Cinquenta graus. Deviam estar uns cinquenta graus. O ar era abafado, tropical até. Centenas de mãos, suadas, batiam nos vidros. A cada paragem o ar fresco que entrava por aquelas portas, cruelmente abertas apenas por segundos, sabia a doce salvação.
“Fodass”, pensava, “onde é que eu me vi meter”.
Estava no meio de um eléctrico de superfície em Lyon. Eu e mais três portugueses. E trezentos galeses.
Ali, no meio daquelas quatro carruagens, éramos uma pequena ilha no centro de um furacão.
“Please don´t take me home” cantavam.
A viagem durou uns vinte minutos. Talvez trinta. Talvez dez. Tinha apenas uma certeza: nunca tinha suado tanto na vida.
Aos poucos e poucos, e à medida que nos íamos aproximando do estádio, a diferença de nacionalidades foi-se esbatendo. Via-se mais um português ali. Mais dois. Mais três. Até ao ponto em que à chegada ao estádio as hostes estavam mais ou menos equilibradas. Eles de vermelho, e nós também.
O estádio do Lyon é bonito. Limpo, arejado. “Tem pinta”, diria. Prova que afinal os franceses lá sabem fazer alguma coisa para além de queijos. Sento-me. Do meu lado esquerdo, ali mesmo a uns escassos metro e meio, uns milhares de galeses. Do meu lado direito uns milhares de portugueses. Estou na fronteira. Estou mesmo “naquela linha que separa”. Se isto der para o torto por alguma razão já sei quem vai levar primeiro. Eu. “Que reconfortante!”
Entram as equipas. Cantam-se os hinos. Primeiro o Galês, claro, que o melhor fica sempre para o fim. Cachecóis no ar, esticados, e ecoa a portuguesa por aquelas paredes. Cantada por milhares, cantada por milhões. E finalmente, rola a bola.
“Corre caraaaallhhhhooooo!”, gritava. Já aqui o disse, não sou subtil a ver a bola, muito menos “in loco”. Algo de mágico acontece ao ver um jogo entre selecções para uma competição internacional. Um jogo entre clubes é intenso, sem dúvida, mas entre equipas nacionais sabe a outra coisa. Sabe a conflito. Como se aquele campo fosse o substituto físico de uma pequena “guerra”.
Entre suor, gritos e muito praguejar lá vamos para intervalo. Zero no marcador. De empate a empate até à vitória nacional, pensámos todos. Que se foda. O importante é no fim estarmos em Paris. Desço as escadas e segue-se o ritual de todo e qualquer jogo: comer qualquer coisa. A decisão recai sobre um hamburger que mais parece plasticina. Pois é, estamos em França. Haviam de ter uma tábua de Rocquefort que isso é que era serviço.
O senhor do apito lá dá sinal e aqueles vinte e dois homens em campo começam a correr novamente.
Estávamos a jogar bem. Com garra. Mais do que aquela que se viu nos últimos jogos. A bola roda para área vinda da esquerda. Um canto marcado de forma curta. Aquele tipo – o melhor do mundo que costumava ter uma namorada russa – eleva-se no ar. Parece que se mantém imóvel, lá em cima, por meio segundo. Como se o tempo parasse, como se tudo à sua volta estivesse relativizado àquele instante. E é o suficiente.
GOLOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!
Metade do estádio explode em alegria. Salta, grita, mostra as garras. Irrompe em felicidade instantânea. Vingança divina esta. A outra metade do recinto, aquela que cantava que o Ronaldo não valia nada, não se ouvia. Baixavam as orelhas e apercebiam-se todos, subitamente, que falaram antes do tempo. Também no futebol existe “karma”, pensariam certamente.