Gelado. Está gelado lá fora. Um rápido olhar pela janela e nota-se que nem o Labrador ávido de liberdade que se encontra no jardim se atreve a dar dois passos de corrida.
“Ah porra, esqueci-me do molho de tomate”.
Chaves na mão, porta fechada, elevador. Uma das vantagens de morar a uns escassos cinquenta metros de um Pingo Doce é poder corrigir quando a nossa memória nos atraiçoa.
“Poupa tempo” dirão alguns. “Não é bem assim” afirmo eu.
Um dos mandamentos que nos é incutido desde o início na aviação é o chamado “pensar à frente”. Devemos sempre pensar à frente da aeronave. Nunca no momento. Estar já a pensar a cinco, dez, vinte minutos do presente. O que vai acontecer, o que pode acontecer e como reagir. E com o tempo esse traço de carácter passa para outras actividades mundanas, sem que disso nos apercebamos. Como por exemplo... as filas do Pingo Doce.
Devo confessar que me tornei bom nisso. Optimizar a escolha da fila das compras. Boa dica para o currículo, lembrei-me agora. Sai no automático, mas como se de um planeamento militar se tratasse. Ora aquela fila tem mais gente, mas é tudo malta nova só com cervejas na mão. Boa escolha. Aquela tem menos gente mas um empregado de restaurante que vai pedir facturas em separado. A evitar. A outra caixa tem um funcionário que é mais lento a passar as compras que eu a sair da cama. Nunca. E com este raciocínio instantâneo se escolhe a caixa do Pingo Doce. Simples.
Sim, porque isto de um tipo se esquecer do molho de tomate tem muito que se lhe diga.
E tudo seria perfeito... se não fosse aquilo a que eu carinhosamente apelido de “Síndrome do Pingo Doce”.
Gosto de imaginar que, tal como os Gregos e os Romanos tinham um Deus para tudo, também hoje existe um Deus do “Pingo Doce”. Ou um Deus das lojas de conveniência, o que lhe quiserem chamar. Certamente muito em baixo na cadeia alimentar dos Deuses, mas Deus mesmo assim. Omnipresente. Todo poderoso. Misericordioso. O gajo que na faculdade dos Deuses tirou o curso de Antropologia mas estagiou no Lidl.
Pois bem, não sei se serei eu que não estou a sacrificar bolachas Maria suficientes em sua honra ou não, mas tenho uma ligeira impressão que Ele não vai muito com a minha cara.
É imediata e implacável a sua actuação. Mal escolho a caixa, encaixado na centena e meia de pessoas que se lembraram de ir ao Pingo Doce a meio das “Tardes da Júlia”, dá-se o desastre. Aquela caixa, onde eu depositei toda a minha fé, tem um problema. Acabam-se as moedas. É mudança de turno. Acabou-se o papel. O artigo não passa. O artigo seguinte também não passa. O cabrão do terceiro artigo também não passa. O cliente pede trinta e duas facturas diferentes. O artigo está mal codificado. A empregada ganha instantaneamente uma vontade incontrolável de perguntar como estão as onze netas da cliente, que, orgulhosamente, debita a biografia de todas elas. Mais um artigo que não passa. Alguém pede para ligar para outro alguém. Acabaram-se os sacos. E tudo isto enquanto eu, com uma lágrima a escorrer-me pelo rosto, olho para as caixas adjacentes. Elas, como que cruelmente, avançam firmemente, libertando os seus clientes da opressão a que estavam sujeitos. Eu? Eu sou o homem da máscara de ferro. Imóvel. A observar a liberdade por uma janela. Neste caso por uma porta automática.
“Que te fiz eu oh Deus dos supermercados, para merecer esta sorte?”
E quando finalmente chega a minha vez sinto-me como Mandela no dia da sua libertação. Mais uma luta titânica que chega ao fim. Livre por fim! Livre! Pouso os meus artigos no tapete rolante. Um sorriso de dever cumprido esboça-se na minha face.
“Ah peço desculpa, vai fechar!”
Fodass.
Acabei de matar um gatinho dentro de mim.
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