Dez à esquerda

 

“O que é mais difícil?”. Ouvi vezes sem conta esta pergunta. Era a questão natural quando alguém descobria que estava na Busca e Salvamento. “Todas as missões são difíceis. Todas são diferentes.” era a minha invariável resposta. 

Verdade. Mas mentira ao mesmo tempo. 

Verdade porque todas as missões, fossem reais fossem de treino, eram de facto diferentes. O navio mais simplespodia tornar-se no maior bico de obra já visto no hemisfério norte. Não seria inédito. Eu que o diga.

Mentira porque todos nós sabíamos bem quais seriam – à partida – as operações mais complicadas: recuperações de pesqueiros.

Para nós (ou pelo menos para mim) o Pesqueiro era uma invenção do Diabo. Uma cruel e irrequieta casca de noz no oceano. Pequenos (muitas vezes mais pequenos que o próprio helicóptero), repletos de obstáculos e propensos à influência do downwash do helicóptero a baixas velocidades. Agora adicionem à equação vagas de seis metros e ventos de quarenta nós. Imaginem igualmente que terão de colocar um tipo que é vosso amigo (Recuperador Salvador) num espaço que muitas vezes não era superior a um metro quadrado. E, raios parta os Deuses, se tudo isto for de noite.   

Um dia teria de ser a minha primeira vez. 02 de Julho de 2013 foi o dia.                

“Scorpius”, que raio de nome para um pesqueiro pensava para mim. Quando aquele nome chegou por telefone como sendo o objectivo para hoje nunca assumi que fosse um pesqueiro. Aquele era nome de cargueiro talvez. Ou de petroleiro. Quem sabe de um iate... sim porra, que fosse um iate. Que fosse aquilo que para nós era o Santo Graal, o “barco da Playboy”: um amontado de aço mitológico que invade o imaginário de todos aqueles que se encontram em exigente serviço de alerta. 

scorpius

O dia estava estranho. Bom tempo no Montijo mas a piorar progressivamente a norte de Lisboa. Que raio... estamos em Julho! O tecto das nuvens encontrava-se talvez a uns mil pés e a descer quando decidimos ficar por cima dele. Entramos dentro das nuvens e cruzamos a linha de costa. A única indicação que temos disso é a imagem, em tons verde, do nosso radar de busca que se renova de poucos em poucos segundos. As nuvens que nos envolvem vão ficando cada vez mais claras. Num branco mais intenso e brilhante. Estamos quase a “furar” a camada. Cerro os olhos. Aquela intensidadeé tal que a viseira do capacete pouco me serve. E de repente, num segundo, um céu azul maravilhoso. Nivelamos. Tiro uma fotografia mental e cinco segundos do voo para apreciar aquelas nuvens que passam a rasgar por nós. “O sol lá em cima brilha sempre”. Como é tão verdade. 

As coordenadas do nosso objectivo estão próximas, algures ao largo da Figueira da Foz. A mais ou menos quarenta milhas tentamos um primeiro contacto com o “Scorpius” em canal dezasseis (canal de emergência marítima). Hoje não ía ser uma estreia só para mim. Seria também a estreia neste tipo de embarcações para o Operador de Sistemas – o homem que opera o guincho. Fotógrafo do caraças diga-se por sinal, tinha acompanhado o seu curso de qualificação em OPS, tendo mesmo sido o comandante em alguns dos seus voos de avaliação. Eu sabia que tinha ali um gajo que era uma máquina. E isso dá confiança. E se eu metesse as patas tenho a certeza que o Recuperador Salvador – outro meu bom amigo, com quase dois metros de altura e o dobro da minha envergadura – me chegaria o fato de voo ao pelo. 

Iniciamos a descida. O contacto com o pesqueiro está estabelecido, deslizamos para os duzentos pés e saímos de nuvens por volta dos oitocentos. A coordenação com o “Scorpius” é clara: iremos necessitar que naveguem com o vento sensivelmente a trinta graus por bombordo. Isto irá colocar-nos na melhor posição possível para a recuperação.

“Hoist recover checks”, transmito pela interfonia interna.

Coloco o helicóptero em estacionário ao lado veleiro, a bombordo, porta lateral aberta e iniciamos uma troca de impressões entre nós. Independentemente do posto (Tenente, Sargento Ajudante o Primeiro Sargento) e independentemente da função(Comandante, Co-Piloto, Recuperador, Operador Sistemas e Enfermeiro) todos dão voz à sua opinião. Ali não há lugar para egos. Para egoísmo. Para individualismo. Ali trabalha-se em equipa e somos um. E vidas dependem disso. 

Decidimos efectuar a operação mais baixo do que o normal. Vamos fazê-lo a cinquenta pés devido à curta dimensão do pesqueiro. “Cascas de noz...” amaldiçoa a minha mente. 

Como o EH-101 é uma aeronave de dimensões consideráveis, entre a posição onde o piloto comandante se senta e o guincho vão uns cruéis três ou quatro metros. Isto significa que quando o guincho estiver à vertical do ponto de colocação do Recuperador o piloto está de facto metros à frente. Com embarcações pequenas corremos o risco de perder as referencias visuais. Sem referencias não conseguimos manter estacionário. E sem estacionário não há recuperação. E o “Scorpius” é dos pequeninos. 

Faremos igualmente colocação por “hi-line”. Operação que consiste em colocar inicialmente um cabo guia na embarcação que facilitará a descida e colocação do nosso Recuperador em alvos curtos de... espaço. 

“Hi-line” pronto. Cinquenta pés no rádio altímetro. “Checks” efectuados. Inicialmente efectuamos um acompanhamento para que eu e o operador de sistemas tiremos as referencias necessárias. 

“Dez à direita, dois em frente”, inicia o operador de sistemas.

“Oito à direita”.

“Seis à direita”. 

À frente, olho pela janela direita. O pesqueiro fica a cada segundo mais oculto do meu campo de visão. Vejo apenas um pouco do casco pela pequena janela a meus pés, a embater contra as vagas que teimam em não parar. Tenho a janela aberta para sentir aquela brisa que tanto gosto. 

“Dois à direita”.

“Já não tenho referências quase nenhumas aqui à frente”, digo. 

“Um à direita...”

“À vertical, mantenha”.

“Não tenho o pesqueiro à vista.”, voicero com alguma urgência.

“Dois à esquerda. Temos o pesqueiro à esquerda, a perder o objectivo”, diz o operador de sistemas.

“Quatro, não, seis à esquerda.”

“Dez à esquerda, perdi o objectivo”. 

“Ora fodass”, penso. Aí estão umas palavras que nunca pensei ouvi dizer a voar do lado direito (nos helicópteros, salvo raras excepções, o piloto comandante senta-se do lado direito).

Entro novamente na interfonia: “Vou dar a volta, e vamos tentar novamente a quarenta pés”. 

Desço para a altura pretendida. E como dez pés fazem a diferença. Mais baixo seria impossível. O “Scorpius” tinha umas antenas que teimavam em não parar quietas no éter. Mais baixo e iríamos cumprimentá-las. 

“Siga”. 

Quando oiço novamente as palavras “À vertical, mantenha” consigo distinguir parte do casco do “Scorpius” junto aos meus pés. A cada vaga de dimensão maior perco novamente o pesqueiro de vista por instantes. Instintivamente dou manche atrás sempre que isso acontece. Mas dois segundos é o suficiente para colocar o “hi-line” na embarcação. 

“Contacto! Vinte à esquerda”.

“Hi-line” na embarcação! Coloco-me à esquerda com o veleiro bem visível. A partir daqui toda a operação será executada com a preciosa ajuda do “hi-line”, o que permitirá uma colocação mais progressiva e reduzirá o tempo que precisarei de estar à vertical. 

Repetimos o ritual já com o Recuperador Salvador. Preso ao guincho, segura numa das mãos o “hi-line” que o irá guiar ao pesqueiro.

Iremos colocá-lo num pequeno espaço a bombordo, um pouco antes da ponte da do “Scorpius”.

Colocação do Recuperador feita e é altura de descer a maca. Em pouco mais de três, quatro, talvez cinco minutos, temos a bordo a nossa nova e preciosa carga. 

“O helicóptero é teu” digo para o co-piloto. Saída perfeita e voltamos pela direita. 

Limpo o suor da testa e estalo o pescoço. Bem que precisa.

Rumo sul, direcção Lisboa, aeroporto da Portela. Continuamos com tectos baixos, voamos portanto mais baixo (boa!), sempre visuais com o terreno. 

Aterramos na pista 17 e rolamos até à placa militar de Figo Maduro. 

“Esta foi das duras” digo em jeito de início debriefing, “Pesqueiro pequenino hen?”.

“Podes crer!”, oiço lá de trás. 

Mal sabia eu que daí a três semanas iria engolir aquelas palavras. 

Sairia novamente. E para um pesqueiro mais curto que o “Scorpius”. Um metro mais curto! Um maldito metro. 

Lição do dia? Afinal o tamanho conta.

E muito!

 

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Parabéns

Base Aérea nº 6, Montijo. Cinco da manhã. Madrugada de um qualquer dia de Março. Ano 2010.

Um frio de rachar, de fazer tremer qualquer um. Toca o telefone. Aquele toque irrompe pelo silêncio do quarto com violência.

