, não. Mas para o país que somos, Portugal, sim, a TAP é fundamental. Repito: fundamental. Bem ou mal, Portugal é hoje extremamente dependente do turismo. Este é, de facto, o sector com maior peso no nosso produto interno bruto (PIB): 13.1% segundo o INE (valores de 2017). E segundo a União Europeia, 23.1% do emprego gerado em Portugal está directamente ou indirectamente relacionado com este sector (colocando Portugal apenas atrás da Grécia e da Croácia). Em 2019 Portugal recebeu 27 milhões de turistas, dos quais 16 milhões de nacionalidade estrangeira tendo a maioria chegado por via aérea. A TAP em 2019 transportou mais de 17 milhões de passageiros, dos quais uma percentagem significativa passou – e gastou – em Portugal. Por si só isso daria que pensar, mas o facto de ser uma empresa nacional, baseada em Portugal, proporciona e permite a presença de um HUB em Lisboa, algo estrategicamente importantíssimo para o país. Ao invés de sermos um ponto de passagem secundário na Península Ibérica, a presença de um HUB em Portugal é gerador de riqueza. O desaparecimento da TAP facilmente deslocaria a operação que hoje temos em Portugal – especialmente longo curso - para outros aeroportos estrangeiros como, por exemplo, Madrid. O grupo IAG que adquiriu a Air Europa recentemente (uma das maiores concorrentes da TAP para a América do Sul, com base em Madrid), e que também possui a Iberia (que em conjunto com a Air France, Air Europa e TAP são as quatro empresas com mais voos Europa-América do Sul), estaria numa posição privilegiada para assumir parte significativa da operação da TAP. Mas pondo de parte esta visão estratégica, de longo prazo, coloca-se a questão: compensa ao Estado ajudar a companhia aérea nacional com, digamos, mil milhões de Euros? Primeiro que tudo convém esclarecer que esta ajuda não tem de ser a fundo perdido: poderá ser um empréstimo com condições favoráveis ou de cariz obrigacionista, por exemplo, o que significaria que o contribuinte português receberia o retorno do seu investimento a curto prazo. Posto isto, a TAP tem um impacto directo e indirecto no PIB português de 2%. Pagou em impostos e contribuições ao Estado em 2019 328 milhões de Euros. Emprega em Portugal mais de 9000 trabalhadores, que representaram em 2019 um encargo com pessoal na ordem dos 740 milhões de Euros. É fácil entender que só em impostos perdidos, a suposta ajuda do Estado estaria paga em pouco mais de três anos, e que 740 milhões de Euros de ordenados convertidos em subsídios de desemprego representariam um encargo ainda maior. É simples de concluir que a perda da empresa teria um custo muitíssimo superior para o Estado no curto prazo, do que um empréstimo ou injecção de capital. Mas existe sempre o argumento que se a TAP não existir outro concorrente irá tomar a sua posição no mercado. É verdade: em mercado liberalizado é isso que acontece, não existem espaços vazios. No entanto existe uma certeza: esses concorrentes não seriam nacionais. E uma empresa que paga impostos lá fora, na Alemanha, Londres ou Amsterdão, não gerará a riqueza que gera a TAP para o país e para o Estado, e terá Lisboa como destino e não como origem, deitando por terra o projecto de HUB já falado. Afinal, nós, como portugueses gostamos tanto de criticar – e bem! – empresas que por cá operam e pagam os impostos lá fora, e parece que estamos desejosos que também aqui, no transporte aéreo, ocorra o mesmo.

Finalmente, chegamos ao último ponto: a nossa facilidade como povo de achincalhar aquilo que nos é importante. É totalmente legítimo criticar a gestão da TAP. É totalmente legítimo interrogar sobre planos futuros e questionar o não cumprimento dos objectivos financeiros do plano estratégico. E é totalmente legítimo exigir condições para que a ajuda do estado português se materialize. No entanto, já não é compreensível qualquer tipo de interferência política nas decisões operacionais da companhia ou utilizá-la para fazer campanha. Ou então temos de ser coerentes, e escolher se queremos uma companhia que se torne rentável, ou se queremos uma que voe as rotas que queremos, mesmo não existindo procura, por mero capricho ou ambição pessoal. É que ter as duas é impossível. E teremos de pagar bem mais pela segunda opção. E a classe política neste aspecto esteve - e está - muito mal. Deveria ser do interesse nacional uma TAP saudável que crie riqueza ao país. E país é a palavra importante aqui. Somos um todo, e não um aglomerado de regiões. Caso contrário todas têm, legitimamente, ambições próprias, mas que são incompatíveis com esse principal objectivo. A instrumentalização da TAP - de gestão privada - para exacerbar a divisão nacional ou conflitos regionais é, acima de tudo, populismo. E diz muito sobre a nossa incapacidade de ter uma visão estratégica a nível nacional, que é infelizmente e regularmente substituída por uma visão individual, redutora e de curto prazo.