Uma chamada a esta hora só pode significar uma coisa.

“Meu Tenente, é para activar o alerta”.

É “Pavloviano”. Quinze segundos e o fato de voo está vestido. As botas estão calçadas e a cara está salpicada com aquela água gelada que sai do lavatório.

“Qual é a situação, é para onde?”

“Cargueiro a afundar com mais de 20 tripulantes. Cento e oitenta milhas da costa da Galiza.”

“Galiza? Espanha?” 

A porta fecha-se com um estrondo. Corrida até ao carro, chave na ignição e pouco mais de trinta segundos de condução (agressiva!). 

“Bom dia”.

“Ei.” 

A tripulação cumprimenta‐se em passo apressado no edifício da Esquadra. Construção moderna, algo minimalista, toda ela branca, a “casa‐mãe” da 751 divide‐se em duas secções principais. Uma área operacional com salas de briefing, operações, planeamento e guerra electrónica, e uma área “social” com o tão icónico bar de Esquadra e instalações de apoio. É na primeira que todos se reúnem. 

“Então ouvi dizer que vamos até Espanha…”

Um cargueiro de bandeira dos Barbados, MV KEA, encontra­‐se a afundar ao largo da costa da Galiza. Sensivelmente a cento e oitenta milhas náuticas do cabo Finisterra. Sendo o EH‐101 “Merlin” uma aeronave com um alcance e capacidade de transporte inigualável as autoridades espanholas - sem acesso a máquinas semelhantes - requerem o apoio do estado português.

“Está tudo? Vamos embora!”, diz o comandante de missão. 

“Porra… este é só o meu segundo alerta” penso em silêncio para mim mesmo. Ainda mal me adaptei à esquadra e já me vejo envolvido numa missão longa num país estrangeiro com um cargueiro a afundar. Irra.

O barulho característico dos motores Rolls Royce Turbomeca invade a pacatez desta madrugada da península do Montijo. A missão irá levar-nos até Santiago de Compostela. Aí iremos reabastecer antes de prosseguir para a zona de operações. 

O voo para Santiago é atribulado. Muitas nuvens. Gelo. Turbulência. Especialmente à passagem da Serra do Gerês. Tenho tempo para pensar porque raio temos sistemas de anti gelo nos motores e não nas pás. Não podemos voar em condições de formação de gelo apenas com o sistema instalado nos motores. E quando entramos numa nuvem quando não há outra hipótese, com temperaturas negativas, acreditem... Pensamos nisso. Nisso e naquele café bebido à pressa na Esquadra que vale ouro. Não. Vale bem mais do que ouro.

Aterramos em Santiago onde o reabastecimento é efectuado o mais rapidamente possível. Entretanto aterra um helicóptero “Super Puma” espanhol, proveniente da área de operações. Regressa com um náufrago. Devido à falta de autonomia da aeronave foi-­lhes apenas possível resgatar um elemento. Descrevem uma situação de caos. O normal para um cargueiro a afundar. Hora de descolar novamente. A hora e meia que nos separa da zona operacional parece-se com dias. A ansiedade acumula-­se. Discutem‐se os últimos pormenores da missão. Afinam­‐se estratégias. Inicia­‐se a coordenação com as autoridades espanholas que entretanto já tinham uma aeronave de asa fixa no local tendo encaminhado alguns navios civis para a área que, esperava-se, chegariam em breve. Limpa-se o suar que escorre pela testa. 

A sensivelmente cinquenta milhas náuticas já é possível ouvir na frequência de emergência marítima a voz, carregada de stress, de um qualquer náufrago e de um operacional de busca e salvamento espanhol que, desesperadamente, lhe dizia para abandonar o navio. “Fodass” penso, “mais 100kts de velocidade hoje dava jeito”. Mas não havia nada a fazer. A velocidade já lá estava: no máximo.

“SASEMAR, SASEMAR, this is RESCUE 23 calling on guard, we´re 3 minutes out”.

E ali estava ele. O MV KEA. Um imponente cargueiro, tombado de lado. Nem se assemelhava a um navio. Era como um grande destroço.

O MV KEA

O MV KEA

À deriva, à mercê dos elementos. À sua volta a água embatia no casco em tons de negro. Negro da Nafta, libertada dos seus tanques. E como um mal nunca vem só, especialmente em busca e salvamento, as vagas chegavam aos oito metros de altura. No meio disto tudo pequenos pontos laranjas. Pequenas figuras com movimento próprio. Quase que ocultas pelas vagas e destroços. Náufragos.

“Ali, do lado direito, três náufragos”.

O operador de sistemas – o tripulante responsável por operar o guincho e guiar os pilotos para a vertical do objectivo – iniciava a sua operação.

“Dez em frente, dois à direita”.


Este elemento guia o piloto através de uma escala numérica que não tem um significado próprio. Não são metros. Nem pés. Nem milhas. Não é nenhuma unidade de medida específica. É apenas uma unidade mental com que ambos trabalham que vai diminuindo à medida que se vão aproximando do objectivo. A juntar a isto, o Recuperador Salvador, já preso no cabo do guincho, dá igualmente indicações ao operador de sistemas. Uma verdadeira cadeia de comunicação. Recuperador, Operador de Sistemas, Piloto. Com tempo apercebemo-nos das pequenas diferenças entre operadores de guincho. De diferentes percepções das escalas. Tal como eles se apercebem, e aprendem a lidar, com os diferentes pilotos. É mágico quando tudo corre na perfeição. E geralmente corria sempre. 

“Oito em frente, um à direita”.

“Seis em frente”.

“Três em frente”.

“Um em frente”.

“À vertical. Mantenha”.

“Contacto!”

E assim foi, náufrago atrás de náufrago, foram recuperados cinco elementos em mar aberto. Até o nosso Recuperador Salvador estava completamente negro, dos pés à cabeça. Aquela nafta, com um cheiro intenso, colocou todos dentro do helicóptero com sensação de enjoo. Entretanto um navio de busca e salvamento espanhol, que tinha chegado à área, resgatava outros elementos da tripulação do amaldiçoado cargueiro.

Passado alguns minutos chegamos à conclusão que dois elementos da tripulação estariam desaparecidos. Ainda tínhamos algum tempo de autonomia. A missão não terminava aqui. Efectuamos vários circuitos de busca. 

Bingo fuel. Hora de regressar. 

“Fast forward” uns meses. Salão Náutico de Barcelona. Novembro de 2010. A tripulação do RESCUE 23 que participou no resgate do MV KEA encontra-­se novamente reunida, com excepção do Recuperador Salvador que, por motivos de força maior não pode estar presente.  

Foto: CAVFAP (c) 

Foto: CAVFAP (c) 

Desta vez o fato de voo ficou em casa. Farda número um, impecavelmente engomada, para receber por parte do governo espanhol (através da sua agência marítima SASEMAR) a condecoração “Ancla de Plata” 2010.

O orgulho está lá. Espelhado na face de cada um de nós. 

Tal como está cá hoje. 

28 de Abril de 2016. A Esquadra 751 celebra trinta e oito anos de história. Trinta e oito anos de muita dedicação, suor e esforço. Trinta oito anos de muitas noites sem dormir, de stress constante, de tomadas de decisão impossíveis. De coragem. De discussões com a mulher. De divórcios. De saudade. Dessa filha da puta de saudade que tende em nos assombrar quando estamos fora. Mas acima de tudo trinta e oito anos de dever cumprido. Trinta e oito anos a dar o melhor de cada um de nós, aqueles que por lá passaram e aqueles que por lá estão. 

Lembro-me bem que nesse dia, após quase quinze horas de missão, ainda fui jantar com um grupo de amigos a Lisboa. Ali para os lados da Av. da Liberdade. Quando cheguei - atrasado - perguntaram-me que tinha eu andado a fazer que tinha o telefone desligado. Ao descrever aquelas horas imediatamente anteriores um deles pergunta-me: “Porque raio fizeram isso tudo?”

A minha resposta foi simplesmente: 

Para que outros vivam.” 

Parabéns Esquadra 751. Obrigado. Por tudo.

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Ou chumbas ou desistes

As paredes eram brancas. Aquele branco sujo, tão típico de edifícios militares. Um cheiro familiar mas que não conseguia identificar pairava no ar. Pó, mofo, algo do género. 

À minha frente uma mesa, castanha, antiga e em mau estado. Uma câmara de filmar, com aquela luz vermelha insistente e irritante, e o seu operador militar,  não me recordo do posto. À minha frente, sentado na mesa, um Major do Centro de Psicologia da Força Aérea. Um Major que era temido por todos nós: cabia-lhe a ele a decisão final sobre se continuaríamos ou não a lutar pelo nosso sonho. 

À sua frente duas folhas de papel. 

“Sente-se Sr. Nunes.”

Era quarta-feira. O dia estava solarengo. Uma brisa fria, tão típica daquela zona, soprava do lado do mar. Encontrava-me na Base Aérea nº1, arredores de Sintra, em pleno estágio de voo para o curso de Oficial Piloto. O estágio de voo tem a duração de uma semana e é desenhado para testar a capacidade do candidato (vá, mancebo!) na sua adaptação à vida militar, ao stress, pressão e claro à fisiologia de voo: para isso iríamos efectuar vários voos em DHC-1 Chipmunk. Comigo outros dezasseis candidatos. Muitos deles tornar-se-iam meus camaradas de curso e, também, meus melhores amigos. Nessa altura ainda não o sabia. 