Compreendo que como país estamos fartos de intervenções estatais. Estamos saturados de ver dinheiro público mal gasto. Mas esta pandemia é uma situação excepcional, em que todas as companhias aéreas a nível global estão em igual situação, e em que o sector do transporte aéreo – essencial para o turismo, para a economia nacional e para o país – é especialmente afectado. Pura e simplesmente a esmagadora maioria das companhias aéreas desapareciam sem qualquer tipo de apoio e todas elas, e a indústria como um todo, precisa urgentemente de ajuda.

Ajudar a TAP não é um capricho. Não é um desvario. Não é uma teimosia. É uma necessidade. A TAP é estrategicamente importante para o nosso país, tal como ele existe hoje. E ao contrário do que possa parecer, sairá mais barato ao Estado intervir do que deixar cair a companhia.

Muito, mas muito, mais barato.

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www.merlin37.com/falardatap 

Foto: TAP Air Portugal

Contrato do SIRESP - Isto é a sério?

O único ponto positivo de uma tragédia como a do Pedrogrão Grande – se é que existe algum, tenho imensa reserva em utilizar a palavra “positivo” – é o facto de nos por a todos a pensar. Ao Estado, aos órgãos públicos de soberania, aos órgãos de emergência e apoio e, finalmente, aos cidadãos. Obriga-nos a investigar, analisar, reformular e, espero eu, melhorar. 

O SIRESP – que significa Sistema Integrado das Redes de Emergência e Segurança de Portugal – é o projecto que consiste na concepção, fornecimento, montagem, construção, gestão e manutenção de um sistema integrado de tecnologia trunking digital, para a rede de emergência e segurança de Portugal que permitirá responder adequadamente aos desafios colocados às forças de segurança e da protecção civil na sua actuação diária ou em cenários de emergência - catástrofes, acidentes ou incêndios de grandes proporções. Não sou eu que o digo. É o próprio SIRESP, uma parceira público privada (PPP), no seu site oficial.

Simplificando, é o sistema de comunicações do Estado em casos de emergência ou de segurança nacional. 

Foto: Daniel Rocha (c)

Foto: Daniel Rocha (c)

Sendo uma PPP o contrato do SIRESP é, como todos os outros, altamente polémico. A linha entre interesse público e privado é, também aqui, muito ténue e tende, pelos vistos, a beneficiar os privados. Após vários órgãos de comunicação social terem analisado o contrato, são encontrados alguns pontos bastante interessantes. É o caso da cláusula 17. (Poderão encontrar o contrato aqui: http://www.utap.pt/Contratos/seguranca/SIRESP.pdf )

Diz-nos então parte da cláusula 17, e aturem-me lá com isto: 

  • 17.1 Para os efeitos do contrato, considerar-se-ão casos de força maior os eventos imprevisíveis e irresistíveis, cujos efeitos se produzam independentemente da vontade da Operadora ou da sua actuação, ainda que indirectos, que comprovadamente impeçam ou tomem mais oneroso o cumprimento das suas obrigações contratuais. 
  • 17.2. Constituem, nomeadamente, casos de força maior actos de guerra ou subversão, hostilidades ou invasão, rebelião, terrorismo ou epidemias, raios, explosões, graves inundações, ciclones, tremores de terra e outros cataclismos naturais que directamente afectem as actividades objecto do contrato.

Depois de ler isto vociferei a alto e bom som um palavrão que se ouviu dois quarteirões abaixo.

Isto é a sério? 

Tenho perfeita consciência que as PPP foram, na sua esmagadora maioria, extremamente ruinosas para o Estado – para “todos nós” leia-se. Mas adjudicamos um sistema de comunicações para situações de emergência (como diz o próprio nome) e depois desresponsabilizamos o fornecedor privado se algo correr mal... nessas mesmas situações? 

Ou seja, queremos um sistema de comunicações que funcione e seja eficaz em caso de, por exemplo, um terremoto. Mas se o sistema falhar (nota: o sistema que foi concebido para funcionar exactamente nessa situação) nenhuma coima é imputável ao seu Operador. 

Isto é Orwelliano.

Onde está a responsabilização que deveria existir? Onde está a redundância do sistema em caso de falha? No fundo, onde está a garantia do Estado para com os seus cidadãos, que compete proteger? 

Se isto continuar assim, um dia temos um incêndio de grandes proporções em que o sistema falha e, também como consequência disso, sofremos uma enorme perda de vidas humanas. 

Ah, esperem... 

Já tivemos. Aconteceu há duas semanas. 

Corro o risco de soar demagogo, mas que alguma coisa mude. E que se não for pelos dez milhões que cá andamos que o seja pelas sessenta e quatro famílias de luto. 

Elas merecem. E não é só economicamente eficiente. 

É moralmente obrigatório.

www.merlin37.com/siresp

(foto de capa: Rafael Marchante / Reuteurs)