Já tinha concorrido à Força Aérea dois anos antes. Na altura consequência de uma nota em um exame nacional do ensino secundário – fruto da minha estupidez de adolescente – viria a abandonar esse concurso para a Academia da Força Aérea, já no último dia do estágio de voo, tendo efectuado seis voos porreiros (por porreiros quero mesmo dizer penosos!). Mais tarde concorreria novamente, mas durante a fase de admissão – e ouvindo o conselhos de alguns amigos – alteraria a minha candidatura de PILAV (Oficial de Academia) para PIL (Oficial em regime de contrato, os antigos milicianos). E aqui estava eu. Sentado naquela mesa. 

“Então Sr. Nunes... temos aqui um problema”. 

As palavras daquele Major atingiram-me como um raio. Lembro-me bem do sentimento de medo instantâneo que me percorreu a espinha. Dali não vinha coisa boa. 

“Tem duas opções” dizia o Major enquanto deslizava as duas folhas de papel para a minha frente “Ou chumba, ou desiste. Agora escolha.”

Eu, perplexo, não conseguia proferir nem uma sílaba. Tinham apenas passado dois dias, não tinha metido as patas em nada, pensava eu. Nem sequer tinha voado, aí não meti de certeza. Não percebia o porquê daquela situação. 

“Oiça lá. Você não ouviu o que eu lhe disse? O seu caminho acabou aqui, ou chumba ou desiste. Agora escolha”. 

“Mas... Sr. Major, fiz algo de errado?”

“Mau. Leia os papéis e escolha. Assine e vá à sua vida que não tenho tempo para isto.”

Naquela altura – agora também provavelmente – existia uma significativa diferença entre as duas situações. Se um candidato desistisse este poderia concorrer novamente no próximo concurso. Se chumbasse a situação era outra: como o candidato tinha sido considerado inapto para a função teria de suportar um longo período de carência até puder voltar a concorrer. O que no meu caso, com vinte anos, era o mesmo que dizer que acabava ali o sonho. Desistir era, à primeira vista, a melhor solução. 

“Sr. Major peço desculpa, mas pode-me dizer o que fiz?”

“Mas você é surdo? Escolha. Ou chumba ou desiste. Eu não tenho tempo para isto...”

Esta discussão semi-amigável durou talvez uns quinze minutos. Ou vinte. Ou cinco. Não sei. O meu espanto e nervosismo provavelmente influenciaram a minha percepção do tempo. Comecei a responder de forma mais acesa, até que já resignado e claramente farto disse: 

Alturas houve em que o autor tinha pinta!

Alturas houve em que o autor tinha pinta!

“Você chumbe-me. Chumbe! Eu desistir não desisto. Daqui não saio por minha vontade. É o meu sonho. Agora chumbe-me!”

Esticou-me a mão.

“Parabéns. Bem vindo à Força Aérea”. 

Devo ter ficado uns bons trinta segundos a digerir aquelas palavras. 

Ali, naquele momento, com vinte anos, aprendi uma das maiores lições da minha vida. Não. Vivia-a: nunca desistir. 

Nunca. 

Passados anos tornei-me amigo desse Major, então Tenente-Coronel. E ele bem que se lembrava do episódio. Soube então que perante as minhas alterações de curso enquanto concorria e a minha anterior desistência eles não estavam certos da minha vontade e resiliência em ser piloto. A adaptação ao voo já a tinha feito dois anos antes. Se eu, naquele dia, naquela sala tivesse dito “Desisto” era exactamente isso que tinha acontecido. Tinha saído por aquela porta e voltado a casa. E hipotecava certamente as as minhas hipóteses de ser piloto militar de forma permanente. 

A Força Aérea não procura super homens. Procura homens e mulheres que não desistem. Que, mesmo perante o impossível, o imprevisto e o impensável continuam em frente. A missão é para se cumprir. E se não houver essa resiliência é garantido que um candidato nunca sobreviverá às incontáveis privações, exigências, stresses e pressões de um curso de pilotagem militar.  

Ainda hoje levo comigo o sentimento que vivi dentro daquelas quatro malditas paredes. E esse sentimento, para mim, tornou-se sagrado. 

Por mais difícil que seja a situação. Por mais complicada que possa parecer a solução. Por mais na merda que um tipo esteja. Por mais perdida que seja a situação... Um tipo não desiste. 

Pode falhar. Mas desistir nunca

Nunca.  

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TAP & Facebook

Hoje decidi fazer uma experiência social. Fui ler com atenção a página de Facebook da TAP Portugal. 

Já sabia que nós, portugueses, podemos ter mau feitio. Pior que as cobras. Quando queremos, tão maus como a ferrugem! Li. Li e continuei a ler. 

“Já devia era ter juízo” pensei para dentro. 

Entre juras de boicote, de linchamento público e de apelos ao regionalismo encontramos um pouco de tudo. O síndrome de “treinador de bancada” também aqui existe. Muitos se transformam em peritos aeronáuticos, únicos detentores da compreensão das leis da Física que amarram um avião ao éter. 

Algumas queixas em concreto. Mas muitas em abstracto. 

Para mim foi uma experiência traumática. A malta que gere o Facebook da TAP (um dos mais eficientes que anda pela Web) não tem um trabalho fácil

tapfacebook

E então interroguei-me. Será que também as outras companhias sofrem desta aparente raiva? Será que os alemães odeiam a Lufthansa? Os espanhóis a Ibéria?  Bem... vamos ver.  

Lufthansa. Permitam-me fazer já aqui “mea culpa”. De Alemão percebo tanto como de plantações de beterraba. Portanto limitei-me a comentários em inglês. Quase dois milhões de gostos (sensivelmente o dobro dos da página da TAP). Muitas questões sobre voos, algumas reclamações sobre outros e um ocasional comentário mais agressivo sobre um cancelamento. Mas comentários contra a companhia? Contra a marca? Não vi nenhum. 

Seguem-se os Bifes. British Airways. Exactamente o mesmo. O ocasional comentário sobre cancelamentos de voos, mas em geral até bastante positivo. Como é apanágio da cultura britânica, muitos elogios a elementos individuais que se excederem no seu trabalho. Ataque à companhia ou à marca, zero. 

“Oh porra” pensei. “Mas isto são tipos frios. Nórdicos e afins. Não se exprimem da mesma maneira”. Vamos lá ver os latinos. 

Iberia. “Nuestros hermanos”. Certamente depois de todos os problemas da Iberia haverá “granel” neste facebook. Click. Já mais queixas sobre voos. Malas perdidas. Questões sobre Bruxelas (de facto, presente em todas as páginas). Andando um pouco mais para baixo lá se encontra um curto e forte: “Ustedes son una aerolinea péssima”. Nem bons ventos nem bons casamentos. Tinha de haver alguma coisa! Mas mesmo assim muito longe da página da TAP.

E por falar em “alguma coisa” vamos lá ver a Alitalia. Aquela companhia que fez título de artigo com “A empresa italiana em que nem os italianos confiam”.  Nada. Perdão. Niente. Página calma. Os Italianos já devem gostar da Alitalia como gostam das apresentadoras da Rai Uno. 

“Caramba”. As Low Cost serão diferentes certamente.

EasyJet. Queixas sobre a marca? Poucas. Quase nenhumas. Pelo contrário. Mais de um milhão de gostos e tirando o ocasional passageiro(a) que relembra a companhia a cada post da sua má experiência, pouco mais se vê.

E finalmente, Ryanair. Certamente aqui haverá alguma “raiva” à solta. Tendo em conta o tipo de operação da companhia. Como eu me enganei. Até encontramos comentários que se iniciam com "Ryanair can you kindly confirm (...)” que equivale a perguntar a um membro do Corpo de Intervenção se faria o favor de bater com jeitinho.

Após isto entrei num momento de retrospecção pessoal. Será a TAP assim tão má comparada com as suas congéneres? Será o serviço, a pontualidade ou operação assim tão diferente que justifique tais diferenças? 

Não. Não é. 

Os números provam-no. Mantém-se uma das companhias mais seguras do mundo. Nos últimos meses a TAP fez parte das dez mais pontuais. Eleita ano após ano como líder para as Américas e África e com um serviço considerado de topo. Há muita razão para se voar na TAP. 

O que muda afinal? Nós. A nossa mentalidade de povo. Aquela nossa ideia que como algo é nacional terá de se submeter aos nossos caprichos. Um pouco à semelhança de como encaramos – infelizmente – o Estado. Ou quem nele exerce funções. “Pode ser mau, mas desde que me favoreça, tudo bem”. 

A TAP não voa da minha cidade para o destino que quero? “Boicote!” Pouco interessa se isso daria prejuízo. Não, o que interessa é ter essas rotas. Sejam boas ou más para a “saúde” da companhia. 

A TAP não vende bilhetes para Nova Iorque a 100€? “Uma vergonha! Como português merecia isso”.

Um avião da TAP alternou por causa de mau tempo? “Como é possível? Só na TAP, desgraça nacional!”

Um avião da TAP atrasa? “É sempre a mesma coisa”.

Suspiro. 

Deveríamos todos remar para o mesmo lado. E não fazer juras contra o sucesso daquela que ainda é uma das poucas marcas nacionais.

E isto acontece quando a empresa já é privada (dizem). 

Imaginem se ainda fosse pública. 

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1922

Belém. Quem passa por aquela zona à beira rio num dia de sol mal repara naquela réplica de aço de um biplano que por ali se encontra. Há quem tire consolo da sombra que aquelas asas oferecem. "Dádiva dos deuses", pensarão quando o calor aperta. E quem, por curiosidade, tenta ler o que naquela placa está gravado é defrontado com um texto quase imperceptível. Culpa de anos e anos de exposição aos elementos. Frio, chuva e calor que fizeram desaparecer aquelas palavras de homenagem. 

Mas essa culpa é também dos que andam por cá: Nós.

Prontos para mais uma noite no LUX. Ou isso ou cruzar o Atlântico sul. 

Prontos para mais uma noite no LUX. Ou isso ou cruzar o Atlântico sul. 

30 de Março de 1922. Faz hoje noventa e quatro anos (texto de 2016) que de ali próximo descolaram dois portugueses numa máquina construída de tela e madeira: um hidroavião baptizado de “Lusitânia”. Os seus nomes? Gago Coutinho e Sacadura Cabral. O seu destino? Brasil. 

Aquela seria, pela primeira vez na história, uma travessia do Atlântico Sul. E mais do que o feito aeronáutico de levar uma aeronave tão longe seria o feito de lá chegar, ao local exacto: usariam uma inovadora técnica de navegação aérea desenvolvida por Gago Coutinho. 

Um feito épico. Uma viagem em que – mais uma vez – os portugueses demonstrariam que eram capazes de ser empreendedores. Com os tomates no sítio e com a cabeça fria, chegariam lá. E seríamos os primeiros a fazê-lo. Como se aquele espírito das Descobertas ainda vivesse naquelas asas. 

Foram setenta e nove dias. Três aeronaves. Uma amaragem. Uma falha de motor. Certamente muito suor, palavrões e insultos à mistura. E mais de 8000km de viagem. Mas chegaram. Chegaram ao seu destino e fizeram história. 

Foram (e gosto de pensar que ainda são!) o orgulho de um país. Inscreveram Portugal na história aeronáutica e provaram mais uma vez que aquela nação pequena era mesmo valente e capaz de coisas grandiosas. 

lusitania

E passam noventa e quatro anos. Aquela placa imperceptível continua igual. Como se tal feito fosse cruelmente eliminado da nossa memória colectiva. Pouco se fala. Pouco se comenta. Pouco se lembra. 

Bem sei que hoje chegamos ao Brasil em nove horas. Confortavelmente sentados a 40.000 pés, a olhar pela janela. Até nos chateamos quando a temperatura está um pouco alta na cabine ou o entretenimento a bordo demora muito tempo a iniciar aquele filme que queríamos ver. Mas isso é hoje. Quase um século depois. 

Aqueles dois tipos que deviam ser uma inspiração para todos nós, exemplo de engenho e arte, são infelizmente relegados ao esquecimento. 

Não comemoramos os nossos heróis neste país. Não os celebramos como exemplo do que somos capazes. Como se, de forma algo surpreendente, tivéssemos vergonha das glórias do passado. Não devíamos.

Abano a cabeça em sinal desilusão. Ao menos arranjem aquela porra de placa. 

É o mínimo que podemos fazer. 

E isso não é ser picuinhas. Não é ser saudosista. Não é ser nacionalista. Não.

É tão simplesmente o nosso Dever

Como povo. Como Nação.

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Desterrado

A vida de piloto de alerta de Busca e Salvamento é um paradoxo. Uma lixada luta interna entre a vontade pessoal e o bom senso humanitário. 

Por um lado queremos voar. Qualquer piloto, e isto é inerente à sua função, quer dar “gás aos copos” e descolar rumo ao vazio. Era para aquilo que lá estávamos. Por outro, a dura realidade: sabíamos que qualquer saída significaria alguém em graves apuros. 

“Se tivesse de sair, ao menos que fosse comigo” era o consolo que dávamos à nossa consciência. Os alertas saem. Não existe volta a dar. Mais vale que sejam no meu turno. 

E foi exactamente isso que aconteceu a 31 de Janeiro de 2011. Passava um pouco da hora de almoço. Estômago cheio. Aquela hora em que o nosso corpo teima em não responder. Parece um Fiat Panda de 1978. Mas para isso mudar basta um telefonema. É instantâneo. 

“ALERTA!” grita-se pela esquadra. 

“Eiii, vou voar!” 

Era o co-piloto de alerta essa tarde. O comandante era um grande amigo meu que agora, anos mais tarde, trabalha comigo na mesma empresa civil. Os anos passam, o espírito mantém-se. 

Como sempre, corrida para a sala das operações e falamos muito rapidamente do que se passa. A moleza? Essa já era. 

Um pesqueiro de nome “Desterrado” estava a afundar, com oito almas a bordo, algures a vinte milhas náuticas entre o cabo Espichel e o cabo da Roca. 

Colete de emergência, “may-west”, capacete na mão e corrida para o helicóptero, sempre fiel e silenciosamente pronto no seu lugar habitual. O EH-101 “Merlin” atribuído ao alerta nacional fica tradicionalmente sempre na mesma posição na placa. A mais próxima do heliporto e com táxi desimpedido de modo a minimizar ao máximo o tempo de descolagem.

Connosco hoje no helicóptero temos um Operador de Sistemas que tem mais anos disto que eu de vida. Uma verdadeira “máquina de guerra”.  Conseguia guiar-nos para um navio com olhos fechados. O recuperador salvador é igualmente um veterano destas andanças. Como todos os outros tem uns tomates feitos de ferro e uma humildade do tamanho do mundo. O nosso enfermeiro, experiente para não variar, é um dos gajos mais desenrascados que conheço. E quando tudo falha, quando aquela dor que temos no joelho depois de duas horas de Ténis é tão intensa que mal andamos ele tem sempre pronta uma resposta: 

“Bebe água que isso passa”

“Epah, mas mal ando.”

“Doi quando tocas?”

“Doi, porra!”

“Então não toques!”

Voar com estes gajos é voar com total confiança. É assim que gosto. É assim que deve ser. 

Descolagem e velocidade máxima. Chegamos ao local das primeiras coordenadas. Nada. Zero. Niente. Dia limpo, visibilidade perfeita e nem uma embarcação à vista. 

“Mas que raio?”

Entramos em contacto com o Comando Aéreo (CA) que prontamente nos transmite as coordenadas actualizadas. Novamente “gás aos copos” e estamos na nova zona de operações em menos de dez minutos. 

Fantástica foto da autoria de Jorge Ruivo. Todos os direitos reservados (c)

Fantástica foto da autoria de Jorge Ruivo. Todos os direitos reservados (c)

Ali estava ele. Pesqueiro, dimensões pequenas, como que a lutar pela vida, a navegar com rumo Sul. 

Entramos em canal dezasseis (frequência de emergência marítima): 

“Pesqueiro Desterrado, daqui é o RESCUE 23, helicóptero de Busca e Salvamento da Força Aérea”.

Obtemos resposta do mestre da embarcação. A sua voz, tensa e nervosa, denota a gravidade da situação. 

“Oh Rescue! Tenho a casa das máquinas a meter água, o motor praticamente debaixo de água!”

O "Desterrado" a caminho de Sesimbra. 

O "Desterrado" a caminho de Sesimbra. 

Nós, no cockpit, como que olhamos um para o outro em silêncio. Ambos sabemos o que nos vai na mente. “Vai ao fundo”. Iniciamos via rádio a coordenação para a evacuação do pesqueiro. Queremos os tripulantes todos com coletes, na água, a uma distância de segurança. Queremos saber quantos são e que equipamento têm. E então ouvimos uma resposta que nunca pensámos ouvir. 

“Malta. Mas nós não vamos abandonar o nosso pesqueiro!”

“Mestre...(!)... como assim!?”

“Ele está a meter água. Mas ainda navega. O motor está submerso, mas funciona... vou tentar levá-lo para Sesimbra.”

“Mestre, a operação é muito mais fácil se fizermos um abandono controlado...”

E aí oiço, naquela voz forte, endurecida por anos de mar e mar e mais mar, umas palavras que não esquecerei: 

“Rescue! Para mim isto não é um pesqueiro. Para mim é a minha vida”.

E com aquilo calou-nos. Era a vida dele. Não. Era mais que isso. Era o seu sustento. A sua embarcação. A sua alma. E ele era o seu mestre. O seu comandante. E iria lutar por ela até ao seu último suspiro. Fosse o do frágil motor do pesqueiro. Fosse o seu. 

Nós, habituados a tantos naufrágios e tanta vida perdida no mar, por vezes desnecessariamente, achámos a decisão um risco acrescido. Mas aceitámos. A decisão não era nossa. E não havia ninguém dentro daquele helicóptero que não respeitasse profundamente a decisão do seu mestre. 

Ficamos a acompanhá-los. Como um lobo “escolta” um outro lobo ferido. Sempre com eles, a baixa velocidade. Direcção Sesimbra. 

A corveta da Marinha Afonso Cerqueira já se encontrava a caminho da nossa posição para nos render com uma preciosa carga: uma bomba de água. Passámos o testemunho após uns quarenta minutos. Aqueles oito homens, a lutar pela vida da sua embarcação, estavam em boas mãos. 

Ao dizer “Boa sorte mestre!” nos rádios lembro-me bem de pensar na triste sorte que aqueles homens teriam. Afundariam provavelmente nos próximos minutos. Afinal de contas que motor funciona submerso?  Que pesqueiro navega a meter água e mais água? Nenhum. Nenhum mesmo. 

E mais uma vez a vida me provou como posso estar errado

Já era de noite quando o “Desterrado” entrou no porto de Sesimbra. “Ferido” mas “vivo”. Aqueles oito homens tinham-se safado. Eles e o seu ganha pão. A sua vida. 

Eu posso usar barba. Mas ela nunca será tão rija como aquela daqueles homens, naquele pesqueiro, naquela tarde. 

Bom trabalho mestre!

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Rosa Brava

Os chaparros passavam-me pelo canto do olho. Em “Flash”. “Que dia do caraças”, pensava para mim. A pouco mais de quinze pés – cinco metros – voamos entre a vegetação. O meu olhar divide-se entre o outro Alouette III à minha frente, ligeiramente à esquerda, e o chão que teima, por minha vontade, em estar tão perto. À nossa frente a brigada mecanizada do Exército. Dezenas de blindados e toda a poeira que eles produzem nesta manhã seca. Inconfundíveis

Há dias em que é difícil um tipo não pensar que este é um trabalho com uma grande pinta. Hoje é um deles. 

Decorria o ano de 2009. Como é tradição na Esquadra 552, apoiávamos ao longo do ano vários exercícios e acções do Exército. Sendo nós um grupo de ávidos pilotos militares – malta relativamente nova – procurávamos estes exercícios como pão para a boca. Vintes cães a um osso, se preferirem. E como tal tínhamos um sistema de escala na Esquadra que tentava fazer uma distribuição justa destas missões pelos diferentes operacionais. 

“Ah ah!” Exclamava eu com peito inchado. Rosa Brava 2009. O exercício anual do Exército, que decorreria em Santa Margarida, tinha-me calhado a mim.

Nesta primeira semana iria acompanhar um dos pilotos do exército que connosco voava na 552 – na altura tínhamos três – seria o seu número dois. Não lhes invejava a posição. Presos entre uma instituição ao qual não pertenciam, por vezes com um modo de actuação diferente – a Força Aérea – e o seu próprio ramo que, curiosamente, tinha pilotos... mas não tinha aeronaves para eles voarem. Ingrato. 

Santa Margarida é o enorme complexo militar do Exército português. Situa-se a Sul do rio Tejo, directamente na margem oposta a Tancos, antiga base da Força Aérea, agora base do Exército, e base mãe dos Paraquedistas portuguesas. A enorme área de Santa Margarida, com as suas carreiras de tiro, edifícios, obstáculos naturais e artificiais, representava o local ideal para o treino das diversas unidades do exército. Para nós, gajos dos helicópteros, não seria diferente. Um enorme e extenso “Playground”. 

Essa semana foi rica em missões. Largadas de tropas, operações especiais, muito voo táctico e calibração e avaliação dos radares, e respectivos operadores, do Exército (basicamente voar o mais baixo possível e ver quando seríamos detectados).

Mas uma foi especial. Iríamos “atacar” a Brigada Mecanizada. Nós, dois Alouette III, contra várias dezenas de blindados, uns quantos milhares de homens e, já agora, dois F-16 que nos tentariam abater. “Que raio”, pensava, “Que desperdício de recursos militares! Bastava um Alouette para essa gente toda!”. 

Um gajo não retira, dá meia volta e investe! 

No briefing dessa manhã,  sala cheia, denoto que sou o único oficial presente que não é do Exército (o outro piloto mantinha-se o oficial daquele ramo). Parte do “briefing” é dedicado à apresentação da fita de tempo e de toda a actividade planeada para aquele dia. Nessa manhã em concreto toda a brigada mecanizada iria deixar as suas posições (entre M-60, M-113 e outros veículos de apoio) e efectuar uma progressão para Sul. Aí iriam encontrar diversos problemas, entre eles, claro, o nosso ataque. 

Eu, Alferes no meio de oficiais superiores, lá levanto a mão timidamente.

“Diga meu Alferes”.

“Meu Coronel, qual é o perfil de ataque que quer que nós tenhamos?” 

Vejo pelo canto do olho o meu camarada do Exército a virar muito lentamente a cabeça na minha direcção como quem diz “Nunes, que merda é que tu vais dizer agora?” 

“Como assim?” 

“Que perfil devemos simular? Se simularmos um Apache ficaremos a 6km a simular o lançamento de um Hellfire. Se simularmos Heli-canhão o nosso perfil de ataque será diferente...”

“Caro Alferes, o grande objectivo aqui é a coluna perceber que está a ser atacada e tomar as devidas acções evasivas. O perfil é vosso. Eles têm é de perceber que estão sobre ataque. O treino é para eles”. 

O Coronel provavelmente lutou contra o impulso de me mandar ir massajar um cavalo aos estábulos. 

Para mim a resposta foi simples: é para rapar então. O mais baixo e rápido possível sobre a coluna. Eles vão de certeza perceber. Ai vão vão! 

Juntamo-nos todos – as duas tripulações – e “briefamos” a missão. Iríamos descolar, direcção sudoeste, e iríamos de imediato seguir um vale que seguia para Sul. Aí, no limiar da zona do exercício, iríamos manter-nos ocultos até recebermos a palavra de código para início do exercício por parte do coordenador do evento. Após recebida, voávamos o mais baixo e rápido possível em direcção à coluna, efectuando várias passagens de direcções diferentes. O meu número um ficaria a actuar numa área por nós definida mais a Oeste e eu ficaria na área Leste. A aproximação inicial seria efectuada em formação táctica. 

Descolamos finalmente. Nestas missões é impossível não sentir um pouco de adrenalina. E eu estava a senti-la. Chegamos ao nosso ponto de espera e ali ficamos os dois, em estacionário, por detrás de uns eucaliptos, lado a lado. Comigo tinha um dos nossos mecânicos de voo, curiosamente também do exército. 

Chega a ordem para avançar. 

Colectivo para cima, passo metido, cíclico para a frente. Número um à vista. Mantemos o que seria pouco mais de quinze ou vinte pés. 

Fazia sete anos andava eu a jogar jogos de computador e agora parecia que estava dentro de um. Baixo e rápido. Como eu gostava na altura (caraças, ainda é como gosto!). Entre chaparros, oliveiras e uns impressionados corvos que pensaram certamente “Que raio?” à nossa passagem. 

(C) Pedro Monteiro 

(C) Pedro Monteiro 

À nossa frente, a pouco mais de quinhentos metros, a Brigada. O nosso alvo. Seguiam para Sul, em três colunas paralelas se bem me recordo (não quero ofender nenhum táctico terrestre mas confesso que a memória já me falha). Na sua senda uma enorme coluna de poeira criada pelas dezenas de veículos que avançavam confiantes na nossa direcção. A pouco mais de trezentos metros (?) uma imagem que nunca mais esquecerei: dezenas de blindados, em coordenação, a dispersarem em todos os sentidos. Aquilo que outrora fora uma coluna organizada era neste momento um movimento de dezenas de carros em formação defensiva, sincronizado, tomando posições. Aquilo que era um alvo definido e simples transformou-se em dezenas de pequenos alvos todos, estou certo, com dedo leve no gatilho. Isto tudo em segundos. “Estes gajos são umas máquinas, bons profissionais” pensava.

Se fosse a “sério” não duraria mais de dez segundos no ar. Mas se fosse a sério também não teríamos este perfil de ataque. 

Assim que chego à vertical do primeiro veículo o meu número um executa o seu “break” para oeste. Eu mantenho-me a Leste. Baixo, sempre baixo, e desconfortável com a visão que tinha à minha frente. As torres dos carro de combate M-60 a seguirem a minha trajectória de voo. Pode ser um exercício mas é sempre desconcertante sentir-mos que todo aquele poder de fogo ganhou um novo foco nos últimos segundos: o filho da minha mãe! Eu! Era até possível sentir a onda de choque dos tiros de salva de todos aqueles soldados que lá em baixo me tornaram a mim – pobre Alferes – o seu alvo preferido para o dia. 

Entretanto nos rádios ouve-se a voz do controlador aéreo avançado da Força Aérea, incluído na coluna, que tentava desesperadamente dar a nossa posição aos dois F-16 que andavam à nossa caça. Estes, “lá do alto”, tentavam apanhar-nos antes que infligíssemos mais dano à coluna. 

Este jogo do rato e do gato durou, talvez, uns trinta minutos. A cada passagem, mantinha-me baixo e procurava a cobertura de um vale, de uma abertura no arvoredo ou de algo que me camuflasse do olhar de um piloto de F-16, que me tentaria encontrar com o seu “targeting pod”. Esperava dois minutos e lá saía novamente, coordenado com o número um, para mais uma passagem. 

“Mais uma moeda mais uma voltinha”, como nós dizíamos. Mas voltas destas não há na feira popular! 

Aterrámos após pouco mais de uma hora de voo. Não é todos os dias que dois velhos – mas agressivos – Alouette III têm a oportunidade de "atacar" a brigada mecanizada. 

 “Este é o segredo mais bem guardado da Força Aérea”, dizíamos muitas vezes na 552. Não há aeronave que mais gozo dê em voar do que o Zingarelho. Visibilidade única. Baixo e rápido. Um carro de Rally com asas, lá no fundo. Mas poucos se apercebem disso. Então quando o Exército dá uma ajudinha melhor ainda. 

Quem tivesse voado comigo nessa manhã certamente concordaria. 

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H160

Há quem diga que a beleza é subjectiva. Não é. Neste caso não é. É de facto bastante objectiva.

H160. Que máquina. Que porra de máquina!

With two prototypes flying, the H160 is ready to take on the market in 2016. This 5.5-6 tonne class rotorcraft's nose-to-tail breakthroughs in design and systems put customer value, satisfaction and operational safety first. It has been designed to suit a wide variety of uses, including oil and gas operations, public services, air medical and coast guard duties along with commercial transport, private and business aviation.

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Jeito estranho

A Vida tem um jeito estranho, mas fabuloso, de nos brindar com coincidências. Daquelas que nos fazem exclamar "cum catano".

Era eu um cachopo, faz mais de quinze anos, e na minha cabeça germinava pouco mais que "aviação". Era um fanático. Livros, revistas, vídeos (VHS existiu e não é mito, para a malta nova!). Todos eles cruelmente espalhados lá por casa. A internet - essa invenção estranha com um dispositivo estranho que imitia um som estranho - estava no seu auge. O cachopo tinha tempo livre e portanto, num raro momento de clareza intelectual, decidiu dedicar-se a aprender um pouco de "webdesign" e "photoshop".

Aliando uma coisa a outra (a aviação e a recém adquirida capacidade de criar um sítio na World Wide Web) surgiu a primeira página de internet dedicada a uma Esquadra de voo da Força Aérea Portuguesa. O Falcões.net.

"Bom uso do meu tempo" pensava eu. Pacientemente e de forma ardilosa lá tentava dar conteúdo à página. Pedir umas colaborações aqui, arranjar umas fotos acolá, "inventar" uns textos. Aquele mundo para mim estava tão longe como Marte. E aquela era a forma que encontrei de reduzir um pouco essa distância.

Até que um dia abro a caixa de correio (electrónico). Ali, a negrito, estava um e-mail de alguém que não conhecia. Que raio! Onde foi aquele indivíduo buscar o meu e-mail.

Ao abrir o mesmo a surpresa: aquelas linhas, ali à minha frente, foram escritas por um piloto daquela Esquadra. E a acompanhá-las, algumas espectaculares fotos ar-ar de uns F-16 nacionais. Tudo cedido para publicação na página.

Não é tão bonito como um EH-101. Mas também não é feio! 

Não é tão bonito como um EH-101. Mas também não é feio! 

Compreendam a mentalidade de um puto de treze anos. Para ele aquilo representava o mundo. Um dos gajos que ele mais admirava - um piloto militar! - tinha perdido parte do seu tempo para lhe enviar um e-mail! A ele! A mim! Naquele dia deitei-me com um sorriso de orelha a orelha.

E os anos passam. Passam rápido, aliás. A página continua cá, eternamente alojada nesta imensidão de informação electrónica, como que a relembrar-me que, um dia, até fiz umas coisas porreiras.

E os anos passam. Mas hoje foi diferente. Hoje foi o dia em que eu, já com alguns cabelos brancos, voei com esse mesmo piloto que me enviou esse e-mail faz mais de uma década. Caramba. Quem diria!?

A Vida tem um jeito estranho... mas fabuloso, de nos proporcionar estes encontros do destino.

O puto de treze anos estaria a sorrir neste momento.

Aliás. Está mesmo. :)

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Dez

Dez. São dez. 

Dez filhos que voltam a casa. 

Dez mães que respiram fundo. 

Dez ave-marias. 

Dez apelos que foram ouvidos.

Dez cervejas. 

Quais cervejas. Dez bagaços. 

Dez “fodass” de alívio.

Dez abraços. 

Dez beijos. Vinte beijos. Vinte mil milhões de beijos. 

Dez vidas mais preciosas que estatuetas de ouro.

Dez “obrigado”.

Dez almas. 

Dez. 

São dez homens que hoje vivem graças a um punhado de outros tantos. 

Foto: Igor Ramalho  

Foto: Igor Ramalho  

Esquadras 751 e 502, Força Aérea Portuguesa. Enormes. 

Mais uma vez.  

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Descolagem incerta

"Causarei o maior dano possível para que a TAP mude de opinião”

"Temos de desprezar quem nos despreza"

Estes são alguns exemplos de afirmações públicas que têm surgido recentemente sobre a TAP Portugal

É fatalista. É extremamente fatalista. A TAP existe, como sempre existiu nos últimos anos, não para ser transportadora aérea. Existe para ser alvo de críticas. De chacota. Um saco de boxe intelectual nos dias que correm. 

Estamos mal habituados neste cantinho à beira-mar. Queremos tudo. Queremos o impossível. Queremos o compromisso supremo. Exigimos.

O corolário de toda essa situação são os indivíduos que faz um ano defendiam, convictos e certos da sua posição, a privatização da transportadora aérea nacional. Um buraco negro de dinheiros públicos, disse-se. Agora, quando a sua gestão é finalmente privada, invocam o chamado interesse nacional (na prática interesse regional, grande diferença) quando a decisão não lhes convém ou agrada. 

Algo claro e simples: uma empresa quando é privada (e, até ver, a TAP é de gestão privada segundo o governo em funções) tem total liberdade na escolha da sua estratégia interna e de expansão. Seja ela boa ou má. Seja ela óptima ou péssima. Aos olhos de quem quer que seja. 

O mercado da aviação comercial é tão competitivo, mutável e exigente que uma adaptação constante é uma obrigatoriedade. É portanto normal que uma empresa queira usar os seus recursos finitos – as aeronaves – nas rotas mais rentáveis e menos dispendiosas em termos de operação. Ganhar dinheiro no fundo. Aumentar as receitas. Diminuir as despesas. Lucro. Aquele que, dizem, fugiu durante tanto tempo. 

caudatap

Toda esta indignação, e surpreendente apelo ao boicote, espanta ainda mais quando vem de quem apoia, e apoiou, concorrentes directas da TAP com subsídios que a transportadora aérea nacional nunca teve. Paradoxalmente um organismo do Estado financiou empresas concorrentes de uma empresa que pertenceu ao... Estado! 

Por cá queremos sempre que algo seja “carne e peixe”. 

É impossível. 

Não podemos exigir que uma empresa seja privada (e que portanto zele maioritariamente pelos seus próprios interesses de crescimento e lucro) e ao mesmo tempo cumpra os nosso propósitos. As nossas ambições ou estratégias pessoais. 

E não podemos querer que uma empresa seja pública (e consequentemente amarrada à incerta definição política do que é útil e aceitável) e ao mesmo tempo obtenha o lucro e optimização de uma empresa privada. E que não utilize dinheiro público, já agora.

Definamos de uma vez por todas aquilo que queremos. E aceitemos as consequências dessa decisão.

Mas não vamos exigir o impossível.

Quem sofre com isso não é só o Porto. Não é a TAP. 

Somos todo nós. 

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Fate is the hunter

Existem livros sobre aviação. Existem livros que são obras-primas. E de vez em quando existem livros que são ambos. 

Fate is the hunter é um deles. 

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Baseado na vida e carreira do autor - Ernest Gann - esta pequena amostra de génio literário vicia-nos a partir da primeira página. Não gosto de ficar "agarrado" a nada, mas este livro tinha a tendência de me obrigar a folhear mais e mais e mais. Cocaína literária. E Ernest era Pablo Escobar. 

Imperial. E obrigatório. 

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Os quatro magníficos

Vinte e um.

“Que bando de gajos que para aqui vai”. 

Éramos vinte e um no meu curso da Força Aérea e quem olhasse para nós naquele tempo com certeza que teria dúvidas que aquele ajuntamento de gajos, de cabelo rapado e olhar incerto, daria origem a punhado de competentes pilotos militares. 

Foto: J. Parracho (Marinha Portuguesa)

Foto: J. Parracho (Marinha Portuguesa)

Após a aquisição dos helicópteros LYNX pela Marinha (e façamos um aparte para fazer uma vénia a essa grande máquina) esse ramo viu-se obrigado a formar os seus próprios pilotos. A opção lógica, claro, passava pela formação na Força Aérea Portuguesa. 

É assim que, após a nossa recruta na OTA, conhecemos pela primeira vez os quatro oficiais da Marinha que vão integrar o nosso curso. Afinal éramos vinte e um... mais quatro.

Oficiais de carreira provenientes da Escola Naval, foram que como atirados aos lobos para um grupo de “putos” sem qualquer experiência militar.  Imagino o que não lhes deverá ter passado pela cabeça. Certamente um expressivo “fodass”! Não é por acaso que o nome do meu curso é "Infernais". Podia muito bem ter sido "Bandidos" ou "Índios" tal era a quantidade de... chamemos-lhe irreverência, que demonstrávamos. 

Ao longo de mais dois anos aqueles quatro elementos foram o nosso enquadramento. Pela Ota, pelos “horrores” da Esquadra 101 e mais tarde pela Esquadra 552, todos nós ficámos com a sensação que aqueles quatro marmotas – e sim, podem ser porreiros mas continuam marmotas! – eram umas máquinas do caraças. E como tal todos lhe temos uma dívida de gratidão. 

Pelo enquadramento. Pela paciência. Pelos raspanetes. Pela camaradagem. Pela ajuda. Pela ponte que foram com os oficiais mais antigos. Pela... amizade. Essa que ainda dura e durará para sempre.

É estranho pensar que provavelmente o factor de maior sucesso de um curso da Força Aérea tenha sido... elementos da Marinha. Justiça seja feita: é a verdade. 

Éramos vinte e um. Acabámos quinze. Mas sem aqueles quatro, seríamos menos. 

Merecem todas as rodadas que lhes conseguirmos pagar. E eles que não me oiçam dizer isto, senão metade do meu ordenado irá acabar nos cofres da Super Bock!

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Existem dias bons

A vida operacional de um piloto militar não tem falta de aventura. Muito menos numa Esquadra de busca de salvamento. As missões reais são frequentes. As missão tácticas são uma emoção. As missões de treino são sempre – sempre! – diferentes. 

Difícil de superar. Mas às vezes acontece. Foi o caso do voo que fiz com o Ricardo. 

Foto: Força Aérea Portuguesa (c) Todos os direitos reservados

Foto: Força Aérea Portuguesa (c) Todos os direitos reservados

O Ricardo tem quase a minha idade. De facto podia ser eu. O nome até é o mesmo. Mas um dia a vida pregou-lhe uma partida: sofreu um acidente de viação grave que o deixou paraplégico. Para sempre dependente de uma fria e impessoal cadeira de rodas. No dia do seu acidente foi evacuado de helicóptero para a unidade hospitalar mais conveniente, e, provavelmente, deve a sua vida a esse voo. A sua mãe, ciente disso, contactou a Força Aérea inquirindo se seria possível o seu filho fazer um voo, talvez voltar a sentir aquela sensação de liberdade que a vida injustamente lhe roubou.  

A Força Aérea Portuguesa tem muitas maneiras de deixar um tipo fulo. Frustrado. Fora de si com a pesada máquina burocrática que por vezes existe. Mas também nos é capaz de encher de orgulho como instituição. E este foi um dos casos. A Força Aérea disse que sim.

E tenho o Ricardo à minha frente. 

Falamos todos. Eu, ele, a mãe e toda a tripulação. Aprendemos um pouco sobre a sua vida e sua luta herculeana. Quem me dera a mim ter um décimo da coragem e força de vontade que o Ricardo tem. Qual um décimo! Quem me ter um centésimo da sua força de viver!

É apresentado um pequeno briefing com a história da Esquadra e procedimentos de segurança. Discutimos um pouco sobre voo. Aproveitando um voo de treino regular da Esquadra, iremos levar o Ricardo por algumas manobras de contacto à vertical da Base Aérea do Montijo. Voo baixo, voltas apertadas, rotações, um pouco de “táctico” enfim... tudo aquilo que um helicóptero pode fazer e que é invejado por todas as outras máquinas voadoras. E sempre de porta aberta. Sempre. Para sentir o vento como só os pássaros sentem. O pináculo da sensação de voar. 

E assim foi. Descolamos e iniciamos o nosso perfil. Sempre com o cuidado de saber se o Ricardo está a gostar. Após o voo convivemos no bar da Esquadra. A nossa “toca” que tem mais história – e estórias! – naquelas paredes que todos os livros de Saramago e Lobo Antunes juntos. 

Aquele foi um dia especial. Não só porque o Ricardo voou connosco. Mas porque tive a honra de, naquele voo, fazer a minha milionésima hora de voo em helicópteros. Mil horas porra! As primeira mil. Não me consigo lembrar de um melhor voo para celebrar este marco. Até tenho uma pequena garrafa de champanhe, oferecida por um bom amigo, religiosamente guardada no meu gabinete para celebrar este facto. 

Ele há dias de merda. Dias em que um gajo vai para casa farto. Saturado. Cansado. Em que qualquer contacto humano é como enfrentar a inquisição espanhola. Mas ele há dias bons. 

E este é um dia bom. 

O Ricardo pode ir para casa com um sorriso nos lábios. Eu também. Mas o meu? O meu é bem maior…

Obrigado Ricardo. 

diasbons02

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Au revoir 747!

A homenagem perfeita para o primeiro gigante dos ares. 

A fabulosa despedida da Air France e da Patrouille de France ao Boeing 747 ao serviço daquela companhia aérea. 

Au revoir!

Le 27 janvier au dessus de la Camargue, douze avions, fleurons de l'aéronautique française, se donnaient rendez-vous : onze Alphajet de la Patrouille de France et le dernier Boeing 747 d'Air France. Crédits : Airborne Films pour Air France et l'Armée de l'Air et la Patrouille de France http://www.airfrance.com/ #AF747

E o carro?

Segunda-feira é sempre aquele dia cruel. “A pior invenção da humanidade”, dizem os olhos de todos aqueles com quem me cruzo. Lá fora a chuva cai de forma intensa, e mais intensamente caiu durante o fim de semana. Noé estaria como peixe na água. Está montado o cenário. Segunda-feira. Dia 01 de Abril de 2013. Mais um dia das mentiras. Mais um dia alerta. 

Ribeira? Isto é um rio!

Ribeira? Isto é um rio!

A rotina é a mesma de um dia normal. Com aquela pequena – grande! – diferença de sentir uma ligeira ansiedade sempre que o telefone toca. E claro, ele tocou. 

ALERTAAAAA”, alguém berra pelos corredores da Esquadra. É pavloviano. Eu, e o meu co-piloto, estamos nas operações em dois segundos. Um vai anotando as coordenadas num papel e outro abre o Google Earth para uma confirmação muito rápida da zona de operação aproximada. 

“Epah, esta merda não deve estar bem”, digo. 

A porra da coordenada não estava no Atlântico. Nem mesmo ali numa escarpa, fosse onde fosse na costa portuguesa. Estava no meio do Alentejo. Sim. No meio do Alentejo. 

“Que raio?” 

Telefone na mão e chamada directa para o Comando Aéreo (CA).

“Podem-me confirmar as coordenadas por favor?”

Bastaram trinta segundas para ficarmos a saber que as coordenadas estavam correctas. Durante as chuvadas do fim de semana várias ribeiras e ribeiros transbordaram por completo, um pouco por todo o país. Ali, para os lados do Torrão, um condutor distraído (lá no fundo eu quero mesmo dizer negligente) ignorou a barreira montada pela Protecção Civil e decidiu tentar atravessar aquela estrada que, na prática, era agora um rio. Resultado lógico. Foi arrastado. 

“Esta vai ser uma estreia!”

A partir daí tudo corre em automático.
Coordenadas no bolso. Capacete e equipamento de emergência na mão. Helicóptero em marcha. Descolagem. Tudo isto em pouco mais de dez minutos. Já no ar, velocidade máxima, direcção sul. Entramos em contacto com o Comando Aéreo para obter actualizações. Não há novidades. Já se encontram no local algumas unidades dos bombeiros. 

O local exacto chama-se Ribeira de São Romão.  

“Ribeira o caraças!”, voicero quando chegamos às coordenadas. O que temos à nossa frente é um caudal de água quase tão largo como o rio Sado. Damos uma primeira volta e tentamos encontrar o tal carro arrastado. Nada. Só água. Tanto de um lado da margem como do outro são visíveis unidades dos bombeiros com as quais entramos em contacto. Ao iniciar a segunda volta alguém da tripulação expressa um decisivo “Está ali, às duas horas”. 

“Epah não vejo carro nenhum!”

“Carro? É uma cabeça!” 

O veículo estava completamente submerso. Ali, quase à nossa frente, estava uma cabeça, quase invisível, oculta pelo constante movimento da água ao seu redor. Era ele, o “nosso” condutor desesperado que se agarrava a algo como uma lapa se agarra a uma rocha. 

Volta rápida, pás a "bater", posicionamo-nos face ao vento e em trinta segundos estamos com os procedimentos feitos, porta aberta e o Recuperador Salvador pronto a descer. 

“Trinta em frente, dois à direita” .

O operador de guincho começa a guiar-me para o objectivo. Ao mesmo tempo o recuperador inicia a descida e o co-piloto mantém um olho à nossa altitude. Já o disse várias vezes. Digo-o mais uma: o trabalho de equipa aqui não é boa prática. É obrigatório. E que grande equipa tenho eu hoje. 

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O recuperador toca na água a menos de um metro do objectivo. 

“Contacto!”

Em menos de dois minutos o recuperador está novamente suspenso no cabo, desta vez com um muito valioso passageiro nos braços. Hesito em usar a palavra “náufrago” neste caso... será “arrastado” melhor? 

Recuperação feita e o enfermeiro da tripulação inicia o seu trabalho. Coordenamos com os bombeiros e aterramos ali mesmo, na margem, para deixar o nosso recente passageiro. Entrega feita e descolamos em direcção ao Montijo. 

Como é hábito, nesta altura iniciamos uma espécie de de-briefing informal. Todos os membros da tripulação falam entre si sobre o que acharam da operação, o que correu mal, o que correu bem, como podemos melhorar. E claro, curiosidades. E aí, o nosso recuperador salvador (militar experiente, instrutor, com um físico de fazer inveja ao Hulk) partilha connosco o breve diálogo que teve com o senhor: 

“Estava a ver que tinha de usar da força física...”

“Então?”

“Ele não se queria vir embora sem o carro!”

“Desculpa?”

“Não queria lá deixar o carro! Ainda perguntou se não o podíamos içar!”

Como a natureza humana é engraçada. Estamos à beira da morte. Exaustos. Em estado de Hipotermia. Mas o cabrão do carro é que não pode ficar ali. Não, o importante é o cabrão do carro!

“Pena não teres trazido a matrícula. Dava uma bela recordação!”

E se dava!  E se dava!

ALEX

Os Açorianos encaram o mau tempo como um piloto encara a turbulência. Inevitável. Algo chato mas inerente à vida insular. Sem fuga possível. Habituados a ter as quatro estações do ano num só dia, o de hoje não havia de ser diferente. 

Alex. Que porra de nome para um furacão. 

Foto (c) Força Aérea Portuguesa

Foto (c) Força Aérea Portuguesa

Todos nós – pelo menos deste lado de cá da “banheira” – reagimos com, no mínimo, alguma indiferença. Mais uma tempestade. Certamente comum para o Atlântico central. Só as ocasionais reportagens televisivas nos fazem reflectir um pouco mais.

Quando servi na Esquadra 751 dizíamos entre nós, com orgulho e típico peito inflamado de aviador militar, que “quando mais ninguém voava nós íamos lá”. Rodas no ar. A enfrentar cruelmente os elementos com uma máquina que a cada rotação do rotor nos pedia furiosamente ar mais calmo. 

E no presente não haveria de ser diferente. Com orgulho, não, com muito orgulho, vejo que hoje, nos Açores, quando mais ninguém voa, eles estão lá. A voar. De ilha para ilha. Sem questionar. Sem hesitar. Sem por em causa que aquela, a mais nobre das missões, merece o melhor que cada um deles tem para dar. 

Gajos que, no preciso momento em que escrevo estas linhas, estão na ilha das Flores a aguardar a ordem para regressar com a mais preciosa das cargas: uma vida humana. 

É bom que não esqueçam isso. Quando um dia, por qualquer razão que seja, se lembrarem de os criticar – por serem militares, por serem os “chulos”, por serem uns “inúteis” – lembrem-se que quando um furacão chega, quando as barras marítimas fecham, quando os aviões ficam no chão, quando tudo está mesmo na merda... eles estão lá... 

...Eles estão lá.

E não pedem nada em troca. Não pedem, mas merecem

Nem que seja o nosso mais profundo respeito

Bom voo camaradas. 

(c) Esquadra 751

(c) Esquadra 751

(c) António Tavares

(c) António Tavares

Pilotos mimados

(Escrito a 28 Dezembro de 2014)

“Privilegiados! Nem mais um tostão para a TAP.” É engraçado como a história nos persegue. Na minha (curta) carreira de aviador passei de, passo a citar, “militar chulo do estado” para “piloto mimado da TAP”. Começo a pensar que, aos olhos dos meus compatriotas, escolhi a profissão errada. Ou então tenho mau carácter. Por mais dedicados que sejamos. Por mais sacrifícios que façamos. Por mais exigentes nos tornemos ou por mais profissionais que ambicionemos ser, seremos sempre um “chulo” ou um “privilegiado”. 

Fantástica foto de Carlos Seabra. Todos os direitos reservados. 

Fantástica foto de Carlos Seabra. Todos os direitos reservados. 

Em Portugal vivemos um determinado complexo de “(in)felicidade”. Se somos felizes naquilo que fazemos então não devemos estar a fazer o nosso trabalho. É, aliás, como se a palavra “infelicidade” fosse sinónimo de “trabalho” num qualquer dicionário de língua portuguesa. E se não formos infelizes algo está muito mal. 
Perdi conta às vezes que me disseram “pagam-te para te divertires”. “Efectivamente”, retorquia eu, “que culpa tenho eu de gostar do que faço?”. Ambicionei isso. Procurei-o. Era o meu sonho de criança. E lutei por ele. É, penso eu, aquilo que qualquer um de nós procura fazer.
Mas, como em tudo na vida, as pessoas esquecem-se sempre de todos os aspectos menos positivos. As madrugadas. A falta de rotina. O não ter horários. O treino constante. A avaliação permanente. A pressão subjacente. O requisito físico, e mental, obrigatório. E acima de tudo, a responsabilidade. Essa que é enorme. Seja ela a de ser a última esperança de sobrevivência de alguém, do meio do oceano, no meio de uma tempestade às três da manhã ou a de levar 150 almas em segurança ao seu destino. Mas tudo isso, pelos vistos, não interessa. Só interessa aquele fato de voo ou aquela farda tão elegante. 

A aviação ensina-nos e molda-nos um espírito de muitas formas. E uma das grande lições que nos transmite, que nos incute desde cedo, que nos fica gravado na alma é que devemos sempre nivelar por cima. Nunca por baixo. Devemos sempre procurar a excelência. Porque se não o fizermos, os resultados, nesta profissão, poderão ser desastrosos. E muita dessa mentalidade, desse espírito, se pode aplicar à Vida em geral. 

Não me identifico com esta tendência tão recente de alguns meus compatriotas de quererem nivelar por baixo. E de assumirem que, como profissional, não mereço mais do que “mimado” como adjectivo. 

Desculpem-me se sou feliz com o que faço. Mas isso não vai mudar. Nunca

Defesa aérea

(Escrito a 31 de Outubro 2014)

“Mas o que é que vocês fazem na tropa?”. Perdi a conta às vezes que ouvi esta pergunta. 

E, como eu, estou certo que todos aqueles que lá Serviram se viram deparados numa altura ou outra, com comentários semelhantes. Pacientemente – coisa às vezes rara na minha pessoa – lá tentava explicar tudo aquilo que fazíamos. Ou parte. Ou nada . Às vezes limitava-me a beber mais um golo naquele Gin fresquinho. Não valia a pena. 

Foto: Força Aérea Portuguesa

Foto: Força Aérea Portuguesa

E estando na Força Aérea surgia, mais tarde ou mais cedo, um “porque é que Portugal precisa de F-16? É para vocês brincarem?”. 

Bem. Parece que esta semana já ninguém pergunta se querem brincar. 

Acordei com a música “Russians” de Sting na cabeça. As (muito) recentes notícias da presença de aeronaves russas nas zonas de responsabilidade portuguesa – e consequente intercepção pela Força Aérea Portuguesa das mesmas – veio como que acordar alguns compatriotas. Pondo de parte o excessivo mediatismo e alarmismo de algumas notícias, a utilidade de ter um sistema efectivo de defesa aérea deixou de estar em causa. Afinal não estamos naquele canto seguro da Europa. Afinal é possível entrar em espaço aéreo de responsabilidade nacional. Afinal convém ter malta treinada para isto. Daquela que custa muitos milhares a treinar. 

A efectiva ameaça militar destas incursões é baixa. Mas é representativa de como em geopolítica se joga um bom poker. Ou xadrez no caso russo, como dizia Kissinger. Portugal tem de definir politicamente – de uma vez por todas – qual a posição e qual a capacidade que queremos ter no mundo presente. Se queremos ser jogadores de xadrez, ou se queremos estar na plateia a contar os minutos. Em geopolítica não existem espaços vazios. Não existe o zero. O vazio. Se não formos nós a ocupar – e a defender – o nosso espaço alguém o fará por nós. Se não forem os nossos F-16 serão os F/A-18 espanhóis. Ou os EF2000 ingleses. E aí não faltariam aqueles que criticariam a nossa falta de capacidade. Os mesmos que provavelmente agora criticam o facto de ela existir. Paradoxo nacional.

Temos a maior zona de responsabilidade aérea – e naval – de toda a Europa. A nossa plataforma continental está prestes a tornar-se gigantesca. A nossa ZEE é imensa. E o que é nosso deverá ser defendido por nós. Com Homens. Com treino. Com equipamento. Esse que dizem que sai caro. No mar, no ar, ou em terra. 

Quando alguém me pergunta, indignado, “porque raio temos 2 submarinos?” eu geralmente respondo “Epah, também não entendo, devíamos ter quatro!”. 

E quatro era pouco. 

Merlin por uma última vez

O último voo numa aeronave é sempre marcante. Se esse voo for igualmente o último numa esquadra passa a memorável. Se for, também, o último numa instituição torna-se inesquecível. 

Comigo não seria diferente. EH-101. Esquadra 751. Força Aérea Portuguesa. 

A juntar a isso tudo, se alguém registar esse momento de forma fantástica, melhor ainda! 

Todos os direitos reservados a (c) Luís Maia.

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